“Só não quero é arrastar-me, no final da vida, com um corpo de merda na decadência obscena. É o corpo que nos humilha…” A frase, quase a última de uma conversa que terminou quase à uma da tarde, deixou-a Carlos Quiroga, o galego, em suspenso. E depois, após uns segundos sem que lhe fizesse qualquer pergunta, enquanto acendia um Manitou e dava as primeiras passas, desafogado, traduziu o enigmático, e naquele instante ininteligível, sentido das palavras: “Não tenho urgências, não quero desiludir a família, os amigos, não quero enganar-me enganando os outros, deixar de ser autêntico. Estou em paz comigo mesmo, uma serenidade. Agora escrevo menos… entendo melhor a finitude da vida”.
A resposta, pausada, ao contrário das anteriores, serviu-lhe para responder a uma simples pergunta: “O que querias escrever, mas nunca escreveste?”. Desliguei o gravador.
Duas horas e meia antes, o galego reintegracionista, escritor premiado, professor universitário, doutorado em Filologia Galego-portuguesa, acérrimo defensor do “galeguismo histórico, o falado, o da aproximação ao português”, dizia não se “sentir escritor”.
“Não sou bem um escritor, custa-me assumir essa etiqueta porque em casa, na minha terra, e até na família, é uma coisa secundária”. Descruza os braços, recosta-se na cadeira, tira os óculos de sol e com um riso incontido, que entrecorta as palavras, diz-me que fica “sempre admirado” quando o “convidam para ir a outros países, ao Brasil, Portugal, Alemanha… lembro-me de ir a Itália, a uma escola secundária, e ficar desconcertado porque os miúdos tinham lido um livro meu. E faziam perguntas!”
Como é que alguém que escreve livros, que já foi premiado por isso, não é escritor? Carlos Quiroga, que foi o primeiro professor de Português na Escola Oficial de Idiomas de Santiago de Compostela, onde aliás vive, encontra resposta rápida: “um excêntrico que publica uns livros e não se leva muito a sério”. E logo adianta: “irreverente, gosto muito desta palavra… é isto que admiro na arte, na literatura, a irreverência”.
Como é que alguém que escreve livros, que já foi premiado por isso, não é escritor? Carlos Quiroga, que foi o primeiro professor de Português na Escola Oficial de Idiomas de Santiago de Compostela, onde aliás vive, encontra resposta rápida: “um excêntrico que publica uns livros e não se leva muito a sério”. E logo adianta: “irreverente, gosto muito desta palavra
Sintetizo: excêntrico, professor, um irreverente que vai escrevendo uns livros? O ar descontraído desvanece-se. Inclina-se e apoia os cotovelos na mesa metálica. Do maço já aberto retira um cigarro. Pede-me lume. Acende o Manitou. Inspira demoradamente. Esboça um sorriso.
“Um escritor, nos tempos que correm, e são tantos, escreve como um trabalho, como se aquilo fosse um trabalho, e então preocupa-se com o público, com aquilo que o público quer, para vender o seu trabalho”. Acaba a frase e dá uma passa mais curta. Recomeça a falar. As primeiras palavras saem misturadas com o fumo, a frase sincopada. “A mim, isso nunca me interessou… há dinheiro metido… os escritores profissionais… acabo por ter dúvidas sobre a independência… se ficas, acabas por querer algo, o mercado… esse mercenarismo… é onde está o subsídio, é onde estão os prémios, onde está a glória e o reconhecimento social”.
Procura, sem me dizer o quê, algo na sacola de pano que traz, ao mesmo tempo que diz ser do “antigamente. Sou à antiga. Uma coisa é escrever e outra coisa é publicar. Escrever como antigamente, aí sim identifico-me”. Isso é o quê?, pergunto. A resposta fica adiada por uns largos segundos. Carlos Quiroga tira, finalmente, após remexer o interior da sacola, onde percebo que tem livros, um pequeno caderno de capa preta.
A letra miudinha, alinhada, ocupa em linhas muito juntas todo o espaço das pequenas folhas.”É aqui que anoto ideias, emoções, coisas que vejo, estados de alma, um diário”. E ri enquanto volta a guardar o caderno. “Sabes, gosto de escrever à mão, fazer estes primeiros rascunhos. Dantes, escrever era uma necessidade. Escrever foi uma necessidade durante anos, era depositar a vida na escrita. Era uma válvula de escape, de escape existencial entranhado. Percebes? Era entender-me, uma espécie de auto-hipnose. E escrevia sempre para uma pessoa. Agora já não tenho essa ansiedade adolescente”.
Rituais? Carlos Quiroga olha-me e hesita. Acende outro cigarro. Faço o mesmo. O tempo está abafado, o sol quente. Por instantes, fixa o olhar no mar. Daqui só se avista mar. Lá em baixo sabemos, fica a Marina do Funchal e as ruas e avenidas que a esta hora devem estar a encher-se de turistas. Na tarde anterior, o escritor que não é “bem um escritor” tinha estado na Ponta do Sol, na abertura do Festival Aqui Acolá, a defender o seu galeguismo, a ligação mátria com Portugal.
“Escrevi, talvez, para umas quatro pessoas. Nunca escrevi para o público”. A frase é dita de rompante. “Durante anos só escrevia bem à noite, de madrugada. Era um vício, era o meu momento de exorcismo. Depois a paternidade baralhou-me todo. Continuava com os mesmos hábitos, os mesmos amigos, mas implicava uma loucura. E depois os horários laborais na Universidade. Uma loucura… e eu que gostava de fumar, de madrugada um cigarro à janela”.
Insisto. Como é que alguém que depositou “a vida na escrita” foge de ser escritor? “Não sou mesmo. Vivo do que me pagam, que é ser professor, sou professor da literatura dos outros. Morro na minha e vivo com a dos outros…”. Não faço nenhuma pergunta, limito-me a esperar. Os cigarros facilitam a espera.
A morte do galego?
“O mercado dos livros, o escrever para o público, no caso galego é servir uma norma, servir uma ideologia que está a acabar com a língua, com uma cultura que se exprime em galego”. É clara a mudança de postura. Carlos Quiroga fica mais desenvolto, agitado, está no seu território. “Com o galego, a minha língua, tenho lugar no mundo, publiquei vários livros, mas continuo sendo um exótico, continuo sem existir por escrever em galego. A norma golpista, a norma oficial que o Instituto da Língua Galega fez vingar que foi recolher o galego contaminado deturpado pelo espanhol e devolvê-lo às pessoas em forma de gramática, mas escrita à espanhola, está a matar a minha língua”.
O problema, explica, é que o “espanholismo” limita quase tudo. O bilinguismo de 1979 nunca se aplicou e “o espanhol foi tomando conta de tudo”. De braços abertos, gesticulando, conta-me em detalhe, com nomes de políticos e “outros”, que “esse assumir de que o galego pode ser à espanhola está a matar a língua. Eu tenho o dever de ocupar territórios com a escrita galega”.
O problema, explica, é que o “espanholismo” limita quase tudo. O bilinguismo de 1979 nunca se aplicou e “o espanhol foi tomando conta de tudo”. De braços abertos, gesticulando, conta-me em detalhe, com nomes de políticos e “outros”, que “esse assumir de que o galego pode ser à espanhola está a matar a língua. Eu tenho o dever de ocupar territórios com a escrita galega”.
Cansado de tantos anos de luta, de reintegracionismo?, pergunto. “É um beco sem saída, estéril. É um vírus que está dentro da Galiza. Só não quero é arrastar-me, no final da vida, com um corpo de merda na decadência obscena. É o corpo que nos humilha…”
[Esta entrevista foi escrita por Artur Cassiano e publicada originariamente no Diário de Notícias]