https://pgl.gal/cronicas-da-catalunha-i-estado-converteu-nos-inimigos-do-resto-espanhois/
Acordo cedo e disponho-me a tomar o pequeno almoço numa cafetaria da Via Laietana. Combinámos para as 9:30, mas sempre procuro chegar uns minutos antes, especialmente quando é fora da minha zona de conforto. O relógio marca quase as 8:30 e estou de novo na praça da Catalunha. A este ritmo, antes das 9 estarei no lugar combinado, então afrouxo o passo.
Detenho-me a olhar o monumento dedicado a Francesc Macià, conhecido popularmente como l’Avi (o Avô), que no dia anterior me ficara meio despercebido. A 14 de abril de 1931, o político catalão, que na altura tinha 71 anos, declarou a República Catalã como Estado dentro da Federação Ibérica. O anúncio produziu-se mesmo horas antes de Niceto Alcalá-Zamora anunciar em Madrid a constituição da II República Espanhola.
Enxergo para uns metros mais atrás da estátua e vejo que o acampamento independentista continua no mesmo lugar e que já começa a dar sinais de vida, tal como me explicaram na véspera.
Como tenho tempo, deixo-me perder um bocadinho por algumas das múltiplas ruas que atravessam a via Laietana. Uma delas é o carrer Comtal (rua Condal), uma pequena rua com comércios de toda a vida e que me lembra às cidades velhas de Compostela ou Lugo.
Não é uma rua estreita, mas o espaço é um bocadinho exíguo para ser compartilhado por veículos —mormente de abastecimento dos comércios— e peões. Isso, somado à altura dos edifícios que a integram e mais o jogo de sombras que se produz, incrementam a sensação de angostura.
Neste carrer há, a cada poucos metros, placas ou pequenos murais feitos com azulejos. No início da rua, já um aviso:
«Viandante que passeias / estás na rua Condal / uma rua sem invejas, / plácida e cordial. /
Uma rua com muita história, / guarda-a sempre na memória / e pouparás muito dinheiro» – David Griñó
Não é Griñó o único autor a deixar a sua pegada na rua, pois um grande mural com versos de Muntané também preside uma das paredes. Destacam ainda as placas com os números da rua que, em sintonia, estão formados por quatro azulejos e assinados pola Associação de Vizinhos e Comerciantes Carrer Comtal.
Já na confluência com a via Laietana, um outro mural de azulejos com um texto de despedida, mais uma vez do Griñó:
«Agora parto com mágoa / e dói-me o coração /
porque me entram saudades / ao deixar a rua Condal»
Entro à via Laietana a poucos metros de um monumental edifício presidido por uma grande bandeira espanhola. E só a rojigualda ondeia nele. É das pouquíssimas que verei em Barcelona e, com diferença, a de maior tamanho: estou frente a uma esquadra da Polícia Nacional espanhola. Bem diante, dous homens armados com subfuzis –ou metralhadoras, ou kalashikovs… Sei lá, sou homem pacífico, não entendo muito de armas– custodiam desde bem cedo o magnífico prédio. Magnífico, insisto, ainda que isso não é dizer grande cousa quando estás na via Laietana, onde se concentram alguns dos mais belos exemplos de arquitetura modernista da Península Ibérica.
Crónicas da Catalunha (II): Da arte gótica ao coração do ‘Procès’
Ainda é cedo, quase 9:20 da manhã. Um pequeno grupo de turistas espanhóis da terceira idade passa por diante dos policiais em direção à catedral (sécs. XIII-XV). Um deles, quiçá polas saudades de estar fora do seu país, quiçá enchido de fervor patriótico por ver a única bandeira espanhola em muitos metros –justo em frente da esquadra há várias estelades nas varandas–, não pode evitar exclamar: «así me gusta, defendiendo a España ya de buena mañana. VIVA ESPAÑA Y VIVA EL REY» («quanto é bom, defendendo a Espanha já bem cedo. VIVA A ESPANHA E VIVA EL-REI»).
Por fim na cafetaria, a um minuto das 9:30, o meu cicerone conta-me um bocado da interessante história da via Laietana.
Foi concebida em 1859 para ligar L’Eixample com o porto. Porém, diferenças de conceito e planificação urbanística adiárom o projeto até 1899, quando voltou despertar interesse em duas vertentes:
- Criar uma muralha visual entre as residências do proletariado e as burguesas.
- Prevenir ou controlar melhor os protestos operários, já que a zona estava conformada por múltiplas ruelas de reduzidas dimensões.
Em 1907 logrou-se o financiamento para a construção do primeiro edifício da nova via, com participação ativa do Banco Hispano Colonial —predecessor do Banco Central, atualmente dentro do poderoso Banco Santander.
Para conseguir o objetivo, mais de duas mil vivendas humildes fôrom demolidas e ao redor de dez mil pessoas tivérom de procurar morada noutros pontos. Esta operação implacável deixou o terreno limpo para uma via de oitenta metros de largo e quase um quilómetro de longo. No novo espaço seria construída essa muralha de magníficos edifícios modernistas –alguns de dez alturas– que separou a burguesia do resto do povo.
O projeto não se realizou pacificamente e os protestos fôrom constantes, tanto das pessoas que perdêrom a sua morada como de destacados intelectuais, artistas e arquitetos como Jeroni Martorell, que denunciárom a destruição de quanto atravessava a linha visual de novecentos metros, incluídos vários palácios e conventos de valor histórico e artístico. Imagino que, como tem acontecido na Galiza, alguém responderia algo do estilo: «tanta queixa, tanta queixa e, total, são só pedras!».