O pluricentrismo no polissistema galego-português

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Os pesquisadores e académicos gostam(os) de inventar termos e definições com os que elaborar novos conceitos que ajudem a modelar a realidade objeto de estudo. Particularmente, sempre gostei dos termos “policentrismo” e “polissistema”, definidos há já várias décadas, mas que ainda são utilizados em diferentes disciplinas das ciências humanas e sociais. O meu objetivo, no presente artigo, é de juntar e combinar esses dous termos com o intuito de aplicar as suas definições à situação do galego-português. É preciso termos em conta que o presente trabalho é de divulgação científica. Não acrescento nada desde o ponto de vista conceitual nem metodológico. A única contribuição é a de reciclar termos bem definidos para construir uma narrativa coerente com a que elaborar discursos reintegracionistas fundamentados em pesquisas aparentemente sólidas. Em suma, trata-se de fornecer o debate reintegracionista de novas ferramentas conceituais e terminológicas. E prometo que vou tentar não mencionar desta vez o binormativismo. Comecemos.

Uma língua pluricêntrica, segundo Michael Clyne (1991), contém vários centros que interagem entre eles, cada um deles constituído por uma variedade nacional e a norma ou normas que a codificam e padronizam. Trata-se duma rede de variedades com diversos centros separados por fronteiras, geralmente estatais. Neste sentido, português, suali, árabe, mandarim, alemão, espanhol, neerlandês, ou inglês são línguas pluricêntricas. É difícil encontrar um caso de pluricentrismo linguístico que não seja assimétrico, pois, dentro dum sistema linguístico, há variedades dominantes e outras não dominantes devido principalmente às diferenças no tocante ao poder económico entre os estados envolvidos.

O conceito socio-linguístico de variedade pluricêntrica não entra em conflito com o conceito linguístico de variedade dialetal. Na dialetologia, estuda-se a variação geográfica dentro duma língua sem tomar em conta as fronteiras políticas. No pluricentrismo, no entanto, as fronteiras estatais formam parte do modelo pois influem na variabilidade geográfica dando lugar a padrões diferentes. O pluricentrismo e a dialetologia são disciplinas linguísticas mui diferentes embora compartilhem como objeto de estudo as variedades intra-linguísticas.

O pluricentrismo semelha ser um caso particular da teoria dos polissistemas, de Itamar Even-Zohar (1990), mais abstrata e abrangente, e mui apreciada pola Rede Galabra coordenada por Elias T. Feijó. Neste quadro teórico, um sistema semiótico en geral tende a ser uma estrutura heterogénea, dinâmica e aberta, composta por uma rede de sistemas interdependentes que se organizam mediante intersecções e superposições mutuas. As línguas, como muitos outros sistemas semióticos, são polissistemas de variedades interdependentes e, portanto, não faz sentido estudar a língua padrão estandarizada sem tomar em conta as variedades não padronizadas. A estrutura mais habitual dos polissistemas é a hierárquica, que consiste num sistema canónico dominante competindo com rivais não-canonizados que se situam na periferia e no contra-poder. A estabilidade e viabilidade dum polissistema hierárquico dá-se quando há dinamismo, é dizer, quando os contra-poderes ou variedades não dominantes pressionam a variedade canónica e ameaçam com substituí-la ou a substituem diretamente.

Em resposta às estruturas hierárquicas de dominação, os teóricos do pluricentrismo tratam de definir políticas linguísticas que promovam um modelo realmente pluricêntrico, com vários centros interactuantes que se situem ao mesmo nível num processo dinâmico de cooperação mais horizontal e, portanto, sem dominações.

Desde a perspetiva do pluricentrismo horizontal, a inserção do galego no polissistema português não faria com que o galego se dissolvesse noutro padrão superior. Seria mais bem um novo padrão nacional (ou vários se houver binormativismo) dentro da rede não hierárquica de normas nacionais que constituem o polissistema galego-luso-brasileiro. Inspirado na visualização proposta por Marco Neves no seu livro O Galego e o Português são a mesma língua?, a Figura 1 é uma tentantiva muito simplista de construir uma topologia dalgumas variedades e sub-variedades portuguesas: em azul, as galegas, em verde as de Portugal, e em amarelo as brasileiras. Cada variedade nacional está subdividida em duas partes: um corpo retangular correspondente às variedades faladas espontâneas e uma cabeça triangular representando a norma padrão ou variedade mais formal elaborada a partir das falas. No caso do galego, coloquei dous padrões, a norma da Real Academia Galega / Instituto da Língua Galega (RAG-ILG), divergente das normas brasileira e portuguesa (ou lisboeta), e a da AGAL, mais próxima delas (o famoso binormativismo do que não quero falar neste artigo). Seguindo também as ideias do Marco Neves, a Figura 1 marca uma clara continuidade entre as falas populares galegas e portuguesas (continuidade dialetal), as quais ficam bem afastadas das falas brasileiras. Como acontece com a maioria dos polissistemas com variedades nacionais, as falas populares tendem a afastar-se entre si, mas as variedades formais tendem a sobrepor-se e conseguem manter uma certa unidade. O caso do galego é o contrário. Embora haja ainda vivas variedades populares muito próximas das falas minhotas (e não só), a norma RAG-ILG afasta-se das normas formais das outras variedades nacionais tendendo a quebrar o polissistema, pois quando as variedades formais se afastam as populares seguem o mesmo caminho. A norma da AGAL tenciona evitar a quebra da unidade do polissistema achegando-se das outras variedades formais.

topologia polisistema linguistico
Figura 1: Topologia do polissistema português com três variedades pluricêntricas: galego, brasileiro e português europeu.

A inserção do galego na rede pluricêntrica do português vai bem mais alo da assimilação ortográfica, que não é mais que uma ação de (re)-integração entre outras muitas possíveis. Vários grupos galegos em diferentes âmbitos culturais, entre eles a já mencionada Associação Galega da Língua (AGAL), a Associação de Estudos Galegos e a Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), estão a levar a cabo diferentes atividades de integração no polissistema cultural (não só linguístico) português, como a admissão da Galiza na Comunidade dos Países em Língua Portugesa no role de observador consultivo. Uma outra ação nesta direção é o acordo entre a AGLP e Priberam para a inclusão de léxico galego, nomeadamente 1200 vocábulos das falas galegas, no dicionário da Priberam. É importante sublinhar aqui que esta inclusão, fantástica em termos de visibilidade do galego, mantém, no entanto a estrutura hierárquica do polissistema português europeu organizado à volta da norma de Lisboa. Os vocábulos galegos apresentam-se como dialectalismos pertencentes a uma varieadade não dominante. Numa estrutura policêntrica verdadeiramente horizontal, a ação mais eficiente seria a inclusão do dicionário Estraviz como mais um recurso lexical do polissistema português.

Uma tentativa de horizontalizar as variedades do polissistema português encontramo-la na última chamada de artigos ao congresso PROPOR (International Conference on Computational Processing of Portuguese), que inclui o seguinte tópico:

Portuguese language variants and dialect processing (including the language varieties of Portugal, Brazil, Cape Verde, Guinea-Bissau, Mozambique, Angola, São Tomé, Macau or Galiza).

Portanto, se alguma leitora ou leitor está a preparar algum trabalho sobre a língua galega com metodologias computacionais ou de linguística de corpus, pode enviá-lo para ser avaliado no dito congresso. Tem que ser escrito em língua inglesa por exigências da editora que publica as atas, Springer-Verlag, mas este é um outro tema de debate que fica fora do que estamos a discutir. Além de artigos de congresso, também existem os prémios à melhor tese de doutoramento e ao melhor trabalho fim de mestrado sobre processamento da língua portuguesa com a inclusão, este ano, da variedade galega. Quantos mais trabalhos sobre o galego houver nestes eventos, maior será a contribuição à horinzontalização do sistema policêntrico galego-luso-brasileiro.

Entre horizontalismo ou hierarquia, temos um dilema semelhante ao do anarquista em relação ao Estado: não sabemos se é melhor quebrar a hierarquia desde fora para depois entrar como um membro mais do polissistema, ou bem entrarmos como uma variedade não dominante e depois quebrar a hierarquia promovendo desde dentro o horizontalismo. Na minha opinião, todas as estratégias são bem-vindas. Todas somam. E o binormativismo seica também soma, mas não é o meu objetivo falar disso agora embora não consiga não falar.

Referências:

 

  • Clyne, Michel (1991): Pluricentric Languages Differing Norms in Different Nations, De Gruyter Mouton.

  • Even-Zohar, Itamar (1990): ”Polysystem Theory”. Poetics Today 11:1. 9–26.