De prosa descontraída e rigor imenso, o livro de Diego Bernal, Português do Brasil. O galego tropical, que foi recentemente publicado por Através editora é a constataçom de que a variante portuguesa além Atlântico nunca “extranha” mas, ao contrário, “entranha”, se se nos permitir mudar livremente a frase do Fernando Pessoa. Publicamos uma conversa com o autor que, com certeza, servirá para nos abrir muito mais ainda o apetite da sua leitura.
Antes de mais, para ligar melhor com o título do teu livro, a conexom Galiza-Brasil perfeita para ti qual é?
A melhor conexom Galiza-Brasil fôrom Fram e Bebeto no Deportivo da Corunha (risos). Conexons há muitas, mas por citar umha que conto muitas vezes como anedota: um ano coincidírom numha das minhas aulas da universidade três alunos cujos apelidos eram Fraga, Tourinho e Feijó. Fraga era negro, Tourinho mulato e Feijó branco. Os três eram muito amigos. Porém, um dia falando das dificuldades da vida no Brasil e manifestando-me sérias preocupaçons polo futuro dixem-lhes “pena que vocês não sejam galegos, lá vocês iam se dar muito bem”. Com certeza nom entendêrom a piada. Em todo o caso é umha boa história para refletir sobre o suposto carácter “regional” ou “minoritário” da nossa língua e cultura.
Entendo que nunca terias escrito um livro assim se nom fosse pola tua experiência de morares no Brasil… quando, onde e como é que foi esse percurso do outro lado do Atlântico?
Começou em 2011 no Rio de Janeiro, onde trabalhei 3 anos como leitor de galego na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e continuou, em 2016, no Estado de Minas Gerais, desta vez como leitor de espanhol, até hoje.
O estímulo da minha escrita foi, sem dúvida, a descoberta desse português brasileiro, desse “galego tropical”. E digo galego tropical nom num sentido arrogante mas sentimental, pois foi isso o que sentim ouvindo as falas brasileiras, um maravilhoso continuum lingüístico que ia das aldeias mais remotas da Galiza às cidadezinhas tropicais do Brasil, e isso, dito seja de passagem, para um falante de umha língua minorizada como a galega é, simplesmente, maravilhoso.
Ouvindo as falas brasileiras senti um maravilhoso continuum lingüístico que ia das aldeias mais remotas da Galiza às cidadezinhas tropicais do Brasil.
Ouvindo as falas brasileiras senti um maravilhoso continuum lingüístico que ia das aldeias mais remotas da Galiza às cidadezinhas tropicais do Brasil, e isso, dito seja de passagem, para um falante de umha língua minorizada como a galega é, simplesmente, maravilhoso.
Que impacto te ficou da experiência?
Penso que ninguém que more no Brasil fica indiferente. É um país com umha personalidade extraordinária. Se a isto unirmos o facto de ser umha terra com tantas ligaçons sentimentais com a Galiza e a nossa língua e cultura podes-te imaginar que a pegada que deixa nos galegos é muito intensa.
Quando entrevistamos Carlos Núñez polo seu disco Alborada do Brasil, lembro ele dizer que, em geral, os galegos e galegas eram educados num medo “tremendo” ao português e que lhe surpreendera muito a quantidade de palavras chave do imaginário galego que encontrara na vida quotidiana do Brasil. Tu mesmo consideras que, sem essa estadia e essas vivências, o português brasileiro fica longe para a maioria das pessoas galegas?
Concordo com essa percepçom do Carlos Núñez. Até agora, temos sido educados de costas ao português e, afinal, o que se desconhece dá medo. Hoje, parece que a perspetiva começa a mudar um pouquinho, mas ainda estamos bem longe do que seria desejável: que todo cidadão galego tivesse a formaçom lingüística necessária para falar com a mesma destreza em Santiago de Compostela do que em Lisboa, em Madrid ou no Rio de Janeiro, em Londres ou em Nova Iorque. Quer dizer, que fóssemos trilingues galego-português/espanhol/inglês. Temos a potencialidade para o fazer, o problema é que ninguém no plano político tivo a coragem de defender algo tam lógico nem muito menos de levá-lo ao cabo. Essa é a razom pola que, apesar de partirmos com a vantagem do galego, o português brasileiro continua a ficar muito longe para nós. Entre outras cousas porque o galego continua sem ser levado a sério. O domínio do galego pola sociedade continua a ser muito deficitário. Para deixar de sentir medo ao português brasileiro e ao português lusitano, seria fundamental generalizar o consumo de produtos culturais portugueses e brasileiros na Galiza e que a cultura galega interagisse com eles.
Para deixar de sentir medo ao português brasileiro e ao português lusitano, seria fundamental generalizar o consumo de produtos culturais portugueses e brasileiros na Galiza e que a cultura galega interagisse com eles.
Citando o subtítulo do livro, O galego tropical, e rememorando aquela música de País tropical cantada pelo Wilson Simonal, quanto achas que, de “país tropical”, há na Galiza e quanto da Galiza, há nesse país tropical chamado Brasil?
Do Brasil na Galiza muito menos do que devia. Como bem sintetiza o meu amigo Xoán Lagares no limiar do livro “é quase suicida uma política lingüística que ignore” os benefícios de umha exposiçom constante à diversidade do português. Infelizmente, até agora tivemos esse tipo de políticas. A cultura e língua do Brasil tem muito de bom para oferecer ao povo galego, espero que num futuro escancaremos as portas do galego ao português brasileiro, seria umha lufada de ar fresco e cosmopolita que nos faria muito bem. Em relaçom a quanto há da Galiza no Brasil, partamos de que o Brasil é um país com influências dos mais diversos povos e aí radica a sua esência, a sua alma nacional. No entanto, perante toda essa amálgama ameríndia, africana, europeia e asiática existe um alicerce lingüístico-cultural de origem portuguesa e isso fai que nos identifiquemos com muitas cousas do dia a dia. Desde palavras que ouvimos até costumes culinários, passando por expressons artísticas e musicais. A Galiza ecoa em todo o canto e isso fai-nos ter umha sensaçom entre o familiar e o exótico que é fascinante.
O livro é um mosaico de conteúdos linguísticos e culturais ensamblados e compactados em torno a expressons idiomáticas brasileiras que nos introduzem de maneira muito amena em áreas relacionadas com o léxico, a onomástica, a morfologia e a fonética e a identidade do português brasileiro. Sem fazer muito “spoiler” mas sim para atrair mais apelativamente à leitura, quais informações pode agradecer mais o leitor galego? E quais o leitor português?
O principal interesse do livro é poder aprender curiosidades sobre a língua do Brasil da perspetiva de um galego, formado em Letras, que viveu lá e sublinha cousas que chamárom a sua atençom. Essa perspetiva galega está em toda a obra e aí radica a novidade porque, até onde eu sei, nom há nengumha obra escrita dessa perspetiva. Em todo o caso, a leitura pode ser proveitosa para qualquer pessoa interessada na língua galego-portuguesa e no Brasil, seja da nacionalidade que for. No entanto, é verdade que pessoas da Galiza e Portugal podem ter umha maior curiosidade por os vínculos que o Brasil tem com a identidade delas.
Se remarcamos de novo no subtítulo, O galego tropical, que tem para nós uma grandíssima força plástica, tendo em conta que trópico é um helenismo a significar “volta”, do teu ponto de vista, como é que temos que preparar a viagem de volta para fazer parte deste mundo lusófono agora que o Brasil está também a deixar a sua pegada própria na descentralizaçom da norma lingüística imposta polo padrom lisboeta?
Acredito que a intelectualidade do país devia fazer umha reflexom sobre o papel que a Galiza e a língua e cultura galegas ocupam no mundo atual e que aspectos podem ser melhorados. A internacionalidade da nossa língua e cultura estám no seu próprio ADN e nom aproveitar isto é umha irresponsabilidade. Quando nos anos 80 se iniciou a padronizaçom do galego as pessoas envolvidas tinham pouca formaçom lingüística e vinham de umha cultura política pouco democrática. Hoje, felizmente, o diálogo é bem mais respeitoso. Eu gostaria de que o galego construíse um padrom que servisse de ponte entre Portugal e o Brasil, que fosse entendido a ambas as beiras do Atlántico sem renunciar às nossas particularidades, que som as que nos outorgam charme e personalidade dentro do espaço da língua portuguesa. Tenho certeza de que isto seria bom para nós como povo e que elevaria o nosso bem-estar como cidadãos. Essa é a “volta” que eu proponho.
A internacionalidade da nossa língua e cultura estám no seu próprio ADN e nom aproveitar isto é umha irresponsabilidade.
Como verás, a entrevista não renuncia ao estereótipo do tipo de vincular o Brasil à sua música…Para muitas de nós, Brasil além de língua é música. Música em maiúsculo. Contudo, quase todas e todos os que nos educamos musicalmente nos ritmos de bossa nova e samba ou aprofundamos um pouco no movimento do tropicalismo, medramos nesse conhecimento a partir dos referentes Cuando los elefantes sueñan con la música e Trópico Utópico, os programas de Radio 3 da rádio espanhola dedicados à música brasileira e comentados a partir da perspetiva duns jornalistas que a explicam como um formato exótico do tipo World music. Que achas que é necessário mudarmos para que o jornalismo galego das rádios galegas institucionais e independentes cheguem à conclusom de que a música brasileira nom é utópica nem um sonho e sim, parte da sua maneira de falar e compreender o mundo?
Para mudarmos estas dinámicas creio imprescindível viver o galego como umha língua internacional. Sentir que se ouves umha música brasileira estas a ouvir umha variedade da tua língua. Se conseguirmos quebrar essas fronteiras mentais o galego e a cultura galega teriam um nicho de cultivo que lhes permitiriam crescer e revigorar-se. Resgatando umha velha metáfora que usei anos atrás, a chave seria tornar a língua galega na orquídea da língua portuguesa.
E para todas aquelas que só nos temos deslocado lá só através das suas músicas, que geografias nos recomendas do Brasil?
O Brasil tem 26 Estados. Eu apenas estivem em 6 e no Distrito Federal. Entom, as minhas dicas vam ser muito parciais. Tendo em conta isto, começo por recomendar a cidade do meu coraçom, Rio de Janeiro, onde morei três anos e que é a cidade que melhor conheço do Brasil. Nunca me canso de ir lá, dar um passeio pola lagoa de Rodrigo de Freitas, caminhar polas ruas de Santa Teresa, comprar uns livros nos sebos do centro, comer umha picanha na chapa no bairro de Ipanema e tomar banho de mar na sua maravilhosa praia. Há tantas cousas que fazer que poderia ficar horas e horas a falar dela. Outros lugares que adorei fôrom as cataratas do Iguaçu, a arquitetura de Brasília, os arranha-céus de São Paulo ou as vilas coloniais de Ouro Preto e Diamantina.