ilusão retrospectiva

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Black Bishop: Push, that galician sconce can work out wonders.
(Thomas Middleton: A Game at Chess, Act II, Scene ii, 242, 1624.)

Quebras em sucessão, ostracismos consecutivos, imposições seguidas, destruições prolongadas. A história da Galiza, a partir de certa altura, é uma sucessão de desgaste, resistência, destruição, paciência e saqueio. Uma perda de centralidade e uma míngua de conteúdos, de presença, de status como elemento basal e conformante, de sentido, influência, presença social, demográfica, política, histórica e até de território geográfico e simbólico. Alheamento, desatlantização, periferização, ausência e sono.

Nesse sentido podemos dividir a sua história a respeito das cronologias epocais clássicas, sendo comumente aceite que a cada fase de consolidação de Portugal independente e de uma Espanha castelhano-aragonesa, nomeadamente desde o Renascimento supuseram constantes de periferização, marginalização e apagamento da cultura, da sociedade, do território, da economia, da paisagem, da política própria e também da língua.

Poderíamos dizer que o Renascimento, com a consolidação de projetos centralistas e de Reinos mais fortes e estáveis, garantes de potências militares, burocracias, justiças e administrações (e com elas a língua, a cultura e com o nascimento das literaturas) supeditados a monarquias mais modernas fixa um ponto de inflexão para muitas das mais velhas nações, estados, reinos e condados da Europa. E que o período imediatamente post-napoleônico, com a construção, autorizada pelas grandes potências de Viena, dos estados-nação viáveis define o de não retorno.

Para o caso galego ambos os marcos históricos são gritantes. A transformação dos velhos sistemas políticos peninsulares e a deriva modernizante – com reutilização das elites locais na administração, na política de estado, guerra e na diplomacia – e imperial, iniciada com os Reis católicos em 1480; e a construção do-estado nação moderno após a restauração absolutista e com apoio militar das grandes potências europeias, da casa de Bourbon em 1823.

Antes de ambas as fases podemos contemplar também os dous grandes momentos dos últimos fulgores galaicos: a primeira na lealdade à dinastia de Borgonha e a linhagem de Pedro I contra os Trastamara e a seguir quase como continuum ou repetição a aposta por Portugal e Joana contra o partido aragonês e Isabel. E, a segunda, na reação militar, social e nacional com aliança com Portugal e Inglaterra, contra a invasão francesa e depois como reduto último da modernidade ilustrada, em defesa da constituição liberal de 1812 e outra ideia da Espanha.

Depois de ambas as fases e conseguintes derrotas persistirá uma constante de reação (identitária) a ambos os modelos de poder em construção. Curiosamente neles a presença de Portugal será marcante.

Nomeadamente no período comum da monarquia filipina, que favorecia extraordinariamente a economia da Galiza e a influência das suas elites em Portugal e Castela e que curiosamente coincide com o primeiro revival, reivindicação e polêmicas em defesa da Galiza, dos galegos, e do seu papel na história. Coincide também com uma ressurreição do mecenado, da cultura e até das manifestações cultas em língua galega e portuguesa na Galiza.

E também, desde 1823, será uma constante na reaparição da voz da intelectualidade galega, reagindo, a cada fase nova no projeto de construção nacional do estado espanhol. Mais intensos e mais galegos quanto mais a intelectualidade galega, por exílios ou por mudanças políticas e culturais no país do sul, tenha presente Portugal. Os exílios espanhóis de 1814, 1823 e depois 1846, 1854, 1886 são evidentes. Como também será a literatura portuguesa da época liberal e do período nacionalista e nomeadamente o sonho da República de 1910.

Como afeta isto tudo ao processo de restauração e reconstrução da língua galega na Galiza? e como curiosamente termina por construir-se um discurso diferenciador, uma ilusão retrospectiva que permitiu a Portugal esquecer a Galiza e à Galiza se dissociar de Portugal? Quando e como? pois o porque é evidente.

velho rei

“O velho rei” Ortiz Alonso, litografia (ca. 1965)

Proponho, para isto, nos centrar na mudança conceitual a respeito da identidade da língua, que introduzem os sábios padres Feijó e Sarmiento, dentro do esquema nacional/nacionalismo, no abandono definitivo do Latim como língua internacional de ciência, cultura e da Academia e no começo do decurso dos processos de fixação da língua nacional no mundo académico e cultural impresso e em normas unificadas da época.

Como bons e primeiros patriotas galegos (e leais conselheiros de el-rei de Espanha) e dentro de uma tradição imediata de anti-portuguesismo, nos ecos da Guerra de Separação de Portugal (no bafo internacional da Guerra dos 30 anos) e de Sucessão (a prolongação desse conflito internacional de alianças da época moderna); e de “ofensas” e “preterimentos” que se prolongam em toda a nossa tradição e continuam até o mesmo Ferrin hoje, e passam, por Vicetto, Murguia, Castelao, Otero e os vultos galegos do XIX e XX.

Como já sabemos Feijó é o primeiro que dentro do iluminismo ilustrado defende o galego e quem o antes e mais claramente relaciona com o português (no seu Corolário ao Paralelo das Línguas) e também o primeiro que propõe que de se escrever faça-se tal como fazem os portugueses (cuja língua, para ele é a galega com vozes cultas, modernas, técnicas, arábigas, etc). Porém, Martim Sarmiento é o primeiro que realmente faz sistematicamente, mas atenção, propõe uma inovação fundamental – quanto a quase completa sistematização teórica, nas suas mais diversas achegas escritas e destacadamente prática nas Copras dos 24 gallegos rústicos – a de escrever o galego, diferenciando-o do português da altura, e do que faziam os portugueses (os que conhece e odeia patrioticamente).

Sarmiento formaliza definitivamente uma escrita culta exclusivista, com base na tradição escrita galega, com um forte conhecimento da oralidade e da recolha, mas, em base o que conhece, e numa vontade declarada, tomando como modelos o dos documentos antigos em galego dos arquivos dos mosteiros e dos monumentos e não o português contemporâneo. Do que escapa (podemos considerar que em justiça histórica reparadora pela construção independente e a contrario da Galiza e do galego antigo e do antigaleguismo de Portugal).

Mas antes dele não era assim, porque não existia marcativo o conceito “nacional”. Nem a respeito do que era uma língua (plena, completa, nacional), nem a respeito do que era uma literatura Nacional (na sua época, na França primeiro e na Espanha Castelhana e Portugal depois, está a começar o processo de construção e fixação do cânone nacional e a nascer a Literatura tal como hoje a entendemos).

Uma vez fixado este marco, cumpre ir cara atrás para demonstrar que ainda no século XVII, non se diferenciava para os galegos eruditos nem português (nem castelhano) de galego, senão que se funcionava dentro do esquema de usos, dialetos e géneros medieval. Para além de que nem o português dera o salto definitivo na sua construção moderna, nem o castelhano terminara ainda os processos de reconstrução e sistematização, ambas como línguas fixadas em esquemas linguístico ortográficos coerentes e diferenciados.

Na altura, conviviam impressos e escritos de mão, da mais diversa época e escolas. Sendo os escritos de literatura e história de Portugal normais nas bibliotecas dos eruditos e colecionistas da época e a escrita em português ou galego deles (fragmentar, epistolar ou literária) indistinguível. E apenas classificável como galega ou portuguesa pelos eruditos contemporâneos em função das suas crenças e pelos mais modernos em função da história aprendida das nações e da mitificação poética posterior e explicativa dos “Séculos escuros” e da separação.

Chegados a este ponto, talvez conviria atender a todo aquilo que depois (a produção dos século XVII, XIX e XX e a celebrada descoberta dos textos medievais e de restos de escrita dos séculos XV a XVII) temos considerado como “verdadeiro galego enxebre” e questionar-nos se precisamente o caráter de galego (ou mais galego), não vem justo dado a posteriori, ou foi estabelecido para – ou por – aqueles textos que eram MARCADAMENTE anti-portugueses ou destacadamente singularizantes (a respeito da escrita do português contemporâneo a eles). Destaquem-se, na possível listagem, as  três saídas da Crônica Troyana, os escritos do Padre Cernadas, os restos teatrais (patrióticos, burlescos, anti-portugueses), os restos poéticos de caráter culto, identitário, críptico-patriótico e da literatura propagandística da francesada, dos textos da imprensa liberal.

Enfim e simplesmente: de todos os textos que claramente escritos na Galiza ou por galegos, não estando escritos em castelhano ou latim não pretendiam (nem queriam) ser confundidos com Português ou de portugueses.

O fenómeno contrário, claro, existe também durante os séculos XVI e XVIII: textos que querem passar por portugueses e também textos de mais difícil classificação que francamente, se entenderiam melhor apagando a ilusão retrospectiva e considerando que são produções galegas de gente que conhece, frequenta e lê em português, ou de portugueses num ambiente de predomínio galego.

Portanto: balizemos se a produção é anterior ou posterior à Guerra de Separação de Portugal (1640-1668). Ou se é da época e propaganda atraente dos primeiros Filipes ou posterior.

Uma vez nestas coordenadas cumpria tomar fôlegos e determinar que antes e destacadamente depois de Sarmiento existem duas tradições na escrita do galego: a daqueles eruditos e intelectuais que conheciam a tradição escrita portuguesa e a documental galega e a dos que não. E depois dele, a dos que conhecendo, continuavam Sarmiento e Feijó (Pintos, Romero Ortiz, os Camino, Añón, La Iglesia, Murguia Rosalia, Pondal, Cova céltica) e a daqueles que se limitam, usando a ortografia nova fixada pela Real Academia Espanhola do castelhano, a reproduzir foneticamente o que acreditam escutar e escolmavam enxebremente (Lamas Carvajal, Pérez Ballesteros, Curros, Barcia Caballero, Filomena Dato…).

Os primeiros representam a escrita desde a tradição conservada e o português (mas seguindo a Sarmiento, com jeito próprio), os segundos escrevem desde o castelhano, que de mais em mais, como língua de estado e dentro dos progressos da imprensa e a alfabetização é ou vai sendo onipresente.

No decurso deste debate que ocupa toda a segunda metade do século XIX entre cultistas e popularistas e, já nos anos 50-60 do século XIX, acontece uma proposta desgraçada e utilitarista (de “normalização” da singularidade galega como dialeto do castelhano espanhol) que vai ser a fixação culta e gramatical da escola castelanizante popularista, por obra e graça da publicação em 1868, da nefanda gramática de Saco e Arce.

Que é o sucesso que rompe definitivamente a tradição escrita em duas linhas de modelo culto e que inicia, com sucesso, o Isolacionismo moderno, ao encontrar apoio na corrente simplificadora popularista e nas instituições do estado, que acham “melhor” a declarada submissão do autor à ortografia proposta pela RAE. Gramática e proposta que encontra grande apoio na pragmática e na política institucional e na imprensa adscrita, verdadeira máquina espanholizadora de fins do XIX.

O que aconteceu depois ainda não foi bem explicado, nem debatido, pois afeta aos modelos em pugna, atuais e do passado mais próximo, que colidem na construção do Galego moderno.

Mas a dúvida, nas assas da coerência, lógica e explicação necessária, leva-me a considerar este contexto e perguntar e que passaria e se escolhemos como item referencial simbólico ou identitário o ponto anterior a Sarmiento e a ideologia da era das nações?

É dizer, eu hoje, após este périplo sintético e pessoal e sem renunciar aos admirados mestres Sarmiento e Feijó, vejo-me mais com o Conde de Gondomar (esse Montaigne à galega), pensando na pirataria atlântica, no comercio, na economia, na política agrária e florestal da Galiza, na aliança com Inglaterra e Portugal e enchendo a minha biblioteca de velhos livros, recomendando e agasalhando para entretimento dos amigos “Menina e moça” e a polemizar com o preterimento, maltrato da Galiza e com a história antigalega que inventaram pro domo sua tanto os biscainhos de Garibay, os aragoneses de Zurita quanto Brito e os portugueses.

* Publicado em A viagem dos Argonautas

Máis de Ernesto V. Souza