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Marco Neves: «Há quem ache que Camões falava e escrevia exactamente como um lisboeta de agora»

MARCONEVESValentim Fagim entrevista Marco Neves, tradutor, gestor e docente universitário português. Vive em Lisboa e tem formação na área das línguas e literatura. É autor do livro ‘Doze Segredos da Língua Portuguesa’ (Guerra e Paz Editores). Escreve no blogue Certas Palavras, onde tem abordado frequentemente o galego e a sua relação com o português.

Nos últimos tempos, falou da língua em entrevistas na rádio e na televisão portuguesas.

Em 16 de junho apresentará ‘Doze Segredos da Língua Portuguesa’ na Livraria Lila de LilithCiranda de Santiago

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Vamos começar com uma pergunta que se responde a si própria, embora cada pessoa o faça de uma forma diferente: As línguas são para quê?

Para que serve uma língua… Enfim, há o óbvio: para comunicar e para nos entendermos uns aos outros. Mas às vezes parece que é o contrário: parece que falamos muito e não nos entendemos — mesmo quando falamos a mesma língua. Ou, às vezes, não nos entendemos exactamente porque falamos a mesma língua. Mas isso dava para um livro inteiro… Aliás, para muitos livros.

Vou agora fazer uma comparação que choca algumas pessoas. Às vezes digo que a língua que usamos é como a roupa que vestimos: tem utilidade prática, claro está, mas também serve para outros propósitos — para mostrar aos outros quem somos, para nos expressarmos, para criar qualquer coisa de novo. E também avaliamos os outros, mal ou bem, olhando para a roupa que usam — e para a língua que falam. Tudo isto é perigoso… Mas não podemos fugir a isso.

Por outras palavras: as línguas servem para aproximar, para criar comunidades, mas também para separar. Gosto de sublinhar aquilo que nos aproxima, mas não há volta a dar: o gosto da separação e o calor da tribo anda sempre a palpitar-nos o coração.

Enfim, vou mesmo olhar para o que nos aproxima: a língua aproxima-nos. E a língua até nos permite a nós — um galego e um português — estarmos aqui a conversar. Incrível, não é?

A primeira questão que dá nas vistas a alguém da Galiza que lê o teu livro é, precisamente, a presença da Galiza. Não é habitual, pois não? Gostávamos de  saber a raiz  desse conhecimento, dessa curiosidade que alimenta o cap. 5. O galego é bem capaz de ser o pai da língua portuguesa.

Boa pergunta… Às vezes, é difícil saber a origem duma inclinação pessoal — alguns chamar-lhe-iam «obsessão». Talvez tenha começado do outro lado da Península: quando era adolescente, uma viagem de carro com os meus pais deixou-me atento ao catalão, por ser uma língua que me parecia invisível aos ouvidos dos outros portugueses. Era como se fosse uma língua secreta.

Isso deixou-me equipado — digamos assim — para ouvir as línguas escondidas dentro do nosso país vizinho. A imagem da Espanha monolingue ficou-me completamente estilhaçada. Ora, estando em Portugal, mais tarde ou mais cedo havia de olhar para cima e reparar na Galiza. Ou seja, estranhamente, o catalão destapou-me os ouvidos para melhor ouvir o galego. A Catalunha apresentou-me a esse familiar que os portugueses têm no sótão… Espero que os galegos não se importem com esta história de vos chamar “um parente no sótão”. Enfim, se quiserem, como vingança, digam que eu vivo na cave da Galiza. Não me importo.

Guerra & Paz, 2016

Em geral, pode-se afirmar, e tu o afirmas no livro, existir um grande desconhecimento da realidade linguística galega em Portugal. São inércias históricas ou talvez a Galiza não case bem com a construção nacional de Portugal?

Não é que os portugueses não oiçam falar da Galiza: todos nós já olhámos para o mapa e sabemos que há ali qualquer coisa mais a norte. E falamos do galego-português nas aulas de Português (mas fica logo despachado no início do ano e avançamos rapidamente para textos mais próximos) e arrisco-me a dizer que, de todas as comunidades espanholas, a Galiza será aquela que todos os portugueses sabem onde fica. Mas pouco mais sabemos do que isto: faz parte de Espanha… Tem umas parecenças com o Norte… Pouco mais, pouco mais… (Estou a generalizar, claro.)

Quanto à língua, enfim, lá está, a imagem que ainda temos é a de que cada Estado tem uma língua… Por mais que nos digam o contrário, os nossos ouvidos não estão habituados a ouvir outra coisa. Ouvimos umas frases com alguns sons que associamos ao espanhol? Só pode ser espanhol!

Depois, se quisermos ir mais fundo, sim, todos nós temos uma história simplificada do nosso país e, por cá, Portugal existe porque se separou de Espanha. Chegamos ao ponto de às vezes dizer que a Batalha de Aljubarrota foi entre portugueses e espanhóis… Espanha é um bloco que existe na nossa narrativa histórica (mais uma vez sublinho: a história simplificada que temos na cabeça, não a História que é estudada por quem se interessa por isso) — e nessa narrativa histórica a Galiza desapareceu. Esfumou-se. Sumiu-se dentro do bloco. Que Espanha tenha durante tanto tempo contado uma história de si mesma que encaixava nesta narrativa simplificada e binária também não ajuda…

Atenção: isto não é má vontade dos portugueses (bem, às vezes também o é, mas nem sempre). É apenas isto: a Galiza não encaixa no que contamos sobre a nossa História.

Quanto à língua… Se quase todos achamos que a língua está intimamente ligada à construção duma nação, o português só pode ter uma origem portuguesa: fomos nós que pegámos no latim e o transformámos em português. Tudo o resto já não interessa. Quando alguns de nós, portugueses com a mania das línguas, dizemos que a língua nasceu dos dois lados do rio Minho, muitos ficam incomodados. Que é lá isso? O português é nosso, ora bolas! E é nosso: mas nasceu num território que incluía a Galiza actual.

Recentemente, a Através Editora publicou ‘A Imagem de Portugal na Galiza‘, de Carlos Quiroga. Numa entrevista ao autor, falando do leitor português, dizia:  Vai saber mais sobre si própria, vendo-se no espelho da Galiza, com dados representativos mas nunca asfixiantes. Como leitor do tal livro, concordas com esta afirmação?

Ora, isso é exactamente o que penso: que olharmos para a Galiza ajuda-nos a perceber melhor o nosso percurso histórico. Por isso acho o livro de Carlos Quiroga tão interessante — e será certamente surpreendente para os portugueses que o queiram ler. Surpreendente, porque os portugueses raramente têm noção da imagem que os galegos têm de nós. É uma imagem surpreendente, até porque é uma imagem complexa, com dinâmicas próprias da Galiza que nós, a sul, não conhecemos. Aliás, escrevo no meu livro que nós temos este triângulo identitário curioso: os portugueses dão importância ao Brasil (que pode traduzir-se em horror, para meu desgosto) e muitos brasileiros nem desconfiam. Já os galegos falam de Portugal (mal e bem) e nós nem reparamos. Muito melhor seria que este triângulo se reencontrasse de forma mais recíproca.

Cito aqui do livro de Carlos Quiroga, que tenho na mão: «Quando e como nasceu Portugal, como cresceu e com quem brincou e se bateu, explicam quem hoje é. E só a vizinha da mansarda de cima sabe. Porque ela esteve de sempre lá.»

Ora, pois: a Galiza é a vizinha de cima. E esteve lá quando nascemos. Magnífica imagem.

E eu acrescentaria, para voltar à língua: a Galiza foi uma vizinha que nos ajudou a aprender a falar — só que já nos esquecemos desses tempos, ficaram perdidos nas brumas da infância.

Agora, tenho de dizer: em Portugal, há uma dificuldade imensa em reconhecer o galego enquanto língua separada do castelhano. Sim, custa acreditar, quando sabemos nós que estamos a falar duma língua tão intimamente ligada ao português, mas o falante comum a sul do Minho tem mesmo sérias dificuldades em reconhecer o galego. Compreende muita coisa, mas há alguns sinais que o cérebro dos portugueses interpreta imediatamente como estranhos, levando a encaixar, de forma natural, o galego na gaveta do espanhol. Ainda há umas semanas, num debate onde estive com o José Ramom Pichel na Juventude da Galiza, em Lisboa, depois duma conversa exactamente sobre a invisibilidade do galego, uma portuguesa pergunta: “mas afinal em que língua esteve a falar?” — isto, virando-se para o José Ramom. Ela achava que tinha estado a ouvir espanhol. Para quem sabe a realidade, é desesperante, mas a abertura das vogais e a entoação um pouco diferente é o suficiente para baralhar o cérebro dos portugueses. Atenção, não é mesmo por mal, como se diz. Por isso gostava tanto que os portugueses ouvissem mais galegos, que conhecessem mais essa língua que tem tanto a ver connosco.

Manuel S. Fonseca, Fernando Venâncio e Marco Neves (foto: Pedro Varela)

No campo social da língua espanhola existe uma atitude que podemos alcunhar de “quanto mais melhor” e que consiste em afirmar que o espanhol se fala mesmo onde não se fala, as Filipinas ou Guiné Equatorial, ou que tem uma saúde férrea mesmo onde não a tem, os EUA. Isto, por vezes, parece contrastar com a atitude portuguesa, obviando a Galiza ou questionando o Brasil. Quanto menos, melhor?

Ui, entramos no mundo dos egos identitários… Dos discursos nacionalistas, ou talvez nem sejam discursos: serão complexos, ou imagens que podemos intuir sem perceber completamente. Terá a ver com o encaixe da imagem que temos da nação… Enfim, o que digo é que temos de ir com cautela. Mas é verdade que já me perguntei isso mesmo muitas vezes: os portugueses têm tendência para dizer que os brasileiros falam «brasileiro». Assumimos uma distinção que os brasileiros não assumem. Já os espanhóis, em geral, insistem mais na tecla da unidade da língua e gostam de sublinhar que o espanhol é uma língua internacional, de não sei quantos milhões de pessoas. Em contraste, muitos portugueses ficam incomodados com os 200 milhões de falantes do português do Brasil. Parece que ou bem que falam exactamente como nós, ou não podem chamar português à sua língua.

Tenho uma teoria: os países de língua espanhola não têm um elefante no meio deles. Não há um país que é maior do que todos os outros países juntos (e mais alguns). Ora, no mundo da língua portuguesa, temos o Brasil com um tamanho desproporcionado. Este tamanho do Brasil leva a que Portugal não tenha um papel de guia da língua que alguns portugueses acham que devia ter. Os brasileiros, verdade seja dita, não ligam muito a Portugal, que está longe e é pequeno. Os portugueses não se sentem bem a pensar num conjunto onde são apenas mais um — e mais um dos pequenos! Ora, no caso da Espanha, esse problema não existe: não há um gigante na turma. Espanha pode julgar-se o rapaz mais popular da turma (mesmo que os outros se andem a rir disso nas costas dele). Assim, para a visão nacionalista espanhola, olhar para a língua no seu conjunto internacional é reconfortante. É um resquício de grandeza imperial, se quisermos. Para um português mais nacionalista, nada disto se aplica: nós não podemos ter ilusões de grandeza num grupo de países onde está o Brasil. Há quem tenha, mesmo assim, mas são poucos.

Outro facto que chama a atenção às pessoas que conhecemos, melhor u pior, a atitude média do cidadão português sobre a variedade brasileira, é que haja um capítulo que leva por título: o português do Brasil não faz mal a ninguém. É tão difícil aceitar que o português é uma língua pluricêntrica, com diferentes variedades, todas legítimas?

Enfim: o português do Brasil mete medo, só pelo peso que tem. Alguns portugueses, mais ciosos duma certa pureza da língua, têm medo que o Brasil nos invada. É um medo absurdo, em todos os sentidos, mas existe.

Há, entre muitos portugueses, a ideia (absurda) de que o português do Brasil é uma língua estragada. Ainda há poucos dias li um comentário no Facebook em que alguém dizia que sentia «nojo» perante uma palavra brasileira. Nojo! Não sei explicar este sentimento tão forte…

Atenção: não me parece que seja uma característica típica dos portugueses. Xenofobia, medo do diferente, teorias da conspiração, tacanhez e ignorância existem em todas as latitudes. Talvez me seja especialmente doloroso este exagero retórico numa área que me diz muito — e principalmente por pessoas do meu país. A xenofobia e o disparate na boca dos nossos dói bastante. Por isso reparo tanto e me sinto tão picado por portugueses que se viram contra quem fala português da maneira que aprendeu e que é tão legítima como a nossa.

Já tive debates com pessoas que acham o português do Brasil uma autêntica perversão. Ora, se assim é, também nós falamos uma língua pervertida, porque é diferente do que já foi. E, aliás, o português do Brasil e o português de Portugal trilharam caminhos divergentes, mas ninguém ficou parado no tempo. Não se pode dizer que os portugueses falam a língua de Camões e os brasileiros é que desataram a correr por aí fora a inventar uma coisa nova. Não: dos dois lados, partimos duma época comum e desenvolvemo-lo de maneira diferente, porque tivemos diferentes influências, diferentes dinâmicas… Aliás, às vezes até me divirto a imaginar que, se Camões aparecesse agora por aí, era bem capaz de perceber melhor um brasileiro do que um português. Já agora, imagino que alguns puristas portugueses ficassem arreliados com a reacção do nosso maior poeta ao ouvir um galego.

Aliás, imaginemos um cenário em que Camões encontra um brasileiro, um galego e um lisboeta (num bar, claro está). O grande poeta ouve-os a todos a conversar. No fim, vira-se para o brasileiro e para o galego e diz-lhes, enquanto aponta para o lisboeta: donde vem este estrangeiro que está aqui a tentar falar português? (Certamente também acharia o falar do brasileiro e do galego um pouco estranho, mas menos do que o do sibilante lisboeta.)

Mas, não, há quem ache que Camões falava exactamente como um lisboeta de agora… E que até escrevia como os portugueses de agora…

Pois isso, sim, cada sociedade tem a legitimidade de falar a língua como esta, naturalmente, existe nessa mesma sociedade. É por isso que insisto tanto na proximidade. Prefiro essa palavra à sempre tão perigosa unidade. Desconfio das unidades à força — aliás, há quem tenha medo de todos os separatismos, mas esquecemo-nos que os unionismos também podem ser muito perigosos.

Olhando para as línguas, julgo que, em sociedades diferentes, deve ser possível à língua desenvolver-se sem unidades impostas à força. Curiosamente, ao lado do histerismo de alguns portugueses perante os brasileirismos, há alguns académicos brasileiros que insistem numa norma que volte a aproximar a norma brasileira do português europeu. Parece-me violento, tendo em conta a realidade linguística do Brasil. As diferenças existem e é normal que um idioma falado em países diferentes acabe por se diferenciar. Estas variedades, quanto a mim, devem respirar por si, independentemente do nome ou dos nomes que se dê à língua, e as normas cultas de cada país tenderão a reflectir essas diferenças — embora se mantenham naturalmente mais próximas umas das outras do que o português da rua, mais livre e com menos peso da tradição. Se alguma coisa podemos fazer para ajudar estes processos é apenas isto: sublinhar a proximidade, sem forçar a barra.

Julgo que não posso escapar a umas breves palavras sobres o acordo ortográfico. Parece-me ter sido um acordo superficial e, quanto a mim, inútil que teve, em Portugal, um impacto muito negativo na visão do português enquanto língua internacional — o que não deixa de ser tristemente irónico. O acordo inquinou a discussão sobre a língua portuguesa, sem vantagens concretas e significativas para os falantes da língua. Não melhorou a comunicação entre todos: eu conseguia ler textos brasileiros sem estas mudanças. Acabou, isso sim, por criar barreiras mentais entre todos.

Bem, voltando a assuntos mais agradáveis. Acho que me estou a repetir, mas isto é importante — é um facto indesmentível que brasileiros, galegos e portugueses falam qualquer coisa de muito próximo. Olhando para o galego, é certamente a língua mais próxima do português. Aliás, há tempos vi um mapa que tentava mostrar graficamente a proximidade lexical das várias línguas europeias, com uma linha menor ou maior conforme a distância entre cada língua — e o português e o galego eram dos poucos pares de línguas em que não conseguíamos ver linha nenhuma: a distância era mínima!

(Nota: o mapa está aqui )

No meu livro, tentei insistir nessa proximidade tanto no que toca ao galego como ao português do Brasil. Tentei dizer que o português do Brasil não nos faz mal: podemos ler livros brasileiros, podemos ver televisão em português do Brasil, podemos conversar à vontade. Não faz mal nenhum! Parece um absurdo dizer isto, porque parece óbvio, mas a verdade é que há quem tenha medo. Ora, também digo o mesmo em relação ao galego: oiçam essa língua curiosa que está aqui ao lado, oiçam os nossos vizinhos que falam de forma tão parecida com a nossa. Se fizerem isso, estarão a olhar para a história da nossa língua, porque esta nasceu entre o Norte e a Galiza. Reparem neste povo que fala qualquer coisa que tem muito de nós. Não digo que o galego e o português sejam a mesma língua (nem me compete a mim dizer tal coisa). Digo apenas que, olhando para a língua, estamos muito próximos uns dos outros. Para muitos, é uma surpresa: é como encontrar um irmão gémeo que não conhecíamos…

Marco Neves é um grande apaixonado polas línguas, não apenas pola própria. Noutros contextos internacionais, diga-se o anglófono, o francófono ou o hispanófono, julgas que existem apertas e afrouxas similares pola posse da língua, pola sua legitimidade?

Julgo que os fenómenos serão parecidos, embora com pesos diferentes dentro de cada sociedade. Na Inglaterra, também existe quem sinta aversão ao inglês americano — parece-me, sem poder comprová-lo com estudos concretos, que não é uma atitude com tanto peso como em Portugal. Em França, julgo que o francês parisiense tem um peso tremendo em todo o território do francês na Europa. Bem, na verdade, quando olho para o francês, os problemas que me surgem terão mais a ver com a aversão para com outras línguas, principalmente as línguas minoritárias de França — e também, num plano muito diferente, para com o inglês, que veio tomar o lugar do francês no que toca à posição de maior prestígio enquanto língua internacional. Esses dois problemas diferentes são, provavelmente, os mais visíveis quando olhamos para França. No Reino Unido, temos uma situação diferente: os ingleses aceitam as línguas minoritárias com alguma facilidade, mas têm uma grande preguiça de aprender línguas estrangeiras. Sei que já estamos a falar de assuntos bem distantes do nosso tema, mas, lá está, sou um apaixonado por estas questões da língua, principalmente na sua relação com a sociedade, com a cultura, com a política. Se olharmos para Espanha, enfim, teríamos aqui outra entrevista, não é? Gostava só de sublinhar a estranha atitude de alguns centralistas, que se viram contra o próprio conceito de bilinguismo, como se saber mais línguas fosse de alguma maneira negativo: ou como se aprender o catalão, o galego ou o basco fosse uma perda de tempo. Depois, quando se fala do espanhol frente ao inglês (por exemplo, em Porto Rico), já temos uma defesa da diversidade linguística. Ou seja, quando falamos das línguas minoritárias de Espanha, insiste-se na inutilidade de saber duas línguas. Quando falamos de línguas em concorrência com o espanhol (o inglês, em primeiro lugar), o bilinguismo é útil, benéfico…

Outro dos focos do teu livro é a mania da correção desnecessária. Falas de uma atitude muito entendida que consiste em anunciar erros que muitas vezes não são tais. Os leitores da Galiza vão achar familiares as tuas narrações. A que crês que se deve essa espécie de neurose. Achas que também ocorre noutras latitudes?

Sim: acho que é comum em muitos países, talvez com variações ao longo do tempo. Por exemplo, conheço bem as guerras da língua no Reino Unido e nos Estados Unidos. No Reino Unido, chegou a haver livros que advogam uma política de tolerância zero na língua. Enfim, neuroses, pânicos morais… Ainda há semanas assisti, em Portugal, a um episódio de guerrilha linguística (isto existe!) em que um grupo de pessoas atacou ferozmente (no Facebook, claro) um jornal por ter publicado uma notícia com uma palavra do registo popular. A palavra é «deslarga». A frase era «A chuva não deslarga». É uma frase que todos compreendem e o verbo «deslargar», aqui, era engraçado, dava um ar de impaciência informal: «Bolas, que isto nunca mais pára de chover.» Pois o jornal foi atacado e, incrivelmente, teve de mudar o título. E a guerrilha ainda veio exigir desculpas formais. Palavras do povo nos jornais? Nem pensar! Só me apeteceu dizer: querem mesmo sangrar a língua até que ela morra? Assim, pelo menos, não se mexe e não incomoda, não é?

Há aqui insegurança: de há algumas décadas para cá, o português-padrão deixou de ser território duma parcela diminuta da população, para ser aprendido por todos. Ora, esta aprendizagem não se faz sem dificuldades, sem hesitações, sem alguma insegurança social e linguística à mistura. Alguns acabam por ser mais papistas do que o papa, a querer ser mais correctos do que os outros todos. Inventam erros e andam por aí com alarmes linguísticos na cabeça, sempre a apontar o dedo aos erros, reais ou inventados. Como todos os moralistas ingénuos, acabam por perder todo o prazer do uso da língua e incomodam os outros.

No dia 16 de junho vais estar na livraria Ciranda/Lilith para falar-nos do teu livro. Que expetativas tens desse encontro com galegos e galegas?

É um gosto especial ir à Galiza apresentar este livro. Aliás, na primeira reunião que tive com o editor sobre a publicação do livro, lembro-me de dizer de imediato que achava muito importante apresentar o livro na Galiza.

Afinal, o livro defende uma visão aberta da língua: falamos como falamos, mas não temos de nos fechar dentro das nossas fronteiras. Podemos aproveitar a nossa própria língua — sem medo — para conversar com os povos que nos estão próximos. O português, felizmente, abre-nos as portas a mais experiências, a mais literatura, a mais pessoas do que pensamos. E isso é bom.

Por isso, acho muito importante aproximar os falantes através de conversas, de livros, de programas de rádio e de televisão, para nos habituarmos uns aos outros, para conhecermos as diferenças de tal maneira que estas começam a ter menos importância e começamos a percebermo-nos porque estamos habituados uns aos outros.

No caso do galego e do português, vejo com muita simpatia a aprendizagem de português por parte dos galegos. É aproveitar a proximidade! Do lado de cá, será bom irmos olhando com mais atenção para os galegos. Talvez, devagarinho, se vá corrigindo essa dificuldade muito séria em ouvir todos os que falam à nossa volta, que afinal falam qualquer coisa que tem muito de nós. Ir à Galiza, no fundo, é sempre um reencontro.

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