É difícil imaginar uma tortura mais inumana que obrigar um rapaz de 12 anos a memorizar todos os reis da Espanha desde o último rei visigodo, Dom Rodrigo. Após ter sofrido aquela tortura na escola, lembro ter jurado não querer saber nada sobre esses reinos cheios de parricidas e psicopatas, prometim nunca mais ter que ler essa lista infinita de reis do período medieval, que se confunde hoje com os terroríficos nomes das versões beta do software de Linux. Porém, este mês agosto quebrei a minha promessa e comecei a ler as novas interpretações históricas daquele período. Recomendo vivamente a leitura das obras do historiador Anselmo López Carreira, assim como as de Camilo Nogueira ao respeito da história da Galiza no período medieval. Uma delícia. Segundo estes e outros autores, a nossa história medieval foi silenciada e desprezada pola historiografia espanhola decimonónica, nomeadamente por Modesto Lafuente e Menéndez Pidal, cuja versão tendenciosa foi continuada por Claudio Sánchez Albornoz até chegar aos atuais livros de texto que estão a moldar o inconsciente coletivo de todas as que vivemos com naturalidade o revisionismo histórico do nacionalismo espanhol.
O nacionalismo espanhol pretendeu e pretende afundar as suas raízes na monarquia visigoda e nos simpáticos e valerosos astures, com Paio à cabeça, mas tivo que ocultar sem pudor que por ali estava também o reino suevo-galaico que derivou no único espaço político não controlado polos emires árabes de Córdova: o Reino da Galiza, no qual se inseriam os territórios dos reis e senhores astures que deram lugar ao mito de São Paio e da mal chamada Reconquista.
Fago um breve repasso histórico. No século III, os romanos atribuíram oficialmente o nome de Gallaecia à província que ocupava o noroeste da Península Ibérica. No ano 410, constitui-se sobre ela um Reino independente, o primeiro da Europa medieval, governado polos reis suevos, que foram os primeiros reis germânicos da Europa em se converterem ao catolicismo. Na segunda metade do século VI, o reino tivo contactos com os bizantinos e estendeu-se do Cantábrico até Lisboa. Vale a pena ler os conselhos de caráter senequista de Martinho de Dúmio, intelectual da época, para se dar conta que aquele reino não era uma banda de guerreiros e labregos incultos. A historiografia espanhola considerou que os visigodos eram mais cultos e mais católico-apostólicos que os suevos, pois a linhagem dos reis castelhanos provinha miticamente dos últimos reis visigodos. Não quigeram ver que os primeiros concílios da era pós-romana foram celebrados em Braga e Lugo, no reinado suevo. Isso não condizia bem com o relato mítico que estavam a construir. Os suevos e galaicos nunca tiveram qualquer tipo de protagonismo na história da Espanha. Sempre foram, são e serão periferia.
Anexado polos visigodos no 585, o reino suevo não perdeu a consciência de ser um Reino, e assim ficou como única entidade independente frente ao novo emirato islâmico que se criou em 711. Os mapas dos historiadores medievais, tanto árabes como carolíngios, revelam uma península dividida em duas entidades políticas: a Hispânia, baixo o emirato de Córdova (Al-Andalus) e o Reino da Galiza, herdeira da tradicional Gallaecia romana e do Galliciense Regnum suevo. Galiza é, portanto, a única realidade política cristã da península nessa altura. Leão e Astúrias eram daquela territórios da Gallaecia, embora a historiografia tradicional chamasse de jeito falaz Reino de Astúrias ou de Leão a essa entidade política.
A estrutura desta entidade política é, em termos matemáticos, algo semelhante a um grafo acíclico onde os arcos são relações de vassalagem (ou dependência) entre vértices que se correspondem com nobres, condes, reis, bispos, comerciantes, labregos, sendo o rei de Leão (antes de Oviedo) e o arcebispo de Santiago os vértices do grafo que recebem mais ligações de vassalagem, quer dizer, os vértices-raíz de que dependem o maior número de vértices. Trata-se portanto duma rede hierárquica, como muitas outras que se teceram no complexo universo da época medieval. Nesta rede de dependências de vassalagem, o rei de Leão não é o rei do Reino de Leão, como quijo fazer-nos crer a historiografia tradicional, mas o rei da Galiza com capital em Leão. De facto, a maioria dos reis, até o século XII, foram coroados em Compostela e mui provavelmente, todos falavam galego na Corte, nas dioceses e na intimidade. Do ponto de vista comercial, a Galiza sempre virou cara ao Atlântico, frente a outros contrapoderes peninsulares. A partir do XII, com a presença de Castela como nova entidade política emergente, começaram a marcar-se diferenças entre os diferente territórios do Galliciense Regnum: o condado portucalense independiza-se e a região oriental asturo-leonesa, arredor de Astorga e Leão, quebra muitas das suas dependências de vassalagem com a região ocidental (a atual Galiza) e começa a falar-se do Reino de Galiza e Leão, embora ainda seja uma única realidade política durante mais dous séculos.
Recentemente, caiu nas minhas mãos um dos gigantescos tomos da História de Galicia, nomeadamente o tomo II da enciclopédia, focado na época medieval, e escrito há mais de duas décadas polos catedráticos da Universidade de Santiago, María del Carmen Pallares e Ermelindo Portela. Desde que lim os livros heterodoxos de López Carreira, já ouso mergulhar nos enfastiantes volumes da história medieval com outros olhos. Nesse volume, encontrei nas primeiras páginas erros e contradições provocados por seguir a esteira da historiográfica tradicional espanhola. Por exemplo, os autores afirmam primeiro que a “Galicia do 700 e das centurias seguintes […] seguía sendo herdeira da Gallaecia criada coa reorganización administrativa tardorromana de Diocleciano e da Gallaecia que ocuparon os Suevos”, mas duas páginas depois situam a monarquia astur fora da Galicia: “Pero á diferencia das terras situadas ó norte da Cordillera Cantábrica [o reino de Asturias] nas que se estaba formando o novo núcleo de poder, Galicia si experimentara en considerable medida a romanización”.
É claro que se Galiza é Gallaecia e Gallaecia contém as Astúrias, não pode haver um novo núcleo de poder alheio à Galiza. Esta escolástica contradição é a base do mito do rei Paio e da Reconquista, que permitiu ligar os reis castelhanos/espanhóis com os primeiros reis cristãos. Deste jeito, o relato revisionista permite explicar a criação da nação espanhola de jeito mui natural seguindo a linearidade seguinte: visigodos – astures – leoneses – castelhanos – espanhóis, povos irmãos que lutam como uma única nação frente ao malvado emirato/califado árabe. O reino da Galiza fica fora desta estirpe nacional, pois a Galiza é realmente o principal contrapoder a Castela no alto medievo, que quebra esse lindo alinhamento onde todos os (proto)-espanhóis lutam juntos contra os mouros. Em consequência, no relato revisionista, Galiza é rebaixada a um ente periférico dentro do inexistente Reino Asturo-Leonês. Um outro erro que encontrei no volume acima citado vai também nesta mesma direção. Nas páginas em que descrevem o reino suevo, os autores dizem que este povo se converte ao cristianismo no século V. Isto semelha ser falso. Os suevos, como os visigodos, eram arrianos e, portanto, cristãos. O que acontece nessa altura é que abraçam o catolicismo formando, como dixem anteriormente, o primeiro reino católico da Idade Média europeia. O sentido do erro é claro: os suevos era um povo pagão e bastante bruto que demorou um anaco em fazer-se cristão como dios manda. Os visigodos, esses sim, eram bem apostólicos desde o princípio, por isso foram situados no alicerce da nação espanhola. É bem triste que os nossos historiadores galegos mantenham o relato revisionista da historiografia nacionalista espanhola. Um sintoma evidente de que somos um povo domado e bem domesticado.
É hora, portanto, de reivindicar os nosso queridos psicopatas medievais, tão cruéis e assassinos como os castelhanos, mas que não merecem ficar na periferia mental do nosso inconsciente coletivo. Houvo uma nação no noroeste peninsular que lutou por ser uma entidade política e comercial de raízes atlânticas. Talvez algo fique daquela entidade nacional no espírito das marés galegas cidadãs que hoje emergem, viradas cara ao Atlântico e afirmando-se frente ao poder hegemónico dos reinos mediterrâneos contemporâneos.