Em inícios de 1995, percebi que algo de estranho se passava com o português de José Saramago. Numa entrevista de jornal, fazia ele referência a assentamentos israelitas em território palestino. «Assentamentos»? «Palestino»? Nenhum português fala assim. Para nós, os israelitas instalaram-se em «colonatos» e habitam território «palestiniano». Que se passava, pois?
Saramago tinha-se fixado em Lanzarote, nas Canárias. O seu romance Ensaio sobre a Cegueira, já redigido na ilha, saiu em Novembro de 1995. No fim desse mês, eu faria a defesa da minha dissertação de doutoramento. Só que, em vez de preparar-me devidamente para um debate talvez duro, ia lendo, um pouco às escondidas de mim mesmo, esse romance avassalador.
Avassalador, decerto. Mas também linguisticamente inquietante. Por um lado, achavam-se ali construções e significações estranhas ao português, todas coincidentes com as espanholas. Alguns exemplos, entre dezenas:
«vinha de acompanhante» [como]
«estão fabricados de materiais combustíveis» [são]
«A saber quem é que manda aqui» [Vamos lá saber]
«o melhor é que me sente» [o melhor é sentar-me]
«Dava lástima vê-los» [pena]
«o último que vi foi as minhas mãos» [a última coisa]
«não tinham mais remédio que consentir» [senão]
«como poderíamos nós, que apenas vemos, saber» [mal, quase não]
«sobre cegos, loucos» [além de]
«aqueles filhos de puta» [da]
Por outro lado, havia palavras, ou expressões, exclusivamente espanholas. Alguns exemplos também:
«um leve roce da epiderme» [um roçar, uma carícia]
«o optimismo da gente do comum» [p. ex.: das pessoas em geral]
«um avião comercial … tomava terra» [aterrava]
«Os descuidados ou urgidos pensavam» [apressados]
«umas quantas tostadas secas» [torradas]
«os rostos encendidos e veementes» [inflamados, excitados]
A partir desse momento, fui-me interessando pelo fenómeno, que se ia, aliás, acentuando de livro para livro. Escrevi sobre o assunto vários artigos, dei até uma palestra na Corunha, tentei, enfim, reflectir sobre o que o fenómeno pudesse significar. Verifiquei, entretanto, que essa castelhanização já se iniciara anos antes, e mais nitidamente com a História do Cerco de Lisboa, de 1989. Saramago conhecia bem o espanhol. Mostram-no as várias traduções que fez nos anos 60 e 70 e a sua velha admiração pela literatura espanhola.
Aquelas contaminações eram, decerto, fruto de desatenção, de desmazelo. Mas tinham de ser mais. Tinha de haver, por trás de tudo isso, um móbil positivo, decerto inconsciente, mas incentivador. Sim, o novo ambiente espanhol explicava muita coisa. A presença contínua da expressiva Pilar del Río, também. Mas havia, em toda esta questão, um aspecto intrigante. O português de Saramago castelhanizava-se, mas não de maneira desordenada. Os seus artigos de jornal, as suas intervenções de viva voz, os seus diários, tudo isso escapava ao processo. Existia, pois, algo de peculiar, até de ritual, naquela castelhanização da prosa narrativa de Saramago.
O que caracterizava esta prosa? Um tom procuradamente sapiente, hierático, arcaizante, e mais precisamente seiscentista. Para o nosso autor, o grande e declarado exemplo de escrita era, sabia-se, António Vieira (1608-1697), um dos maiores prosadores portugueses. Acontece que já ele fora um incansável castelhanizador do português. Outra coincidência: um e outro sonhavam com um Portugal unido a Espanha, embora Vieira imaginasse (e como diplomata tentasse) uma Península unida sob rei português e com capital em Lisboa.
Foi assim que percebi qual poderia ser, em ambos os casos, o motor implícito dessa crescente convergência do português com o espanhol: o sonho de tornar o português iberizável, isto é, adequado para funcionar como ‘o idioma ibérico’. Certo: nem Vieira nem Saramago eram linguistas, e muito certamente seriam incapazes de verbalizar o seu projecto. Ele avançava de modo grandemente caótico, mas avançava. No caso de Saramago, isto pode ser, até, mostrado graficamente.
Vejamos o caso do português óptimo e do seu correspondente espanhol estupendo. Em português, este adjectivo foi sempre de uso restrito, ‘culto’. Até ao Cerco, não há, na ficção de Saramago, sombra dele. Mas é então que óptimo e estupendo iniciam um processo perfeitamente inverso.
Outro gráfico mostra o nítido aumento do uso de dois verbos raros em português: equivocar e lograr. Usam-se correntemente enganar e conseguir.
É, assim, visualmente perceptível a convergência que, na ficção saramaguiana, se vai operando com o espanhol. No artigo em PDF, aqui junto, há muito mais abundante demonstração. A primeira parte do artigo ocupa-se do ‘seiscentismo’ de Saramago, a segunda da castelhanização da sua escrita.
Sabemos como a iberização do português levada a cabo por António Vieira deu frutos permanentes. Ainda durante a longa vida do autor, ele foi considerado ‘mestre’ do idioma, e esse estatuto ainda cresceu durante todo o século seguinte. Para os doutrinadores setecentistas, a língua de Vieira tornou-se o ideal linguístico português, à custa do tesouro galego-português, que foi, em grande parte, relegado para o nível do ‘familiar’, do ‘informal’, do ‘antiquado’.
A escrita de José Saramago não teve, e não terá, esse efeito. O idioma está hoje muito mais consolidado, e portanto bem menos influenciável, que nos séculos XVII e XVIII. Esta nova iberização do português foi, pois, o labor de um homem só. Se alguma coisa pode ser, sim, fonte de inquietação, é o absoluto desinteresse pelo fenómeno. Os meus leitores portugueses, mesmo os meus colegas linguistas, acham, e até dizem, «Que interessante…», e no minuto seguinte já regressaram à ordem do dia.
A leviandade linguística não será uma virtude. Mas assegura uma existência mais tranquila.
ANEXO:
- José Saramago e a iberização do português. Um estudo histórico (por Fernando Venâncio)
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