O bom das efemérides é a memória celebrada e recuperada. O mau são os tópicos repetidos e a consagração ritual de lugares comuns, muitas vezes inocentes, de repertório. Mas outras, são reveladoras de elementos mais inquietantes na transmissão da memória e pistas do jeito em que (e por quem e como) se foi construindo a tradição que entre todos imos inventando (sempre uns mais que outras).
Há anos que me chama a atenção. E penso que já tenho escrito a respeito alhures e mais por detalhe. E continua a se me fazer difícil considerar que o Boletim Nós tenha de fechar temporalmente, em 1923, por causas (que causas?) ou circunstâncias (que circunstâncias?) relacionadas diretamente com a Ditadura de Primo de Rivera.
Sempre me pareceu mais lógico, pensar que fechava por má gestão administrativa e porque uma publicação de essa qualidade – e nessa língua – não era possível numa imprensa comercial das existentes nas cidades galegas na altura, salvo pagando uma fortuna, para a impressão de cada número.
Apenas a Crunha tinha na altura o tecido industrial no setor, mas nada a comparar com Madrid ou Barcelona. O resto eram empresas familiares. Imprensas que, por outra parte, se regiam por tempos fechados, bem delimitados de produção pontual, por limitação de caixas compostas ocupadas em uso, maquinária, tipografia e sistemas de ilustração; e em razão da competência dos operários cuja velocidade de composição e perícia vinha marcada, entre outras cousas, pela capacidade de ler manuscritos e o domínio da ortografia.
Sem A. Casal (L. Carré, não veria negócio nem nos Arquivos do SEG nem em Nós) o boletim fecharia após peregrinar por múltiplas imprensas locais. Empresas que por outra parte não conseguiriam nunca satisfazer as aspirações estéticas de Risco.
É dizer sem a imprensa de Partido, primeiro Lar, depois Nós, o Boletim com as suas cores, gravados, tempos dilatados de entrega de originais, correções sobre a marcha e com composição em base a originais manuscritos, notas num conjunto de normas sem comum, e mudanças constantes por parte dos diretores artísticos e redação, era a todas luzes impossível.
É dizer sem a imprensa de Partido, primeiro Lar, depois Nós, o Boletim com as suas cores, gravados, tempos dilatados de entrega de originais, correções sobre a marcha e com composição em base a originais manuscritos, notas num conjunto de normas sem comum, e mudanças constantes por parte dos diretores artísticos e redação, era a todas luzes impossível.
Nós, como tantas cousas no projeto sobredimensionado que é a ING vai ao tacho, em Junho de 1923. Antes um desesperado Risco já se queixara por carta aos amigos da divida que lhe ocasionara a impressão do Boletim. Antes, portanto, de ter presente uma ditadura na que, por outra parte, nenhum dos membros de Nós foi incordiado. Antes bem… e não digo mais que não é preciso.
E de qualquer jeito, como ia o Boletim, no que não há um único artigo político, padecer pressão ou censura até o ponto de ter de fechar e, por outra banda continuar a Irmandade da Fala da Crunha (e afins) sacando a ANT de 1923 a 1931? Publicação que sim como sabemos e lembrará Vítor Casas justamente nesse derradeiro Número de Nós, tinha de apresentar no governo civil cada número para a Censura e quando sim sofria a Irmandade da Crunha vigilância policial e de quando em quando registros.
Para além. Uma das consequências diretas da Ditadura de Primo de Rivera e da censura estabelecida sobre a imprensa foi o feche ou abandono das publicações periódicas da esquerda social, dos movimentos operários e do regionalismo. Minimizando o impacto da censura e deslocando o esforço às publicações de teor cultural e nomeadamente ao setor editorial.
Os anos da ditadura são os anos da Literatura de Avançada, das traduções dos contemporâneos europeus e americanos, da literatura, arte e pensamento que impulsam a esquerda marxista alemã, francesa, e das diferentes tendências e fases que se originam nos debates revolucionários com a URSS como centro. Mas decorrendo em forma de revistas culturais, e livro. Dando origem a um fenómeno editorial e agitação intelectual sem precedentes desde 1868.
Como ia o Boletim Nós, que foi pioneiro nisto, ir a contrário? Não. O Boletim Nós não desaparece por pressões ou circunstancias da Ditadura. Entre outras cousas porque quando reinicia na Crunha em 1925, a Ditablanda de 1923 já era uma Ditadura sem horizonte de final, mais repressiva e combatida.
Daquela, o boletim de Risco, o Chefe supremo da ING que desde 1922 em Monforte se empenhara em aniquilar o setor chefiado pelos da Crunha, encontraria justamente, no território “inimigo” das Irmandades, não um trágala ou era visto, quanto as amorosas mãos de Casal e a estrutura administrativa e de distribuição de ANT, LAR e Nós.
O que é mais, encontraria um mimo, um cuidado e a disponibilidade de tempo que precisavam as demoras, as cores, ilustrações, as retificações e as filigranas gráficas que cada número exigia e que são os que definem em boa maneira a publicação. O voluntarismo e a incorporação direita de várias gerações de desenhadores nacionalistas, de Castelao a Luis Seoane.
E se uma cousa é o “Boletim Nós” que sem o apoio do setor político do nacionalismo não passaria pouco mais de uma dúzia de números geniais, outra a “Xerazón Nós”.
A tal “Xerazón Nós”, antes “A geração de Risco”, é um invento de Galáxia. Nos últimos anos tem de mais em mais corrido a tinta a respeito. E arredor desse conceito e do papel de Galáxia começam a aparecer sérias discrepâncias e interessantes perguntas.
A tal “Xerazón Nós”, antes “A geração de Risco”, é um invento de Galáxia. Nos últimos anos tem de mais em mais corrido a tinta a respeito. E arredor desse conceito e do papel de Galáxia começam a aparecer sérias discrepâncias e interessantes perguntas.
O Grupo Nós, como tal, é um grupo localizado entre Ourense e Ponte-Vedra. Um grupo operativo de criadores intelectuais de elite, que sucedeu por estar especializado, mas por estar dentro de um conjunto articulado.
Um grupo arredor de uma Revista quase Art déco, pensada para uns poucos números, por e para um público de minoria, que se transformará pelo contexto orgânico e demanda do projeto político e cultural total do galeguismo, num projeto de continuidade e referencia, configurador do corpus nacionalista em construção, que foi interrompida pelo genocídio de 1936.
Um grupo arredor de uma Revista quase Art déco, pensada para uns poucos números, por e para um público de minoria, que se transformará pelo contexto orgânico e demanda do projeto político e cultural total do galeguismo, num projeto de continuidade e referencia, configurador do corpus nacionalista em construção, que foi interrompida pelo genocídio de 1936.
Porque Nós é tanto Risco e Castelao quanto Anxel Casal. De feito o derradeiro número que ficou sem distribuir é homenagem a ele e história não apenas do próprio Boletim Nós quanto dos trabalhos de Casal. E, portanto, se Risco é Nós, Casal (sendo Nós) é também o impressor do SEG e o impressor dos Republicanos, dos federalistas, dos galeguistas, dos operários, dos antifascistas e dos estudantes de Compostela.
A vigência e predomínio, portanto, dessa fantasia é uma vigência de Galáxia e do Piñeirismo: para deslocar a carga política da Geração real, a do 16, e justificarem o seu próprio projeto.
Porém e a contrário da lógica e desta perspetiva mais abrangente, fixou-se uma dicotomia reducionista. Deu-se importância a uma parte concreta (que não complicava no franquismo) no canto de atender ao conjunto (que tinha partes, personagens, projetos e iniciativas na onda constituinte não apenas do separatismo, senão mesmo da República e da Fronte Popular). E, daquela, estabeleceu-se um filtro. Divertindo e apagando a memória política e a presença das figuras e da estrutura de poder no nacionalismo de antes da Guerra.
Desde aquela a visão, o foco, concentra-se apenas no Grupo e nos indivíduos dessa elite intelectual, literária e artística concreta. E legitimando apenas uma parte da tradição e colocando a Risco como ideólogo central político-intelectual em destaque e antecedente principal. Conseguia-se assim consagrar uma tradição intelectual, destacadamente católica e conservadora, para o Galeguismo, que funcionava tanto para atrás na procura de antecedentes quanto para diante no tempo e na que Galáxia ocupando um lugar central vinha a calhar como herdeiro natural e continuador.
Com isto eliminava-se ou descafeinava-se o sentido de uma política de massas como objetivo e dinámica acelerada no PG a partir de 1933 e o papel de elementos de conexão com a esquerda republicana, com a maçonaria, o republicanismo de base federal, o laicismo e com os movimentos populares (agraristas, sindicalistas, juventudes socialistas e comunistas, libertários, ecologistas). Faziam-se desaparecer do primeiro plano as figuras que na Geração do 16 já emergiram desde a base popular. Isto supunha chocar frontalmente e concorrer com o Exílio em legitimidade institucional e em presença pública na sociedade galega. E, de passagem, conseguia-se estabelecer um discurso culturalista, sem conflito, que podia ser “normalizado” no franquismo e nomeadamente no franquismo fraguiano.
Com isto eliminava-se ou descafeinava-se o sentido de uma política de massas como objetivo e dinámica acelerada no PG a partir de 1933 e o papel de elementos de conexão com a esquerda republicana, com a maçonaria, o republicanismo de base federal, o laicismo e com os movimentos populares (agraristas, sindicalistas, juventudes socialistas e comunistas, libertários, ecologistas). Faziam-se desaparecer do primeiro plano as figuras que na Geração do 16 já emergiram desde a base popular.
E se por uma parte esquecia a importância da política e do discurso reivindicativo socialmente e soberanista; por outra privava a Risco e às mais importantes figuras intelectuais e artísticas, ao próprio Boletim, do contexto que os define e que dá sentido completo ao seu discurso e artefactos culturais.
A divisão define dous galeguismos. Um deles que se esgota com o correr do tempo à morte no esquecimento do exílio republicano, e que afeta mesmo aos retornados e a aqueles que no interior continuam nas Teses políticas do nacionalismo anterior à guerra Civil.
Outro continua e estende a sua visão antes durante e depois da Transição, e é o que desenha e reconfigura, para o definir em justificação da política e estratégia cultural que se define nos 70-90: o cânone, o relato e a presença. Com elas também a cronologia em destaque, as balizas, marcos, persoeiros, gerações, tradições, discursos e tópicos.
E entre eles, também o que seja a língua e em consequência a ortografia. De feito na prática, a posteriori e continuado pela Historiografia nacionalista dos 80 em diante, fixa-se também discretamente – desculpem que insista de novo – um outro isolacionismo político, cultural e historiográfico no que o ortográfico é parte.
[Este artigo foi publicado originariamente no blogue A viagem dos Argonautas]