Por Fernando Venâncio
O romance Inxalá, de Carlos Quiroga, saiu em 2006 na prestigiosa editora galega Laiovento, grafado na Norma Agal. Narra as peripécias da vida dum médico galego que tem de abandonar Portugal, onde trabalhou, e se refugia na Abissínia, onde recorda o amor, talvez para sempre perdido, duma portuguesa. O livro lê-se como um policial, como uma obra de cultura, e está magnificamente escrito. Carlos Quiroga (Periferias, O regresso a arder) é um exímio prosador.
Em 2008, a obra teve edição portuguesa, na Quid Novi, de Lisboa. Com um título mais longo, chama-se aí Inxalá. Espero por ti na Abissínia. É uma edição bonita, com uma sobrecapa primorosa.
Confesso uma intensa curiosidade, ao saber da existência dessa edição portuguesa. Que nela se mantivesse a Norma Agal parecia-me impensável. Mas, perguntava-me, que sucederia com o léxico exclusivo galego e, sobretudo, com a sintaxe em que um galego se exprime? Teriam sido, esses, conservados? Fui, pois, ver. Já o cólofon decentemente nos informa: «Revisão linguística para o português: Maria do Rosário Pedreira». Ao fim de quinze, vinte páginas, sabe-se o que essa «revisão» implica. A obra foi profundamente «revista». Digamos tudo: foi reescrita.
Maria do Rosário Pedreira é uma excelente poeta (A casa e o cheiro dos livros, O canto do vento nos ciprestes) e romancista (Alguns homens, duas mulheres e eu, que tive o prazer de recensear). É também uma exemplaríssima editora. Estamos, portanto, a tratar com gente de nível – a editora e o seu autor. A reescrita deu-se com a mais que provável anuência de Quiroga, mas isso é aqui inteiramente secundário. Importante é existirem duas redacções do mesmo livro: uma para a Galiza e uma para Portugal.
Uma primeira constatação: a revisora sabe galego. O que é reconfortante, sabendo nós quanto são raros, na edição em português de literatura galega (Ferrín, Rivas, Queipo, Borrazás, Lopez Teijeiro, Fernández Paz), os bons conhecedores do idioma de Além-Minho. Segunda constatação: o livro de Quiroga adquire uma fluidez caracteristicamente lusa, conseguindo ler-se como um original. Tudo bem. Mas isto é uma má notícia para os galegos convencidos de que, vergando o galego ao português, se lhes abrem as portas do Mundo. Podem abrir-se, mas por este preço: a pura eliminação do galego.
Constatamos, primeiro, uma completa substituição da morfologia galega: não «polo» mas «pelo», não «dous» mas «dois», não «dixo» mas «disse», não «fum» mas «fui», não «quixem» mas «quis», não «mantivo» mas «manteve», não «veríame» mas «ver-me-ia», não «dar-cha» mas «dar-ta», não «seredes vós» mas «serão vocês», não «podo assegurar-che» mas «posso assegurar-te». Também «dum» passa a «de um», «nalgum» passa a «em algum», e semelhantes. Desaparece a distinção do tipo «cham» vs. «portom», que são homogeneizados em «chão» e «portão». E, claro, «manhá» torna-se ««manhã», «maos» torna-se «mãos».
Depois, o léxico galego não coincidente com o português é eliminado: de «atochado» faz-se «atulhado» (felizmente também galego), de «teito» faz-se «tecto», de «cara a» faz-se «em direcção a». Basta que algo não seja habitual em português. Assim, «fugida» torna-se «fuga», «rachar» torna-se «rasgar», «aguardar» torna-se «esperar», «chamada» torna-se «chamamento», «abrigar a esperança» torna-se «acalentar a esperança», «umha mão dela» torna-se «uma das suas mãos», «decidim nom importar-me» torna-se «decidi não me preocupar». Até desaparecem materiais autenticamente galego-portugueses: «mal vejo» passa a «já só vejo», «mal sorrim» passa a «quase nem sorri», «achegárom-se» passa a «aproximaram-se».
Passagens inteiras acabam reescritas. Onde estava «o urgente que o fantasma tinha para explicar-che», é agora «o que o fantasma tinha de tão urgente para explicar-te». Onde estava «nom se olvida um de ser poeta porque já nom se escrevam mais versos», ficou «não é por não escrever mais versos que alguém se esquece de ser poeta». («Olvidar» é um antiquíssimo cultismo galego-português, mas terá pesado aqui o suposto castelhanismo). Onde se lia «tinha combinado com Urba Bonner para jantar e pensei que…», lê-se agora «tinha combinado jantar com Urba Bonner e achei que…». Onde estava «… agarrada ao pénis por fora das calças, e empapou os meus dedos de maior umidade», ficou «… agarrada ao meu pénis e deixando os meus dedos ainda mais húmidos». (Repare-se na puritana eliminação de «por fora das calças»). E há mais, há muito mais.
Que fizera, que faz habitualmente, Carlos Quiroga? Ele investe no galego, aproveitando o português. É um procedimento saudável, que testemunhamos também em Raquel Miragaia, e que merece apoio e reforço na Galiza. Na Galiza. Porque em Portugal não há hipótese para as particularidades galegas. Mostrei, num artigo recente em Viceversa (da universidade de Vigo, nr.13), como, em edições portuguesas de literatura galega, as exclusividades lexicais de Além-Minho acabam, sistematicamente, traduzidas para um léxico compartilhado com o espanhol. Nas edições portuguesas, que respeitam peculiaridades brasileiras, angolanas, timorenses, as galegas acabam implacavelmente trucidadas.
Que ninguém grite ao escândalo. Com efeito, é exactamente isso que, na própria Galiza, anda fazendo o integrismo lusista, hoje acoitado numa pomposa «Academia». Nos seus textos, mesmo os destinados a galegos, é limpo tudo quanto um português desconhece. Nas mãos desses lusomaníacos, o português tornou-se a máquina mais eficaz de matar o galego.
Julgará ainda alguém que basta aos galegos grafarem segundo o Acordo Orográfico para terem o Mundo a seus pés? Não sejais inocentes. «O galego na Lusofonia»? Oh almas simples! Os portugueses são pelo menos tão eficientes como os espanhóis em lembrar-vos o recuncho humilde. Recuncho? Como se dirá isso em português?
Amigos: tudo isto tem de ser repensado. Com coragem, com realismo. Mas começai por denunciar, no vosso meio, os demagogos.