Em mangas de camisa

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O novo rei da Espanha que, como previsto, após a coroação, iniciou o seu reinado entre outros atos menores com voto no dia do Apóstolo; nesse ato, rodeado da pompa e cerimónia a uso, pediu ajuda ao senhor Santiago, à Galiza e aos galegos.

Há uns dias a netíssima do ditador, Carmen Martínez-Bordiu, faz a sua reentre outonal, posando a toda a capa no HOLA com a sólida pedra do Paço de Meirás de fundo.

Estes dias, o manda-mais Rajoy, cada dia mais cuspidinho ao seu ídolo Montero Rios, e a mais poderosa Ângela Merkel, peregrinam com todo o seu poder e simbolismo a Santiago e na Catedral, pedem e abraçam também o Apóstolo.

O rei e rainha novos, abaixaram ante o santo, disseram quatro palavras galegas, pronunciaram o pedido, mas beijam o ombreiro em vez de apertar o Apóstolo, a gente besbelheia por baixo, com certo alporiçamento. Ignorância dos tempos e das tradições, o logo que se arma uma República ante a falta de charme no casal reinante. Viria um Presidente da República perante o apóstolo? Seguramente se o primeiro Presidente fosse um galego.

Galeria de Paço, jardim para entrevista preparada, dia de festa para a declaração mediática. Deixemos hoje o vestido vermelho, sublinhemos com ele as marcas de classe e a mensagem de normalidade do fascismo, tantos anos, na Espanha. O importante é a raiz, o bem que souberam as autoridades fazer feliz o Ditador com este agasalho. O simbolismo do facto, o vencelho do pacto, vai além da mesma constatação da absurdidade das leis de memória histórica num país onde o fascismo não foi militarmente derrotado, nem punido judicialmente, nem e reparadas economicamente as suas injustiças, senão que morreu de velho na cama após deixar testamento e partilha.

Covadonga, a Almudena, a mesquita de Córdova, o Retiro, Sevilha, nem as Cortes do Reino, o Madrid dos teatros, amplas vias e ateneu, nem Toledo em plena exaltação do Greco, importam o que uma peregrinação do poder europeu à Compostela. E não haverá, e quanto, escrito sobre o simbolismo e importância dos lugares da memória na conformação das pátrias e as nações?

Merkel, a percorrer a Galiza com Rajoy de guia, ambos em magas de camisa, no meio de uma crise, a cumprirem o rito peregrino. A empaparem a força do mito e usufruírem o símbolo. Lembra pouco o Aznar de botos, charuto e sombreiro texano a rir-lhe as cousas a Bush jr. no seu Rancho do Texas. É bem galego este presidente, prometendo austeridades, e deixando a convidada com os olhos presos na sólida paisagem, e os recordos nos brancos, nas carnes e peixes do país. Ai, quando há que escolher imagem sólida para uma Espanha decadente.

Mariano Rajoy, o paisano espertinho, como tantos outros paisanos antes, feitos na alta política espanhola de Madrid, que aproveita os verãos para tirar o casaco e em mangas de camisa falar para imprensa da Espanha, da Europa, e para o país, como se improvisasse, como se falasse mais verdade – ou nenhuma que o tópico galaico manda – arrodeado da forte e simbólica paisagem galaica.

É muito interessante, o do político, do homem de êxito com farda de veraneante, de festa em festa, apanhado como de improviso pela objetiva. Rajoy subido a um alto, corono rodeado dos seus achegados e protegido pelos seus esbirros armados, com a paisagem galega (a mesma paisagem com que se inicia o filme Raza, a mesma paisagem das entrevistas aos políticos galegos do XIX, a paisagem estival dos Franco, Fraga ou dos velhos reis e condes galegos) fazendo pano de fundo.

As mangas de camisa, branca, azul céu, não brilhante, mas mate, limpa e masculina têm um grande simbolismo e efeito na cultura popular. É a farda estival do homem poderoso, ilustrado, do alguém que baixa canda o povo e está – e sabe estar – aí, na hora da festa coletiva e preparado, para colaborar — se calhar, por mais que nunca aconteça — no momento e no trabalho.

Em mangas de camisa, com uma ria de fundo, ou um vale cultivado e umas verdes árvores acarão, um toldo e o barulho de uma das nossas festas, apelando e submerso na casa, nos amigos, na paróquia. Primavera, outono e inverno são castelhanos, madrilenos, mas no verão, são galegos, tomando força e refúgio, para além de gorentosos refrigérios e manjares com sabor d’a Terra no santuário ou na Torre-Castro.

O código, a etnicidade é ainda poderosa. Até cá normal. Agora: é funcional a duplo nível comunicativo: de clã e estadual. Refúgio, raiz, lugar de memória e pacto, sagrário.

Onipresença da Galiza: quadro, paisagem, imagem, sabores, a potência da Terra, a gente, da comida, o mito, o lugar do pacto e da memória, a imagem de seriedade e da força telúrica, a capacidade e exibição do controlo policial, solidez e raiz com que se quer endrominar os poderes e os poderosos e com que mais uma vez se representa Espanha?

Espanha é, mais uma vez e quando se necessita, apenas a Galiza. Cumpre um aturujo. Somos uma “colônia” bem rarinha, não?

 

Máis de Ernesto V. Souza