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D. Afonso Henriques, de José Mattoso (e III)

D.Afonso Henriques, de José Mattoso1. (e III)

 

3.- A Luta Portugal – Galiza

Eis o que diz Mattoso, e que vai ser fonte constante de problemas e contradições com seu esforço sistemático por apurar bem os dados, que partem da seguinte declaração que é para ele tautológica:

Há um enfrentamento entre duas realidades distintas que são Portugal e Galiza: “ Parece claro que se verifica um processo de evolução rápida a partir dum estadio caraterizado por uma certa indefinição inicial, mas que de presa se transforma como consequência da evidente oposição de interesses entre portugueses e galegos2

O conflito Compostela Braga, pela condição de primaz da Galiza, pelo controle das dioceses Lusitanas, conflito bem duro de Gelmirez – Paio Mendes, para Mattoso representa um conflito entre portugueses e galegos. E aí aparece um problema não menor e que em várias ocasiões põe Mattoso de relevo, que é que na documentação da altura o termo galego e conflituoso pois tanto o usam os do norte do Minho como os de Portugal.

Mattoso para resolver o problema recorre a um artifício, “Os galegos vinham do além-Minho3 da Galiza” e aos outros quando necessário de acordo a documentação chama de galaicos, e ao território de Gallaecia, para afirmar assim um contraste, mas nunca de galegos, indivíduos diferentes e com os que era impossível o entendimento.

Mattoso no seu trabalho honrado fornece múltiplos dados do enfrentamento de Braga com Compostela, mas sempre tirando isso do centro do problema, pois Mattoso, assume duas cousas: Portugal constitui-se numas fronteiras que são as que separam galegos e portugueses, o Minho, e essas fronteiras para ele tem um caráter mágico que determinam de forma inapelável a condição dos que estão ao um lado e ao outro desse limes.

Quando Afonso Henriques tenha atividade ao norte do Minho, que teve bastante, e Mattoso fornece os dados, como líder e como Rei, tanto fazendo doações a mosteiros como reclamando o submetimento a ele dos senhores de Toronho e a Límia (e não só) territórios que foram do condado portucalense desde a primeira hora; -porém esse dado não aparece nem se cita, pois supõe discutir fronteiras que para Mattoso estão inscritas em pedra por Deus mesmo-, e todo se volve num conflito feudal, e não no que realmente aparece, e vai ser leit motiv do reino constituído4, para que as suas fronteiras pelo norte sejam as do velho condado de Portucale. Ele nesse tema fala como um Sanchez Albornoz5.

Tampouco aparece nunca 6, que Braga pouco a pouco e além da diocese de Compostela e alguma outra cousa, acabou não sendo só primaz de Portugal, por ser a cabeça da Galiza, se não que continuou sendo a cabeça religiosa da maioria das instituições religiosas da Galiza, do território da Galiza romana incluído Leão, e que isso se manteve assim até que após a batalha de Toro (1476) de Castela frente as tropas portuguesas de Afonso V, a Galiza é submetidas pelos reis chamados católicos a sangue e lume em longa guerra terrorista, ela bem longa desde 1476 ate 1489, e é daquela quando a Braga se lhe retira todo domínio sobre assuntos religiosos na Galiza que não constituiu Portugal, e passa a depender a Galiza de Castela, de onde vão vir os cargos religiosos que exerceram nela os seguintes 450 anos.

-4.- A Batalha de São Mamede, a isca da nacionalidade

Na Batalha de São Mamede, se enfrentam os interesses galegos e portugueses, segundo Mattoso, Ele apresenta-nos os contendentes, por um lado, o galego, e o lado dos interesses galegos dirigido por Fernão Peres de Trava e dona Teresa, sua mulher, e mãe da Afonso Henriques e por outro o nosso infante com o bispo de Braga e homens que o apoiam.

Logo faz um relatório mais em pormenor dos contendentes: “As tropas de Fernão Perez e dona Teresa, vindos sem dúvida nenhuma de Coimbra e Viseu )7Mais adiante acrescenta Porto

Em realidade quem se enfrentam são os interesses de Gelmirez – Compostela e Paio Mendes – Braga.

Porque os contendentes que vão representar, segundo Mattoso, o partido galego vem do Douro e da Beira?. Por Gelmirez controlar essas dioceses, e Fernão Perez de Trava, homem de Gelmirez ser o senhor de Coimbra.

Compostela não aceitando a Braga acima dela, tal como lhe correspondia na sua condição de primaz, coloca a isca para Portucale se libertar do Compostelanismo, é dizer do projeto peninsular de Compostela. De aí que no estudo em pormenor dos contendentes, figurem galegos do norte do Minho entre os que lutam ao lado de Afonso Henriques e são os contendentes de Gelmirez de dona Teresa do sul, e dizer, no quadro geográfico de Mattoso, bem portugueses.

Os Anais, escritos na distância temporal em Santa Cruz de Coimbra, apresentam São Mamede como o nascimento do reino, Mattoso cita-os. Também cita Herculano para quem aquilo foi uma revolução de rejeitamento de estrangeiros no reino etc etc. Mattoso, traz todo isso à tona para ressaltar ainda mais o que ali se produziu, ainda que os dados que honradamente vai fornecendo, mostrem o que isso de verdade é, a construção do mito originário sempre ele tão útil ao projeto nacional português posterior.

Quem vão ser os beneficiários do sucesso de Afonso Henriques, e a quem o nosso príncipe vai honrar e acrescentar poder e riquezas, na medida em que a sua liderança se consolida. Esperar-se-ia que os homens que o ajudaram -de essa formação social diferente que tinha que ser o Portugal do Minho- , porém o resultado e que não há muitos dados nesse sentido, como aponta Mattoso.

O que sim temos no apartado Os primeiros Passos de Um Jovem Principe e seguintes, e cartas, e forais, e reconhecimentos a Sé de Braga, e o apoio constante a Braga para que posa tomar sob seu controlo as dioceses galegas de Portugal, como Porto e as dioceses lusitanas que dependiam de Mérida (ainda sob domínio muçulmano), mas de Mérida a sua cabeça fora transferida a Compostela, as Viseu, Lamego, Coimbra etc. Afonso Henriques vai lutar decisivamente para que essas dioceses passem de Compostela a Braga, e nesse sentido, o facto de antes terem sido transferidas a Compostela, vai ser um fator dinamizador de unificação do território do reino.

E que vai passar com os derrotados em São Mamede. Ao princípio aparece o dito costumeiro do Fernão Peres de Trava, fugindo para a Galiza (norte do Minho) com dona Teresa…é dizer os galegos estrangeiros fugam-se para a sua terra.

Mas Mattoso é um pesquisador excelente e rebusca nos dados, e pronto nos vamos achar com que Fernão Perez de Trava aparece nas suas poses em Portugal, que as administra e até que vai participar de atividades na corte de Afonso Henriques em Coimbra…como ele diz produziu-se a reconciliação com ele e com a mãe, ainda que não se falou muito disso, os dados falam.

E segue com essas achegas de dados, que vão pondo em questão o construto historiográfico, da libertação duns portugueses dos barulhentos galegos.

Afonso Henriques após São Mamede tem ao seu serviço e no cargo mais importante de mordomo-mor, um galego de além-Minho. E quando rei já proclamado dos sete mordomos mores que teve, quatro foram galegos de além-Minho, e além deles um quinto breve Alvaro Peres irmão do galego ruim da historiografia, Fernão Peres, esse que fora derrotado em São Mamede.

Eis o que dize Mattoso no apartado Fidalgos Galegos do capitulo de Relações com Leão (pág 96-97). Começa dizendo: A julgar pelos -Anais- (redigidos em Santa Cruz de Coimbra sessenta anos depois). Alguns indignos e estrangeiros pretendiam apossar-se do reino de Portugal com o consentimento da sua mãe8, Porém ele, como Herculano afirma que isso não era mais que um libelo político…

Com efeito se o redactor pretendesse, qualificação negativa designar todos os galegos, teria que envolver nisso uma grande quantidade de nobres do além-Minho, que se fxavam em Portugal e ocupavam postos de grande poder no reino… Além disso como os documentos em muitos casos chamam também de galegos aos de aquém-Minho… Exemplifiquemos no reino o cargo mais importante era o de Mordomo-mor. Dos sete que teve Afonso Henriques durante o seu reinado, quatro eram galegos do além-Minho, Fernão Peres Cativo (1146-1155), Pedro Fernandez (1169-1175), Vasco Fernandes (1176-1185), Vasco Sanches de Barbosa (1169-1172) E outro mais, Rodrigo Peres (1140 e 1141)”(que seria o 5 de 7) este por pouco tempo, e que era o irmão de Fernão Peres.

Se passarmos a outros nobres, governadores de terras e demais, voltamos a achar entre eles galegos de além Minho”.

Do texto de Mattoso, dos ricos dados que vá fornecendo, cresce a insegurança do construto ideológico do nascimento de Portugal, como um processo social de libertação frente aos galegos. É o que eu chamo honradez dos dados e dos fatos que coloca Mattoso, e que ultrapassa o seu marco ideológico do construto nação portuguesa.

Chega a afirmar, que a mistura entre a classe nobre do norte do Minho e do sul, era tão grande que as vezes resulta difícil determinar a exata procedência de uns ou de outros, de aí que quando fornece dados, sejam o resultado da sua confirmação e não de pura hipótese, e além disso o facto de que na documentação e (infelizmente isso e incompreensível para Mattoso, como ele próprio afirma), os moradores de Portugal, se chamam a sim próprios em muitos dos documentos como galegos

Analisa no livro, o role de Afonso Henriques, como guerreiro de sucesso; porque se estabelece em Coimbra, o seu papel de apoio a a Igreja, o impulsionamento e criação do Mosteiro da Santa Cruz em Coimbra etc etc.

Na vida de São Teotónio, o primeiro santo português, figura Afonso…com o andar do tempo e por disposição da munificência divina, veio a tornar-se rei ilustre da Lusitânia e de parte da Galiza9

A Galiza não era uma realidade, já que logo alheia e estrangeira a Portugal, não só isso a cabeça histórica da Galiza, fora crucial para o reino vir nascer.

Quando o Bispo de Braga, Paio Mendes, a pessoa mais poderosa e influente ante o Rei, e quem o guiou desde criança, e a quem ele deu mais reconhecimentos que a nenhum outro cargo ou ordem, falece, passa a ocupar a Sé arcebispal de Braga, João Peculiar, do mosteiro da Santa Cruz de Coimbra, e quem já era conselheiro de Afonso Henriques, e na sua condição arcebispal será o principal conselheiro do Rei, e sob a sua égide, desaparecido já havia tempo Gelmirez, consolida o controle das dioceses da Lusitânia que já passaram de Compostela a Braga, e consolida-se o controle de grande parte da vida religiosa da Galiza que não formou o reino de Portugal, numa unidade, que volvo a lembrar a historiografia tanto portuguesa como espanhola esquecem, incluída a galega, e do que Mattoso, além de citar esse sucesso de João Peculiar, não vai aprofundar no assunto, além de que esse assunto, como outros, fazem debilitar tanto a tese do nascimento de Portugal como resultado do enfrentamento de portugueses e galegos, que ao fim só fica como explicação o nascimento como um fato milagroso; e claro, se é milagroso, qualquer explicação sobra.

Ao longo da obra, muito bem documentada com todo o que se pode saber sobre o nosso primeiro rei, do reino de Portugal, ecoam todo o tempo conflitos entre Compostela e Braga, pois Compostela não deixa de ter também seus simpatizantes entre portugueses.

Eu recomendo vivamente a todos e todas a leitura de tão interessante livro, e se o fazerem com os óculos que eu tento aqui brevemente fornecer, na minha crítica ao construto historiográfico nacional português, que José Mattoso tão bem representa, descobriram porque eu como galego posso afirmar que Portugal foi a cousa melhor que a Galiza e aos galegos nos podia ter passado.

 

Uma nota final, ou como as águas sempre tornam ao rego certo

A Editorial Gradiva e a Fundação Mário Soares, publicaram uns Cadernos democráticos de Formação da cidadania. O primeiro deles foi encarregado a José Mattoso e chama-se A Identidade Nacional,

Nele de jeito breve e partindo das raízes medievais nacionais que nasceram no ato seminal de São Mamede trata de caraterizar uma nação determinada pela sua história, pela sua geografia etc etc, e encerra o livro com o que chama identidade sociológica.

E qual é o resultado do livro divulgador?.

Na página 14 temos uma anedota do século XIX do rei de Portugal no seu iate perguntando a uns pescadores da Póvoa de Varzim, Se eles eram portugueses, e a resposta foi bem clara: Nos meu senhor, não somos, somos da Póvoa de Varzim.

Na página 18 temos que as adesões a se definir como espanhois, são muito fraquentes e dominantes em muitos textos históricos.

Que a restauração do XIX só afetou a uma ínfima minoria.

Na página 30 faz a Garcia rei de Portugal e a Galiza (sic)… e isso que podemos ter ainda portugueses que se definam como galegos, ou mais bem que os definam desde Lisboa como galegos.

Liga Portucale as Astúrias e Leão, ocultando a Galiza e esquecendo que os reis que ele chama de tais se chamavam assim próprios de galegos, e como tais os designavam muçulmanos e Carolíngios.

Na página 82-83, tem uma afirmação rotunda que demole muito do declarado: “O que cria e sustenta a nacionalidade portuguesa é de facto o estado, por isso o processo de eclosão da consciência nacional e tão lento e a sua expressão popular tão tardia…Não desce a todos os níveis e setores da população portuguesa, se não após o estado se fortalecer centralizar e unificar o território nos séculos XIX e XX”…”Pois ser português começou por ser vassalo do rei de Portugal e não por pertencer a um determinado povo”

Logo apresenta a fraqueza da formação social portuguesa, e vai convertendo em águas de bacalhau todo o seu construto do nascimento de Portugal -que vimos de olhar no livro comentado- resultado da contradição de portugueses com galegos, se não duma realidade, onde as elites são escassas e pouco formadas e a massa muito distante e alheia ao seu discurso, e como resultado vai-se cair em messianismos e sabastianismos, que falam de fraqueza e decadência.

No capítulo final, coloca o broche e diz na página 98, fazendo suas as palavras de Boaventura de Sousa Santos 1992; “O excesso mítico da interpretação do fenómeno da identidade nacional, seria um mecanismo de compensação do défice de realidade, resultado da distancia que separa os produtores dessa interpretação de um efetivo contato com a realidade social”

O excesso mítico de interpretação que ele quer consolidar e abençoar com seu Afonso Henriques, recebe de ele próprio um duro corretivo.

Não sei se a fundação Mário Soares com a publicação desse livro considera que esclareceu o assunto aos leitores, ou se os introduziu numa nova nebulosa, onde a falta de saber apresentar a construção social certa, duma realidade nacional, por este excelente medievalista -o que para mim é inquestionável- faz que ao final fiquem só mitos e milagres…

Mas outra cousa também tem o seu perigo…podemos aparecer os galegos…e hoje os que continuamos usufruindo o nome, somos a periferia de Castela com tudo o que isso significa para o bom e para o mau, e se a isso somamos o fascínio doido que hoje Castela/espanha tem nas elites abastadas da república portuguesa10.

 

NOTAS

1 https://www.wook.pt/livro/d-afonso-henriques-jose-mattoso/196811

Sinopse do livro, que figura na sua contracapa:

Personagem oculta por inúmeras e sucessivas camadas de interpretações ideológicas, quer eruditas quer populares, a figura verídica do nosso primeiro Rei só muito hipoteticamente se pode reconstituir nas suas dimensões históricas. O mito sobrepõe-se, teimosamente, à história. Mas pode-se tentar descobrir como nasceram as narrativas tecidas em torno da sua personalidade, examinar o sentido que tinham quando apareceram e reconstituir os sucessos de que Afonso Henriques foi protagonista principal. Se não é possível traçar-lhe o retrato preciso, pode-se, ao menos, estudar as suas orientações políticas e administrativas, conhecer os seus principais auxiliares e justificar o êxito da sua obra. Apesar de assim desaparecer o herói sobrenatural, toma inegável relevo o seu talento político e militar e, por conseguinte, o seu direito a ser de facto considerado o rei fundador de Portugal.

2No último parágrafo do apartado “alterações do cenário político”

3Afonso Henriques um predestinado pag.47

4Gostaria de escutar a Mattoso as razões de porque a monarquia Portuguesa vai reclamar como parte legítima do reino à Galiza toda at+e 1476. Afonso V, foi o derr adeiro rei de Portugal a ser proclamado rei da Galiza norte do Minho tão bem.

6 Nele e noutros historiadores portugueses, e como é óbvio também nãi, nos historiados galegos e de Castela/espanha. Porém o bem honrado Mattoso no manuseamento dos dados, lembra-nos como o arcebispo de Braga João Peculiar começa a dar os passos para recuperar o controle religioso no território da Galiza a norte do Minho, e isso com sucesso.

7Isto é o que chamo honradez histórica de Mattoso, explica que os galegos são os do norte do Minho, fala-nos de enfrentamento galego português e resulta que sem dúvida as tropas “galegas” vieram do sul do Douro ou do Douro, e nas tropas portuguesas de D. Afonso Henriques e do Bispo estão alguns que Mattoso acabará identificando como galegos do norte do Minho.

Primeiro paragrafo do apartado São Mamede

8Isto e o pão de cada dia da formação nacional da escola portuguesa

9Citado na página 171, antepenúltimo paragrafo

10O da Catalunha, o que se vive lá, e o como se posicionam os portugueses, é a melhor das balanças para medir de jeito preciso estas cousas.

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