O aprendente

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stendhalDevo ter estado toda a vida a estudar e a tratar de apreender. Umas vezes por obriga, tipo ensino regrado de toda a cor; mas muitas outras por pura curiosidade ou interesse concreto. À altura dos meus anos, diria que predominou mais em mim o autodidatismo e quando não uma preponderante independência ou uma obcecada liberdade de escolha, de definir o caminho a respeito do que aprendo e do que não.

Sempre fugi de estudar aquilo que era ilógico, supérfluo, desnecessário para a compreensão ou para adquirirmos outros conhecimentos mais complexos. Gosto das bases, dos clássicos, da lógica e das estruturas, de compreender os conjuntos e as mecânicas de funcionamento antes de me centrar em detalhes ou partes. Odeio memorizar para repetir alguma cousa que posso lembrar exatamente onde encontrar na fonte.

Como supérfluo entendo: tudo aquilo que vai mudar em breve ou logo, normas, regulamentos, só importa saber qual está vigente; ou aquilo tudo que pode ser consultado em materiais de referência: datas, nomes, bibliografias, normas, instruções, regulamentos, códigos numéricos; essas extenuantes memorizações de personagens, obras, autores, que nunca lemos ou estudamos em profundidade e estão não obstante à mão; esse meter no peito toda a História dos manuais, em blocos de temas e parágrafos para memorizar; a Geografia sem caminhos nem relacionamentos; uma Matemática e Geometria para resolver exercícios isolados que nada nos dizem, sem narrativa; uma Física e Química meros problemas no papel, em jeito de puzzle para nos entreter puxando de ladainhas aprendidas por repetição e nunca verdadeiramente assimiladas; esses detalhes ridículos, essa metodologia e terminologia de escolas, essas palavras requintadas, essas teorias peregrinas, esses falsos amigos, esnobismos e detalhes gramaticais de exceção que nunca aparecem na conversa ou na vida diária com que enchem as provas e se deliciam os docentes de idiomas.

Esta consciência, esta rebeldia, esta soberba intelectual sempre definiu a minha passagem pelo sistema educativo. Tenho inteira consciência de que este choque entre eu e a minha sede de aprendizagem já se dava no infantário. E lembro-me como foi um verdadeiro obstáculo – um doloroso trauma – no primeiro curso da EGB (e também no segundo do BUP). Mas bem que fui safando, aprendi a desligar da aula e da docência, a mergulhar na própria fantasia, para só me conectar no necessário. Assim cheguei até ao COU, dacavalo de uma nota média na média; e sempre que achei um docente com orelhas e conhecimentos uma boa qualificação.

Acho que o segundo grande trauma foi na carreira. Dececionantes os 1º e 2º ano. O reino da superficialidade e da forma. Até dava vontade de sair, de abandonar. Afortunadamente, os companheiros, as cafetarias e as bibliotecas, abriram o campo. Mais que das aulas, gostava muito de sentar-me a ler exaustivamente sobre um tema ou uma época, sobre as referências e bibliografia, apontadas nelas; adoro rastrejar por meses sobre um assunto concreto, ou ir navegando no papel (e agora na rede) como fazia nas Bibliotecas durante a licenciatura e mais no doutoramento. Posso deixar adiado, nalgum recanto da memória, muita cousa, até que alguma informação externa ativa e começo a urdir.

Tive a sorte de ir escapando sempre dessas absurdidades que nos obrigam a queimar tempo e esforço, dessas burocracias e formalismos que sob fantasia de metodologia e prémio, se nos impõem como necessárias. Continuo a ler clássicos e a me debruçar sem ordem e sem guia em temas que me interessam.

Tive a sorte de ir escapando sempre dessas absurdidades que nos obrigam a queimar tempo e esforço, dessas burocracias e formalismos que sob fantasia de metodologia e prémio, se nos impõem como necessárias.

Reconheço que isto não serve muito a nível curricular-académico, nem é útil para passar provas com nota, nem para tirar umas “oposições” com sucesso, nem para lograr qualquer proficiência quando esta depende de docentes ou de júris, que têm os resultados definidos numa instrução. Mas se é isso o que querem, cumpre-lhes talvez entender que é um jogo regrado, não se trata de apreender e menos de cultivar o intelecto ou ampliar a razão crítica. E, acho, ninguém explica melhor que Angelina Cornelia Isotta Valserra del Dongo, contessa Pietranera, depois duchessa Sanseverina e contessa Mosca, ao seu famoso e querido sobrinho:

Figure-toi qu’on t’enseigne les règles du jeu de whist ; est-ce que tu ferais des objections aux règles du whist ? J’ai dit au comte que tu croyais, et il s’en est félicité ; cela est utile dans ce monde et dans l’autre. Mais si tu crois, ne tombe point dans la vulgarité de parler avec horreur de Voltaire, Diderot, Raynal, et de tous ces écervelés de Français précurseurs des deux Chambres. Que ces noms-là se trouvent rarement dans ta bouche mais enfin quand il le faut, parle de ces messieurs avec une ironie calme ; ce sont gens depuis longtemps réfutés, et dont les attaques ne sont plus d’aucune conséquence. Crois aveuglément tout ce que l’on te dira à l’Académie. Songe qu’il y a des gens qui tiendront note fidèle de tes moindres objections ; on te pardonnera une petite intrigue galante si elle est bien menée, et non pas un doute ; l’âge supprime l’intrigue et augmente le doute. Agis sur ce principe au tribunal de la pénitence. Tu auras une lettre de recommandation pour un évêque factotum du cardinal archevêque de Naples ; à lui seul tu dois avouer ton escapade en France, et ta présence, le 18 juin, dans les environs de Waterloo. Du reste abrège beaucoup diminue cette aventure, avoue-le seulement pour qu’on ne puisse pas te reprocher de l’avoir cachée ; tu étais si jeune alors !

La seconde idée que le comte t’envoie est celle-ci : S’il te vient une raison brillante, une réplique victorieuse qui change le cours de la conversation, ne cède point à la tentation de briller, garde le silence ; les gens fins verront ton esprit dans tes yeux. Il sera temps d’avoir de l’esprit quand tu seras évêque.

Stendhal: La Chartreuse de Parme, Paris, Larousse, 1910, p. 112.

 

 

Máis de Ernesto V. Souza