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Festival Literário da Madeira: viagem a uma periferia central (I)

Carlos Quiroga – Século XV, ano 18. Caravelas farejando a costa africana são lançadas à deriva por um vendaval. No desespero, avistam pequena ilha redentora que para elas e o orbe será Porto Santo. Ano a seguir volta Zarco mas o pavor acampara entre os deixados a povoar, que falam de confusa fama citada por Manuel de Melo: Que aparecia no golfo do mar certa escuridão contínua e cerrada desde a água ao Céu, a qual jamais se desfazia ou alterava, mas com medonho ruído –que alguma vez se ouvia no Porto Santo– parecia guardada sobrenaturalmente.

Adverte ainda ter-se por impossível ou milagroso que quem perdesse a terra de vista pudesse tornar a ela, pois até àqueles tempos ninguém navegava por altura mas junto à costa. Assim aquela escuridão «era geralmente julgada por um abismo, e ainda com esse nome nomeada». Boca do Inferno, antiga Ilha Cipango por mistério de Deus encoberta, não faltaram até Teólogos e Historiadores que abonassem o temor, e tratar da averiguação seria erro e pecado manifesto contra a Providência divina. Mas Zarco conseguiu convencer os seus homens, porque navegar é mais preciso que viver: «Nunca a noite é tão escura como quando quer amanhecer», disse o Capitão aos marinheiros. E a ‘remota sombra’ revelou-se ilha de imensos bosques no meio do Atlântico, Pórtico dos Descobrimentos.

contrastes

Visitei a Madeira pela primeira vez vinte anos atrás. A fotografia barbada da primeira edição de Periferias é daí. Sentiam-se bem nessa altura os mil Km que distavam do centro simbólico da Lusofonia que metaforiza o livro. A ilha terá sido portal de mundos mas fora ficando num limbo de ingleses –adoram com razão o vinho, e a lendária fuga por amor que levou lá morrer Ana de Arfet e Roberto Machino, a donzela formosíssima a cuja mão famosa em toda a Cidade de Londres aspiravam Príncipes mas cujo amor era do raptor. Por isso mais sugestivo que a capital saturada de hotéis era perder-se no festim botânico do conjunto montanhoso, fugir para Câmara de Lobos, esquadrinhar vales profundos e falésias a pico da janela de um pequeno Fiat, ou ir tomar banhos em Porto Moniz

Mas desta vez o calendário é apertado e pouco poderei safar-me do centro urbano. Trata-se da terceira edição do Festival Literário da Madeira (FLM) e algumas das figuras que comparecem de certeza acham no charme do arquipélago um apelo invulgar. A badalada Naomi Wolf por exemplo. Noutra parte um encontro assim até seria impossível: os aviões são raios de uma roda que gira e convoca entre os continentes como nunca dantes no mar. Hoje a Madeira parece mais perto de tudo e centro de algo.

Século XXI, ano 13

3 Abril. Chegada sonolenta no princípio da manhã –a noite anterior foi curta e a saída do Porto às 07:00 acabou de estragar. Temperatura alta mas chuva e vento intermitentes. O meu voo foi calmo mas depois sei que vários aviões foram desviados no dia anterior a Porto Santo: dos convidados na véspera só o do Tordo entrara, e ele contou que os estrangeiros começaram a gritar com o aparelho dando bandeadas. Ouvi outros relatos de aterragens medonhas, com abanões, subidas e descidas e poços de ar, mas já em 92 com o aeroporto ampliado de fresco tudo correra sem sobressalto algum. Enfim, o percurso ao hotel surpreende-me: há estradas com dupla faixa e a mancha urbana é imensa a trepar colinas, sem que contudo o verde se estrague nem o céu se ofenda com alturas. A área metropolitana do Funchal tem agora uma população superior a 225 mil habitantes e mesmo assim raros prédios algo elevados verei apenas no centro. Espalhamento muito diferente do que recordava, e infinitamente longe da estampa idílica que pintava D. Francisco Manuel: «Via-se todo coberto de viçosíssimo funcho: medicinal erva até para as serpentes, das quais se escreve não podem sem esta mezinha mudar a pele antiga com que se remoçam; que a ser concedida para os homens, fora de singular preço: Marathen lhe chamaram, sublimando-a, os Gregos; Faeniculum, os Latinos; donde nós, Funcho. Da quantidade dele, que neste campo se levantava, tomou nome: Funchal, há muitos anos celebrado, pela Cidade ali edificada, com o próprio nome Metrópole da Ilha, e que no foro espiritual o foi já de todo o Oriente.»

Também me surpreende o hotel –não estou habituado aos cinco estrelas nem a ser realmente tratado de escritor. A primeira tarefa depois de desfazer mala, enredar algo no mail e encontrar os primeiros participantes em comida rápida é uma entrevista nos estúdios da RTP. Gravação em falso directo cuja emissão não chego a ver e ainda bem, desde os tempos daquele programa sobre literatura na tv galega que não gosto de como digo. A jornalista madeirense Cláudia Rodrigues tem com ela vários livros meus e pergunta sobre eles, Pessoa, a mesa em que estarei, e às curiosidades misturam-se logicamente a galeguidade. O tempo não chega a nada.

Francesco Valentini

Naomi Wolf

O carro da organização põe-me no belo Teatro Municipal que por dentro me recorda o da Ópera de Manaus. Desde o dia 1 há atividades ligadas ao FLM mas a inauguração oficial será agora. Junto-me a velhos amigos para ocupar um camarim lateral e ouvir Francesco Valentini que em nome da editora promotora do Festival, Nova Delphi, dá as boas-vindas a participantes e público. Gostei da fala do tipo sobre leitura e ética da escrita, com mais substância do que costuma haver em foguetes inaugurativos destes. Depois sobe o vereador da Cultura e vice-presidente da Câmara, Pedro Calado, canta a evolução da cidade como referência cultural. Convencional. E por fim a Naomi Wolf, apresentada por Valentini como “a consciência crítica da América”. A autora de Vagina, a Cultural History fala disso e o Tordo ao meu lado até toma notas. O meu inglês não presta porque inexiste e esqueci procurar aparelho de tradução simultânea, mas dá para apanhar vaginas e pénis e excitações e masturbações e orgasmos e pornografias por aí fora. A consciência crítica da América não é política que é sexual. A norte-americana só me assombra pela desenvoltura em palco e até na plateia. Depois da conferência inaugural segue um debate da palestrante com Rui Tavares, historiador e eurodeputado independente, que assina o prefácio de O Fim da América, obra da norte-americana editada pela Nova Delphi. Já não resisti a ouvir mas pelos vistos as reflexões foram muito mais políticas, pondo em questão Guantánamo e a mesma democracia da União Europeia.

Jantar perto do hotel no restaurante e clube de jazz SCAT, com festa final estrelada pelo músico italiano Massimo Cavalli e vários alunos do CEPAM – Escola das Artes. Tenho ao lado a Adélia Carvalho, que é como se conhecesse de toda a vida, e promovemos quadras e trovas para a mesa do lado onde estão os políticos. Erramos o tiro escrevendo para o vereador um agradecimento pelo pão emprestado e temos de rectificar com uma ‘Ode ao João’ para o diretor do Meliã Madeira Mare, parceiro do Festival, que é quem realmente enviara o cereal. Rimos muito e quando a mulher do tal nos exige outro poema para ela estamos exaustos. A coisa acaba num bar ao lado onde a Cláudia da entrevista na tv faz questão de eu provar a excelência das ponchas, bebida tradicional da ilha, um combinado de aguardente de cana, mel e sumo de limão, que terá a sua origem na pãnch da Índia.

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