Depende

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Depende… é tópico, é. Mas é a mais frequente resposta galega ante uma pergunta direita. Para além da pouca cortesia, a exibição de orgulho, os gritos, a afirmação e negação escandalosas e ausência de diplomacia é também um dos principais motivos de confronto cultural dos galegos nos modos espanhóis.

Para nós, galegos, há sempre formas, matizes, outras perspetivas, tempos, modos e interesses a considerar, nas perguntas (que são nossas) e nas respostas (que se dão aos outros). Talvez por isto sempre achei (com o Cavaleiro verde e o raposo Renart) tão fascinante o Arcano XII do tarot simbólico.db_lt-_xii_-_le_pendu1

Sacrifício, penitencia, expiação de soberbas passadas, procura de perspetiva, hesitação, aceitação da mudança, desconforto intencional para a análise, adaptabilidade ante uma situação ou contexto desafortunado ou contrário, tanta cousa entra na simbologia subtil do pendurado.

Tudo pende de fios e depende. A história não pode ser muito mais que uma sucessão de narrativas imperfeitas: quando se unificam em chave nacional pretende ser uma grande e única narrativa. Mas, plagiando Joan Fuster, hoje mais que nunca na moda, também podemos considerar que são “tebeos per a intel·lectuals“, e também a máquina de propaganda para a justificação e destaque de motivos das políticas dos poderosos.

Antes a serviço de condes e reis, agora de estados, academias e instituições, solenemente envolta em bezerros, epítomes orlados e grandes tomos de cantos dourados. Mas a história é qualquer cousa menos inapelável e fixada. A contrário, nela colhe tudo, mesmo o que previamente foi descartado. Em função do mais cru realismo presente e do futuro a que queremos chegar é que se narra. Sejam modelos artúricos, renascentistas, reformistas, contra-reformistas, pombalianos, clássicos, vanguardistas, comunistas,  ultra-católicos, liberais, neo-con, o que se tenha nas bases define não apenas o jeito de narrar, quanto as preferências de tópicos e estéticas, os grandes troppos úteis do passado. E estes serão os que definem a época historiada e o que é mais interessante, a narrativa consequencial e literária paralela que a reforça, a tradição e os precedentes históricos imediatos em destaque que nos levaram até ao hoje.

Por isso, um dos mais interessantes debates culturais dos três últimos séculos é a respeito dessa sobrinha solar da História: a Literatura.

A poesia lírica, a eloquência, a história, como artes práticas que são, estavam representadas, entre as musas da antiguidade. Havia textos bem escritos e mal escritos, textos prezados e desprezados, textos que na transmissão entravam no cânone, textos que se desbotavam, com as línguas, caligrafias, géneros e modas, uns para sempre e outros que mais tarde se recuperavam. Mas Literatura, como conceito é algo que apenas a partir da segunda metade do século XVIII, e com epicentro francês, começa a designar um conjunto de textos numa língua determinada.

Por extensão, daquela, a literatura é o conjunto das obras dentro de um cânone, que pode ser estabelecido em contraste com outros, seguindo o modelo de Linneus e dividido, seguindo em paralelo a cronologia canônica das etapas da história e tomando como modelo o das grandes literaturas “completas” (francesa, inglesa e alemã).

Porém, no oceano de páginas e séculos depois a definição do que seja um texto literário é questão sem resolver: nem a Escola formalista russa, nem o arguto Roman Jakobson, nem a estilística francesa, castelhana, portuguesa, norteamericana, nem a teoria conotativa, nem a linguística estrutural em todas as suas ramas e divisões, nem a teoria da recepção, nem a semiótica, nem qualquer outra têm formulado qualquer definição clara do que seja ou não o característico, o intrínseco, o definidor do literário.

E para além, os gostos, como as educações, dependem de diversos fatores, da cultura e da moda do tempo. Como não são coincidentes, e não podemos proceder por intuição ou olfato de crítico, nem é possível determinar senão através de certos formalismos, convenções e truques retóricos próprios de cada época o que é ou não é literário, nem o que está bem ou mal escrito.

Por isso e dado que não podemos definir a literaturalidade, o literário, nem o que é (e não é) literatura fora do Cânone: que tal se viramos a perspetiva, e nos perguntamos seguindo Sherlock Holmes e Edward W. Said… e não será que Literatura, o literário é uma invenção do século XVIII, filha legítima da ideia nacional da língua, e portanto da nação? Um produto, uma função em consequência, da era do nacionalismo, criada no colo da imprensa, aquilatada nos efeitos da política cultural e negócio da era industrial, o público (nacional) e a literatura de massas?

Mas se a língua é a nação, que outra cousa pode ser a literatura mais que o elenco de modelos dessa língua (da nação)? A chave daquela, permitamo-nos o bourdieuisme, não está nas características intrínsecas, na qualidade dos textos, apenas em quem controla as instituições e os mecanismos que definem,  produzem, legitimam e reproduzem os cânones.

Afinal, se o mundo está sempre as avessas, quem fica de cabeça para baixo a contemplar, pode ser que simplesmente esteja enxergando, nas voltas pendulares, alguma iluminação.

Máis de Ernesto V. Souza