Lorena López López (O Páramo, 1983) é a autora da mais recente novidade editorial da Através, Ainda invisíveis? Narradoras e margens na literatura galega contemporânea. Filóloga, professora e poeta – sob o nome Lorena Souto –, oferece neste livro um outro olhar à escrita em prosa de quatro autoras atuais: Margarita Ledo, Teresa Moure, Patricia A. Janeiro e Cris Pavón. Num contexto em que cada vez mais editoras lançam “coleções lilás” torna-se necessário pesquisar quem fica dentro e quem fica fora de um campo literário cisheteropatriarcal, mas em transformação.
Este trabalho nasce da tua tese de doutoramento na Universidade de Bangor, no País de Gales. Como surgiu a ideia, o tema e a focagem da investigação? Que te levou a indagar nesta questão? Ajudou esse contexto diaspórico a desenhar a tua proposta ensaística?
Os estudos literários com perspetiva feminista interessaram-me sempre e já trabalhara sobre a narrativa das autoras no TIT (Trabalho de Investigação Tutorizado) que fiz na USC, mas de uma ótica mais historiográfica e focada na produção dos anos 80 e 90. Depois dito o desafio para mim era ir além e tentar compreender determinadas dinâmicas que estavam a ter lugar naquela mesma altura, já iniciado o século XXI.
O meu tempo na diáspora ajudou-me, em primeiro lugar, com as condições materiais e humanas que me facilitou a Universidade de Bangor e em concreto o Centro de Estudos Galegos ali. Ainda não se fala o suficiente da precaridade em que está sumido o trabalho de pesquisa aqui, nem do solitário que pode resultar o caminho da tese. Por outro lado, durante esse tempo fora aprofundei mais no âmbito dos Estudos Culturais que me forneceu de ferramentas teóricas mui diversas à hora de analisar a prática literária. Além disso, acho que também foi produtiva a perspetiva que às vezes dá a distância, embora o difícil que é a emigração.
O meu tempo na diáspora ajudou-me, em primeiro lugar, com as condições materiais e humanas que me facilitou a Universidade de Bangor e em concreto o Centro de Estudos Galegos ali. Ainda não se fala o suficiente da precaridade em que está sumido o trabalho de pesquisa aqui, nem do solitário que pode resultar o caminho da tese.
A escolha dessas quatro autoras, é claro, não é casual. Pessoas com estilos de escrita diferentes, temáticas diversas, períodos de publicação em ocasiões afastados e até normativas distintas. Mas qual o fio condutor entre todas elas? Sendo mulheres, quais os pontos de encontro e desencontro destas autoras com o género e a nação no nosso contexto cultural particular e subalterno?
Efetivamente, as suas propostas literárias são mui diferentes. Diria que o único que partilha a narrativa das quatro é a ótica feminista, mas materializada de jeitos mui diversos na sua literatura, nisto cumpre insistir.
Porém, o que mais me interessou da sua prosa foram os desencontros. Por exemplo, o jeito crítico em que Ledo Andión se achega à história do nacionalismo desde dentro para o desmistificar e questionar os discursos mais conservadores e essencialistas dentro dele. Cousa que também faz Janeiro em A perspectiva desde a porta ou Teresa Moure no livro de poemas Eu violei o lobo feroz, que falam do independentismo e da repressão de Estado contemporânea. No caso do género resulta mui sugestivo como as três revisam as masculinidades no âmbito da política. Por outro lado, Pavón artelha histórias onde estas questões se entrecruzam com a filosofia e com a tecnologia através de uma focagem positiva mui pouco frequente. Nos seus romances encontramos uma noção da identidade mais porosa e afastada do dicotómico que jogam também com formas alternativas, como o vampirismo ou as máquinas conscientes. E também existem muitas capas de leitura na produção de Moure. Mais além do tema da normativa que analiso na sua trajetória posterior ao 2013, o que mais destacaria da sua última narrativa são os jogos meta-literários e a reflexão acerca da escrita. A isto soma-se uma construção autoral que vai no contra de leituras sobre a escrita das mulheres que acabam funcionando como tópicos limitantes.
No livro falas de ângulos ou pontos cegos na literatura galega contemporânea escrita por mulheres e, provavelmente, é esta uma das apostas do ensaio mais centrais e importantes. Que sentidos encerra este conceito? Como tem funcionado?
Embora o livro faça alusão às margens no subtítulo, a ideia de ângulos cegos responde melhor àquilo que me interessava estudar. Às vezes não é uma questão de figuras ou discursos que em geral sejam totalmente invisíveis, mas das abordagens concretas que deles se fazem.
Podemos exemplificá-lo voltando à questão nacional: esta sempre foi um tema central na produção literária galega, mas a perspetiva particular que adotam Ledo Andión e Janeiro resultou incómodo por olhar para zonas que ficam na sombra. Isto não foi devido somente à sua focagem feminista porque outros romances que incluem estes elementos gozaram de uma receção mais positiva ou foram postas em valor posteriormente. O mesmo acontece no caso dos romances de Pavón em relação à literatura fantástica ou no caso concreto da ficção científica, um terreno pouco visível de seu. Neste subgénero acolheram-se muito melhor as histórias distópicas doutras narradoras do que a sua ficção especulativa. Por outro lado, ninguém irá dizer que Ledo Andión ou Moure são figuras invisíveis na cultura galega, mas precisamente por causa disso chama a atenção que parte da sua produção passe totalmente despercebida. Acho que a noção dos pontos cegos auxilia a análise porque não se move em dicotomias absolutas e pode abordar essas zonas cinzentas, que explicam muito do funcionamento do campo literário.
Ninguém irá dizer que Ledo Andión ou Moure são figuras invisíveis na cultura galega, mas precisamente por causa disso chama a atenção que parte da sua produção passe totalmente despercebida. Acho que a noção dos pontos cegos auxilia a análise porque não se move em dicotomias absolutas e pode abordar essas zonas cinzentas, que explicam muito do funcionamento do campo literário.
No desenvolvimento da investigação – e na sua conversão para o livro que agora se publica –, a tua própria identidade como mulher galega (e escritora, e leitora, e muitas outras cousas) teve um papel importante nos processos de crítica cultural que constróis na obra? Pensas que “o nacional” na cultura galega é alvo de uma desconstrução desde o feminismo e desde a literatura; ou, diferentemente, pode servir como um elemento de retroalimentação para um horizonte mais interseccional?
Sempre que falarmos, fazemo-lo de algum lugar, seja de jeito consciente ou inconsciente. Portanto, sem dúvida, a minha identidade e os meus posicionamentos atravessam o meu trabalho. Mas também penso que a consciência dessa posição e a sua revisão constante pode ajudar-nos a entender melhor o mundo.
O(s) feminismo(s) levam décadas a desconstruir “o nacional”, na Galiza fizeram e fazem um trabalho crucial e necessário nesse sentido. Mas esta visão é totalmente compatível com um horizonte interseccional no caso das nações menorizadas, onde o nacional tem um papel de resistência, não de opressão. Julgo que a (auto)crítica ajuda a essa interseccionalidade e pode ser uma ferramenta para coutar visões conservadoras e monolíticas.
As autorias que analisas no livro podem ser consideradas autorias radicais, marginais ou periféricas. A clássica “morte do autor” é também uma “morte da autora” ou pode, no entanto, servir de cinza e combustível para outras autorias menos normativas?
Este foi um grande debate dentro dos estudos literários feministas e, como quase sempre, decanto-me pola escala de cinzas. Considero que, por um lado, há uma parte material ineludível: se o contexto em que se escreve é patriarcal, os preconceitos continuarão a funcionar contra as autoras, por isso resulta relevante enfatizar as posições desde as quais se escreve quando estas são assimétricas. Porém, por outro lado, concordo com a ideia de que as fendas nos grandes conceitos deixam entrar a luz. O questionamento sobre o conceito mesmo de autoria serviu e serve para entender melhor a complexidade do processo literário e, sim, também para deixar espaço a maneiras menos normativas de exercê-la porque interroga as premissas sobre as quais se constrói.
Se o contexto em que se escreve é patriarcal, os preconceitos continuarão a funcionar contra as autoras, por isso resulta relevante enfatizar as posições desde as quais se escreve quando estas são assimétricas. Porém, por outro lado, concordo com a ideia de que as fendas nos grandes conceitos deixam entrar a luz.
Quais achas que são os desafios mais importantes para a narrativa galega escrita por mulheres nas próximas décadas?
Leva afrontado muitos e penso que, na sua diversidade, cada autora tem que procurar os seus próprios desafios. Pessoalmente, como leitora, na narrativa em geral acho em falta algo mais de exploração e projetos arriscados formalmente. Não obstante, penso que no caso concreto da narrativa das escritoras o desafio tem a ver com o tipo de discursos que se geram ao seu redor. Cumpre não só repararmos na questão da visibilidade, mas em como se visibiliza, que se salienta, que se esquece ou que achegas ficam ocultas e por que, que é o que eu tentei fazer nesta obra. Acho que temos que insistir na diversidade de repertórios criativos que elas achegam e na riqueza daquilo que os constrói como artefactos literários. Por exemplo, às vezes é algo frustrante ver como em algumas entrevistas ou leituras se desatende o trabalho literário (a construção das personagens, as técnicas formais, etc.) para reparar tão só no discurso geral de um jeito que às vezes tende a uniformizar as propostas criativas.