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Colecçom completa da revista Agália, resenhada por Carlos Quiroga

Carlos Quiroga – O mais fulgurante acontece agora na internet. Mas houve um tempo em que tudo se passava primeiro, melhor e por vezes unicamente em revistas de papel. Era o século XX. Século de revistas, em especial primeira metade. É claro que elas, as “culturais” e “literárias”, nunca puderam ser numerosas nem a sua tiragem muito elevada, e por descontado que a sua vida tem sido sempre breve.

Muito mais breve e menos numerosas nos países pequenos, com poucos núcleos urbanos importantes, onde a vida para elas estava ainda mais dificultada. Mesmo assim, as que conseguiram levantar a cabeça foi para abrigar o novo e o de mais notável quanto a pensamento e autores que haveriam de ficar para a História da Cultura e da Literatura –emprestando nome inclusive a períodos dessa história, como em Portugal as etiquetas de Orfismo ou Presencismo, as duas fases do seu Modernismo. Neste carente quadro teórico, como imaginar que no último quartel do século XX, num im-País como é a GZ, nada urbano e muito tomado, com orientação política e ideológica adversas, sem apoio económico e com instituições contrárias, levantasse a cabeça uma revista como Agália, e durasse…? Como imaginar que mantenha a cabeça levantada há 25 anos…?

Sim, é revista sustentada pela AGAL, é a sua publicação científica e internacional, o que só implica alargar a pergunta: como é que leva a AGAL, como é que levamos todos os reintegratas, tantos anos com a cabeça levantada, como é que a levantam cada vez mais pessoas jovens…? Galeguismo, Reintegracionismo, etiquetas definidoras de uma identidade em risco, não devem subordinação ao nome da AGAL ou da Agália, mas guardam nestas siglas, no mantra dos seus nomes, parte substancial da sua memória. Algo que os jovens também vão acabar por achar. Apreciar.

Quando se alcançam 100 números –nestas condições de produção– é legítimo comemorar. Orgulhar-se do duro trabalho. E oferecê-lo a esses jovens vindos e aos por-vir. Com breve balanço. Com verificação de rumo, percurso. Como prova de que navegamos, e que na oferta material da revista vai um conjunto dos bens imateriais mais prezados que conseguimos preservar nestes anos.

 

O porto de partida fica distante, mas a pesca está ainda fresca porque o papel resiste centúrias. O porto está naquela Primavera de 1985, num texto redigido por Carvalho Calero, que saudava os leitores com a oferta de “umha revista de cultura, nom especializada, onde todos os problemas que tenha postos o mundo em que Galiza está inserida, mesmo aqueles que nom surjam da sua entranha, mas do seu entorno, podem ser reflectidos”.

Apesar de considerar a totalidade do globo terráqueo por contexto das coordenadas locais em que se colocava (“nada humano nos é alheio”), a “situaçom geográfica e histórica” da GZ, a sua “expressom dentro do sistema lingüístico que nos é próprio e que entre nós tem as suas raízes”, foram conformando-se em fulcros de abordagem preferente. Mas não só. No nº 13, de novo Carvalho Calero por trás da assinatura do conselho, adverte Aos nossos leitores: “Agália é umha revista que, na medida em que lhe é factível à Associaçom que a edita e aos redactores e colaboradores que a escrevem, pretende, nom só dar testemunho de umha tradiçom galeguista que procura para a nossa língua um lugar honroso no concerto do mundo románico, mas também efectivar essa tradiçom rompendo realmente a consideraçom do galego como língua puramente regional, sujeita a uns cánones ortográficos extrapolados da esfera estatal e contida nuns limites administrativos que lhe imponhem um léxico nom susceptível de ampliaçom nem enriquecimento pola osmose com as outras normas que se formárom no ámbito do próprio sistema”. Era quando o leque de interesses, sem tirar a atenção preferente aos fulcros mencionados, se abria de modo mais evidente à totalidade do globo terráqueo de que falava D. Ricardo, e a sua presença se consolidava em poucos mas permanentes pontos do planeta.

A revista nasceu com periodicidade trimestral e assim se manteve até o número 62. Nessa altura, tendo tomado quem subscreve a responsabilidade da sua direção, e já que a publicação padecia uma demora de sete números na sua edição, adotou-se a solução urgente de dar a lume alguns volumes duplos, com um duplo número de páginas a respeito da média anterior. A fórmula resultou bem sucedida e teria continuidade mesmo quando recuperada a sincronia temporal –até porque a aparição do Portal Galego da Língua podia manter a ligação da vida associativa dentro da AGAL, sem a necessidade da saída mais frequente de revista. A partir daí passou a ser editada em volumes duplos. Antes desta mudança também se editaram 2 monográficos (sobre o setor leiteiro galego e sobre a história económica de Galiza); depois da mudança, nasceu ainda o suplemento oMáximo, de início para recolher as antigas secções de “Documentaçom e Informaçom”, mas logo transformado em revista independente. Agália aumentou o número de páginas, começou a recolher entrevistas, exigiu o rigor científico do resumo aos “Estudos”, escolheu na fotografia. Enfim, entrou no século XXI com a consciência limpa do trabalho constante e melhorado ao serviço da causa que lhe dera origem.

Aos trabalhos de “mestres” galegos e doutras nacionalidades, como Carvalho Calero, Rodrigues Lapa, Coseriu, Guerra da Cal, Jenaro Marinhas, Joan Coromines, Gladstone Chaves de Melo, Evanildo Bechara, Leodegário A. de Azevedo Filho, Sílvio Elia, etc., acrescentaram-se nomes mais jovens e agora mesmo ativos na construção daquele ideário. Nas miles de páginas dos seus 100 números que agora atinge, a Agália guarda investigação original, literatura inédita, documentação histórica, notícia, crónica, recopilação de acontecimentos organizados pela AGAL e por outros grupos, o evoluir de instituições, administrações, meios de comunicação, a história da GZ recente e da sua língua. Um acervo estimável. E se cada vez há menos espaço nas nossas casas para livros e coleções em papel, o metro de estante que as lombadas da Agália hoje ocupam bem vale o que custa. Para quem está nisto e por isto (e quer seguir estando), nesse metro de papel achará argumentos –científicos, sociológicos, históricos– para defender-se dos idiotas.

 

Para fundamentar a clareza de raciocínio. Porque, como também escrevia Carvalho Calero naquele nº 13, “Se a erótica do poder ou o caprichoso afám de mando de uns poucos, cegam os titulares do poder e do mando até o extremo de afundirem na areia do deserto –como quer a lenda– as suas cabeças de avestruzes para nom ver a realidade que os circunda, a Agália, em uso do direito que a lei lhe outorga e em cumprimento do dever que a história lhe impom, continuará luitando sem desmaio por umha política lingüística que nom suponha o desprezo e a perseguiçom para a tradiçom romanística e galeguista que representamos, e sem a qual os actuais governantes nom ocupariam os postos que ostentam”.

Na Agália nº 29, volume de homenagem ao desaparecido Carvalho Calero, outro saudoso desaparecido, D. Jenaro Marinhas del Valle, afirmava épica e agrariamente: “Agália é o canto da arada que se deixa ouvir runfante nos eidos da cultura galega, enquanto abre os sulcos bem seguidos e direitos em que à calor nutrícia do humus materno o singelo dialecto rural de Rosalia germolará, desabrochando em idioma internacional que sonhou outrora o estro iluminado e profético de Eduardo Pondal, o idioma reclamado polos novos tempos de irremediável derrocada das fronteiras levantadas polas monarquias imperialistas e mantidas pola força das armas e conveniências de Estados contra razom e contra natura”.

Por fortuna o Reintegracionismo é mais provável, evidente, inevitável no século XXI para uma GZ ainda muito tomada, muito orientada política e ideologicamente de modo ainda adverso, sem apoio económico, com instituições contrárias. Por fortuna o Reintegracionismo tem hoje manifestações sociais até inconscientes, e existe por fora de todas a siglas que inventamos para alimentá-lo. E por fortuna fomos capazes de manter a cabeça levantada, na boca este canto, para dar memória, sustento, futuro. Por isso menos agrariamente (mas igual de épicos) podemos no século XXI talvez dizer que se a nossa identidade não foi hoje totalmente formatada muito se deve ao disco rígido preservado na Agália.

Que o seu nome, mantra, vos diga quem somos.

Quem podemos ser.

Carlos Quiroga,(Escairom -Terra de Lemos-, 1961])

Actualmente é escritor e professor de literaturas lusófonas na Universidade de Santiago de Compostela, membro da direcçom da Associaçom de Escritores em Língua Galega, membro da Associaçom Galega da Língua (AGAL) e director da revista Agália.

Publicou G.O.N.G. -mais de vinte poemas globais e um prefácio esperançado (1999), Periferias (1999, Prémio Carvalho Calero de narrativa, publicado em Brasil em 2006), A Espera Crepuscular (2002, primeira parte da trilogia Viagem ao Cabo Nom), Il Castello nello Stagno di Antela – O Castelo da Lagoa de Antela (2004, Prémio de Teatro infantil na Mostra de Ferrol-Terra em 1988, publicado na Itália em galego e italiano), O Regresso a Arder (2005, terceira parte de Viagem ao Cabo Nom), Inxalá (2006, Prémio Carvalho Calero de narrativa), Venezianas (2007). Fundou e dirigiu a revista galega O mono da tinta.

Bolseiro de investigaçom da Fundaçom Calouste Gulbenkian (1991-92), do actual Instituo Camões (1992-93), e da Universittà Italiana per Stranieri (1983), foi prémio extraordinário de doutorado, professor de Língua e Literatura Galegas, e o primeiro professor de Português em E.O.I. na Galiza, antes de trabalhar na universidade.

 

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