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José Johão Rodríguez Rodrigues:”Pouco debate há entre as estudantes: não há isolacionistas militantes, só utentes ordinárias e reintegracionistas teimosas”

José Johão Rodríguez Rodrigues é corunhês, nado num lar castelhano-falante. Começou a falar galego na adolescência, o que sentia como uma obrigação moral. Julga que o relato oficialista é uma miragem. Uma pergunta que se faz é porque os seus professores de galego nunca lhe falaram de reintegracionismo. As aulas com Teresa Moure,  na sala C07 da Faculdade de Filologia, foram importantes para mudar a sua forma de ver e viver o galego. Nessa faculdade, é possível obter o diploma sem saber nada ou quase nada do reintegracionismo. Por fim, julga que a resistência é uma obrigação para o reintegracionismo organizado.

O Jota, alcunha com a que és conhecido, nasceu na Corunha. Como foi a tua infância linguística?

20210501_171413Como a não linguística: muito tranquila. Na Corunha, no bairro de Peruleiro, morei também até os 18 anos e, nesse tempo, pouco português (leia-se, galego) ouvi. Lembro que quando estava no ensino infantil havia uma companheira de Arteijo que o falava, não apenas na minha turma, mas calculo que em todo o CEIP. Lembro também que todo o português que eu sabia era por memorizar os anúncios do Xabarín mas que nunca fui capaz de manter uma conversa fluída até bem maior. Meu pai é natural de Valhadolid e minha mãe da Corunha mas na sua casa sempre se falou castelhano, e lembro que sempre que lhes perguntava algo sobre o português (como é que se diz…?) respondiam que teria de esperar a ser lecionado na escola.

O processo habitual dos neo-falantes é uma primavera adolescente onde o castelhano fica para atrás e advém um assentamento mais ou menos firme no galego. Como foi o processo no teu caso?

Algo assim, só que sem referências. Ao chegar ao secundário, no IES Rafael Dieste descobri que algumas pessoas dos bairros vizinhos falavam português com as suas famílias e eu queria entrar nesse circuito, mas essas pessoas em geral não queriam falá-lo fora da casa (ou das suas respetivas aldeias). Com efeito, a partir de terceiro ou quarto do ESO (14-15 anos) adquiri uma certa sensibilidade pelos temas culturais: comecei a gostar da poesia, a escrever as minhas próprias coisas… e suponho que aí veio o sentimento de que, ao menos, era uma possibilidade fazê-lo em português. Isto era, aliás, um canal de escape muito bom e um espaço ótimo para a prática: eu tinha a possibilidade de ser questionado se falava português em público, mas o papel nada me ia contestar escrevesse como lhe escrevesse. Digo português mas a única norma que eu conhecia era, claro, a ILG-RAG. De resto, foi para mim um processo nada ou quase nada político, ao menos conscientemente: eu sabia que havia duas línguas e que uma não se usava (isso era o que eu percebia), assim que simplesmente entendia o uso como uma obrigação moral. Depois isto deixou de ser assim, como calculo que teremos ocasião de falar.

Em que momento começaste a intuir que o relato isolacionista era uma miragem? Que te permitiu aprofundar nessa dialética?

Nem sei se uma miragem. Eu tenho muita estima pelo relato isolacionista, com certeza, e por muitas pessoas que o defendem. O que sim é uma miragem, e entendo que a isto te referes, é o relato que poderíamos chamar de oficialista: a ideia de que a língua galega é isso, que nada mais cabe nela e que qualquer desviação é simplesmente um erro que não merece a voz (coisa que não creio que defendam todas as isolatas). Ao lado da minha casa na Corunha houve muitos anos um grafitti que dizia Galiza ceive e eu não era capaz de entender porque alguém com a decisão de pintar uma parede pública não fora assim corajos@ para consultar um dicionário e descobrir que devia escrever Galicia ceibe. Hoje penso com muita pena em todas as docentes que lecionaram a matéria de Língua e literatura galegas no meu IES e sempre me pergunto como é que nunca me/nos falaram sobre o reintegracionismo (nem sequer uma delas em específico, que algumas décadas para trás tinha escrito textos certamente importantes para o reintegracionismo), porque se limitaram a reproduzir o discurso legitimado e a imprimi-lo nas nossas condutas. Procuro pensar que simplesmente uma turma como a minha onde ninguém falava português não era a ótima para sair-se do currículo.

Ao lado da minha casa na Corunha houve muitos anos um grafitti que dizia Galiza ceive e eu não era capaz de entender porque alguém com a decisão de pintar uma parede pública não fora assim corajos@ para consultar um dicionário e descobrir que devia escrever Galicia ceibe.

Quanto à segunda pergunta, brevemente, descobri o que era o reintegracionismo quando um amigo corunhês mais velho do que eu chegou a Compostela e tinha companheiras que vertiam umas mensagens estranhíssimas para o grupo de Whatsapp. No começo ri muito, suponho que pela minha educação linguística prévia, mas um dia decidi pensar. Há quem pensa e continua a pensar que são parvoíces, mas eu gostei. Depois cheguei eu à faculdade e vi que, embora nas margens, o discurso existia, e que três dias à semana inundava durante uma hora a sala C07, que era onde a Teresa Moure ensinava (e ensina) sociolinguística e planificação das línguas. Um dia decidi ir como ouvinte e até hoje.

O Jota estuda O Grau de Língua e literatura galegas na USC. Como é a saúde universitária quanto ao debate, quer no estudantado quer no corpo docente?

1636387897963O debate praticamente não existe, é possível (e muito provável) obter o diploma sem saber nada ou quase nada do reintegracionismo. Na matéria Língua galega 2 fala-se dele como uma coisa da década de 80 e só em terceiro curso, em duas cadeiras concretas, se apresenta o debate e se permite a reflexão. Nestes dois últimos casos, eu julgo que a conduta das docentes foi correta, sendo em ambos os casos grandes cabeças do isolacionismo. Eu, pessoalmente, discutia quanto queria e nunca fui desqualificado (mesmo obtive a máxima nota num exercício em que defendia a aplicação do Acordo Ortográfico para a Galiza). Nesta altura tenho boa relação e agradeço muito todas as conversas com elas, acho que é bom partilhar focagens e levar-se a contrária.

Ora, isto não pode obscurecer o facto de ser um relato e uns agentes concretos os que detêm a legitimidade e a capacidade de produzir e reproduzir a sua ideologia em forma de proposições de verdade. O que nunca me ocorreu, claro, foi apresentar um trabalho escrito em padrão. Uma vez analisei (em norma ILG-RAG) um texto escrito em NormAGAL e a pessoa responsável pela matéria disse-me que não corrigiria esse trabalho e que devia fazer outro, em prazo de três dias, escolhendo esta vez um texto “em língua galega”. Dirigi-me ao Departamento e a docente acabou por ceder (o trabalho, por sinal, estava bem feito). Depois, outra pessoa do corpo docente (com quem nunca tive aulas) deixou de me cumprimentar após eu ter publicado um artigo sobre a questão normativa. Em suma, tive grandes surpresas, algumas boas e outras nem tanto.

Uma vez analisei (em norma ILG-RAG) um texto escrito em NormAGAL e a pessoa responsável pela matéria disse-me que não corrigiria esse trabalho e que devia fazer outro, em prazo de três dias, escolhendo esta vez um texto “em língua galega”. Dirigi-me ao Departamento e a docente acabou por ceder (o trabalho, por sinal, estava bem feito).

Quanto ao alunado, na minha turma havia apenas outra reintegracionista, e com ela é que partilhei sempre as minhas perspetivas e preocupações sobre o tema. Durante estes anos fez-me sentir uma pessoa normal, algo que noutras circunstâncias teria sido complicado, decerto. O apoio mútuo é imprescindível nas margens. De resto, pouco debate há entre as estudantes: não há isolacionistas militantes, só utentes ordinárias e reintegracionistas teimosas. Por vezes, parece que ganharam.

Estás a trabalhar num projeto para a Através Editora. Que nos queres comentar a esse respeito?
É um livro. Uma investigação sobre o debate, sobre quem é que ordena o que é galego e o que não e sobre os motivos históricos pelos que esse(s) agente(s) goza(m) dessa legitimidade. Confio em que constitua uma proposta de rigor e em que sirva para algumas pessoas questionarem a sua visão da língua da Galiza. Não pretendo necessariamente mudar a ideia de ninguém: apenas oferecer um relato justo com a realidade e crítico com ela (e com os relatos prévios) e propor uma série de reflexões a respeito.

Por onde julgas que deveria transitar o reintegracionismo para avançar socialmente, sobretudo entre a juventude?

1636387897988Não sei se tem muitas mais opções com o marco em que se move, em que nos movemos. O discurso está na rua, nalguns meios de comunicação e nas prateleiras dalgumas livrarias e bibliotecas e é bom que se continuem a fomentar essas contra-esferas, que se ocupe um espaço social cada vez mais significativo. Já que mo perguntas, suponho que a oferta de, por exemplo, relatórios em liceus sobre as alternativas à norma ILG-RAG (e, sobretudo, ao castelhano) pode ser uma forma interessante de nos aproximarmos da gente mais nova. Porém, acho que é mais importante a fortaleza ideológica do que a pedagogia ou o marketing e, sobretudo, preocupa-me mais. O devir das décadas foi-nos mostrando como grupos a priori dissidentes acabavam por se diluir na oficialidade e por mudar as suas práticas linguísticas em favor das legitimadas. Parece-me complicado que o debate normativo da língua da Galiza se solucione com um acordo entre partes, e acho que a resistência é uma obrigação para o reintegracionismo organizado.

Parece-me complicado que o debate normativo da língua da Galiza se solucione com um acordo entre partes, e acho que a resistência é uma obrigação para o reintegracionismo organizado.

Porque te tornaste sócio da Agal e que esperas do trabalho da associação?

Escrever português está muito bem, e queimar as minhas achegadas ou não tão achegadas com o discurso reintegrata também, mas não entendo nada disto como uma ação política efetiva, não ao menos como a mais útil. Pelos motivos que for, eu entendo que o melhor para a Galiza é adotar a norma portuguesa, e acho que para socializar essa mensagem é necessária a ação coletiva, em forma de muito trabalho e muito dinheiro. Sem isto parece-me complicado criar espaços alternativos aos que oferecem as instituições sociais vigorantes ou hegemónicas (não apenas as da administração, como também as editoras, os jornais e demais).

eu entendo que o melhor para a Galiza é adotar a norma portuguesa, e acho que para socializar essa mensagem é necessária a ação coletiva, em forma de muito trabalho e muito dinheiro. Sem isto parece-me complicado criar espaços alternativos aos que oferecem as instituições sociais vigorantes ou hegemónicas (não apenas as da administração, como também as editoras, os jornais e demais).

De resto, sim tenho discordâncias com algumas estratégias da associação, como as há em todas as plataformas diversas e mais a esta escala, mas nesta altura parece-me que a AGAL é um muito bom alvo para o meu trabalho e o meu dinheiro. Aliás, como já disse, penso que o apoio mútuo é imprescindível quando as normas do jogo vão em contra, como é o caso, e a AGAL pode ser esse espaço onde partilhar teimas e cuidados para enfrentar a vida cultural com outro ânimo.

Em 2021 somamos 40 anos de oficialidade do galego. Como valorarias esse processo? Que foi o melhor e que foi o pior?

Suponho que é bom que exista um certo amparo, um marco legal que obrigue ao respeito e que garanta uns mínimos direitos linguísticos, mas, como uma vez me disseram, a legalidade não é feita para as rebeldes. Com efeito, oficializar uma língua implica por definição colocar uns limites para ela e descrever a sua estrutura, oferecer um repertório de formas e de normas até então não oficiais, que passam a sê-lo com a dita performance jurídica (declarar, em definitivo, o que é que se oficializa). Portanto, se as formas que eu considero legítimas continuam sem estar legitimadas, sem oferecer amparo a quem as usa, por muito que sejam milhares de pessoas em todo o país… acho que o processo só ajuda parcialmente. Isto tudo obviando, claro, a fraqueza com que se defendem os direitos das falantes que sim acatam as prescrições ditas oficiais.
Em suma, o melhor é que agora e já desde há 40 anos, o galego é uma língua oficial; o pior, que o português não.

Como gostavas que fosse o “fotograma linguístico” da Galiza em 2050?

Devo confessar que, embora não o pareça, não sou nada fanático com o tema da língua: não me preocupa especialmente que a gente fale português ou que fale castelhano. Prefiro uma pessoa que trabalha arreio na construção duma Galiza livre e independente, por muito castelhano que fale, que uma luso-falante intransigente que não faz nada pelo País. Não sei, é a minha forma de vê-lo. Então, nesse sentido, prefiro dizer-te que para 2050 gostava de ter uma Galiza como a que sonhou Otero Pedrayo e como a contou a Víctor Freixanes para o livro de conversas Unha ducia de galegos (Galaxia, 2017 [1974]): ”uma Galiza grande e campesina, com os seus filhos na terra, vencelhados à terra, vivendo para a terra; gostaria de uma grande república campesina para o meu país, verdecida, nova, agromando como a primavera”.

Conhecendo o Jota

Um sítio web: claracorbelhe.gal

Um invento: a norma ILG-RAG

Uma música: “lembra-me um sonho lindo” do Fausto

Um livro: O que falar quer dizer de Bourdieu

Um facto histórico: as revoltas irmandinhas do século XV

Um prato na mesa: quase qualquer coisa feita pelo meu pai

Um desporto: há muitos anos que não faço mais que caminhar, mas pratiquei tae taekwondo muito tempo, portanto digo esse

Um filme: some like it hot de Billy Wilder

Uma maravilha: a cantiga do desconforto, de Afonso X

Além de galego/a: operário

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