Línguas de preto

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Crianças afroamericanas condenadas a trabalhos forçados em 1903 nos EUA. — John L. Spivak
Crianças afroamericanas condenadas a trabalhos forçados em 1903 nos EUA. — John L. Spivak

Mentres o movimento Black Lives Matter acendia as ruas estadounidenses, várias vozes quigérom traçar paralelismos entre a situação das galegofalantes e a das afro-americanas. A comparação, que não é nova e pudera entender-se a partir da irmandade, não parecia mui apropriada feita sobre o cadáver de George Floyd. Mas quiçá agora podamos perguntar-nos se, a um nível apenas linguístico, há alguma semelhança entre ambas as duas.

Não existe uma língua única na comunidade afro-americana, mas adoita associar-se com ela o chamado Afroamerican Vernacular English (AAVE), que conhecemos polas caracterizações das pessoas negras nos filmes e na TV. A língua que James Baldwin chamou “a criação da diáspora negra” é especialmente usada entre as classes mais baixas e as pessoas do rural. Os prejuízos e a discriminação que isso provoca bem podem traduzir-se ao galego de Malpica ou da Peroja.

A língua que James Baldwin chamou “a criação da diáspora negra” é especialmente usada entre as classes mais baixas e as pessoas do rural. Os prejuízos e a discriminação que isso provoca bem podem traduzir-se ao galego de Malpica ou da Peroja.

Contodo, ainda que haja registos do AAVE desde o princípio do século XIX, é evidente que a população africana não chegou à América sabendo inglês. As escravizadas passárom o Atlântico com os sons e as palavras do hausa, o iorubá, o acã e dúzias de outras línguas. Pensando nelas, começa a entender-se o corte brutal da escravitude: nos EUA falam-se variedades de neerlandês ou castelhano que podemos remontar ao século XVII, mas as línguas africanas desaparecérom quase completamente no pouco mais de século e meio que nos separa do desembarco do último “navio negreiro”.

Muitos movimentos de libertação negra figérom, com todo o direito, bandeira do AAVE. Mas os estudos opinam que há que buscar a sua origem no inglês do sul dos EUA em que eram berradas as ordens que acompanhavam o látego. A contribuição das línguas africanas a esta variedade linguística seria mínima. Por outra banda, conservam-se relatos e documentos das africanas escravizadas, mas só um exemplo não nos chega em inglés: Omar ibn Said, provavelmente falante nativo de fula, escreveu o seu testemunho na língua em que foi alfabetizado, o árabe.

É certo que existem falas com influências africanas espalhadas polo continente americano: o gullah no sueste dos EUA, o afro-seminole no norte do México, o palenquero na Colômbia… Mas a base destes crioulos é sempre uma língua europeia. Temos ainda o langaj do vudu ou o lucumi da santeria, mas trata-se de variedades usadas só para a liturgia. A transmissão cortou-se de raiz e as únicas línguas africanas que se falam hoje na América provenhem de migrações mui posteriores.

Temos ainda o langaj do vudu ou o lucumi da santeria, mas trata-se de variedades usadas só para a liturgia. A transmissão cortou-se de raiz e as únicas línguas africanas que se falam hoje na América provenhem de migrações mui posteriores.

No barroco ibérico foram mui populares os vilancicos plurilíngues, nos quais idiomas considerados inferiores ou rústicos, entre eles o galego, eram ridiculizados. À imitação do português das escravas negras nestas composições chamárom-lhe os tugas “língua de preto”. Mas entre as onomatopeias desse arremedo às vezes ocultam-se mensagens segredas: Se escuitarmos a partir do kikongo,  “tumbucutú” soa-nos a tumba, ‘alborotar’, e “ugulù gulungà”, a ngoma, ‘tambor’. E chegam-nos os ecos daquelas línguas de preto que fôrom arrebatadas.

[Este artigo foi publicado originariamente no Novas.gal]

Máis de Iván Cuevas