Alfabetização

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Mulheres aprendendo a ler e escrever, na cidade de Tcheboksary, nos anos 1930.
Mulheres aprendendo a ler e escrever, na cidade de Tcheboksary, nos anos 1930.

Toda a gente é consciente que a alfabetização como direito universal é uma das aspirações e características das sociedades modernas. É um direito, vinculado à própria noção de igualdade que envolve a ideia e sentido do Cidadão e, portanto, à de Estado. A alfabetização escolar e as campanhas destinadas à cidadania adulta, com campanhas enormes e recursos, foi sempre um dos grandes objetivos e sucessos das Repúblicas emergentes e mais ainda das socialistas.

A alfabetização pretende que toda a gente adquira, a poder ser na infância, uma capacidade para ler, escrever, uma mínima compreensão oral e escrita, competência em matemática básica e ser quem de usar métodos científicos, manuais e algumas fontes básicas de informação.

Porém, o domínio pleno do padrão, da língua culta é outra questão. Relacionada com os níveis de competência e com o papel que essa competência reconhecida ou domínio desempenha na imagem, no status, na pertença a uma classe ou grupo.

Até há nada a Escrita arrebatara presença à Oralidade, que através da oratória retórica fora tão importante na história. Porém nas últimas duas décadas de novo pela tecnologia e a internet volveu a palavra dita junto com a imagem, a ganhar espaço como manifestação diversa em uso, classe, status. Isto talvez no futuro recomponha os equilíbrios e a reformulação em planos diversos da oralidade padronizada num jeito que ainda não enxergamos.

Até há nada a Escrita arrebatara presença à Oralidade, que através da oratória retórica fora tão importante na história. Porém nas últimas duas décadas de novo pela tecnologia e a internet volveu a palavra dita junto com a imagem, a ganhar espaço como manifestação diversa em uso, classe, status. Isto talvez no futuro recomponha os equilíbrios e a reformulação em planos diversos da oralidade padronizada num jeito que ainda não enxergamos.

Mas pelo momento, a oralidade (fora dessa prática culta, académica, política ou formal vinculada à oratória) aprende-se por uso na comunicação e há na realidade tantas possíveis como espaços diastráticos e diatópicos; mas a escrita é um hábito, um conhecimento formalizado adquirido, com não pouco esforço, antigamente um privilégio, modernamente pela escola e a alfabetização obrigada, convertido em Direito e também em vínculo de cidadania com a Nação.

Uma e outra, por igual que os aprendizados delas, podem estar mesmo desvinculadas entre elas ou ligadas a espaços sociais e culturais com práticas diversas. De qualquer jeito o domínio do padrão, da norma culta escrita, não é apenas um conhecimento quanto também uma habilidade, cujo domínio (o domínio do padrão estabelecido que se identifica com o poder económico, político, social e o cânone dos imortais) confere autoridade, reconhecimento escolar, e até prestígio social.

É uma artesania, por sua vez. Precisa de inúmeras horas e esforço e até não há nada ficava relacionada através da escrita de mão (sobre papel e com tinta) com a memória manual (com a habilidade treinada das mãos) e, portanto, com práticas em tradições e escolas caligráficas e automatismos diversos muito arraigados no cérebro.

Esta automatização (em quase todo ponto desvinculada da língua oral) é que explica as soluções imediatas nos mais dos processos de colocação de letras, acentos gráficos, representação de palavras. Tudo isto, sem necessidade nenhuma de recorrer a dicionários, gramáticas ou à oralidade: sei que é com J, G, X com Ô ou Ó, com B ou V, com S, -Ç ou -SS- sem hesitações porque a mão quase automaticamente escreve assim. Sei também que preposições regem, que verbos pedem complementos, qual a sintaxe pronominal que o ritmo me marca e que léxico de repertório é apropriado para o tom ou o registo. E se não sei é porque não tenho treinamento adequado, ou careço das horas no estudo de modelos.

Boa letra, boa ortografia: horas de escola, de esforço, de pensamento, de prática… como não vai ser a ortografia e a correção algo sentimental e relacionado com a identidade, com a imagem e com o posto que ocupamos na República das Letras?

Para nós, na Galiza, a questão ortográfica não faz parte da normalidade, dos benefícios do nacionalismo banal. A contrário é algo, nos mais dos casos, contra-institucional. Que rompe com a identidade escolar e de Estado, contra a aprendizagem regrada. E mais quando como no nosso caso, esse esforço e hábito adquirido é numa língua outrizada, numa língua castelhana (na que estamos, portanto, tão marcados os que fomos escolarizados) com a que por motivos políticos, ideológicos e sentimentais, rompemos propositadamente tratando de nos dar outra.

Para nós, na Galiza, a questão ortográfica não faz parte da normalidade, dos benefícios do nacionalismo banal. A contrário é algo, nos mais dos casos, contra-institucional. Que rompe com a identidade escolar e de Estado, contra a aprendizagem regrada. E mais quando como no nosso caso, esse esforço e hábito adquirido é numa língua outrizada, numa língua castelhana (na que estamos, portanto, tão marcados os que fomos escolarizados) com a que por motivos políticos, ideológicos e sentimentais, rompemos propositadamente tratando de nos dar outra.

E que percorrido, o de toda a gente, autodidatas, já na vida adulta, com voluntarismo e não pouco amadorismo, transitando momentos (lembranças, esforços e saudades) a normas e práticas de escrita diversas. E até já em muitos casos desligada da função de aprendizado manual, dissociada em escrita de computador, que vai, provavelmente, noutro apartado de prática, hábito e memória.

Nós carecemos da base formal, da norma interiorizada para interpretar o conceito NORMA, menos ainda para perceber variações pertinentes entre normas. Pois andamos por décadas a variar, a hesitar entre propostas, soluções e práticas.

A formalização individual das normas coletivas exige antes uma aprendizagem regrada e para além uma prática continuada, um hábito. Que norma podemos ter nós? quanta gente na Galiza tem uma completa, sólida e regrada alfabetização em qualquer uma norma padrão que não seja a castelhana?

“Mulher, aprenda a ler e escrever! Oh, mãe! Se você fosse alfabetizada, poderia me ajudar!” (Pôster de 1923)
“Mulher, aprenda a ler e escrever! Oh, mãe! Se você fosse alfabetizada, poderia me ajudar!” (Pôster de 1923)

Todos os que atualmente escrevem e mais todos os que levam escrevendo galego na idade moderna desde fins do século XVIII apresentam a mesma problemática. É mais, podemos dizer que escrevem (escrevemos) um galego autodidata e individual, com traços de grupo em vias de formalização a partir de 1850, mas não realmente sistematizados e popularizados antes da escolarização em galego (que não aconteceu senão como processo incompleto – e hoje, todavia precário – antes de 1980).

O fenómeno da alfabetização voluntária em português regrado a adultos (rudimentar ou mais ou menos profissional) é uma questão também individual e nos mais dos casos precária e tremendamente moderna. A moda ou tentativa dos reintegracionistas escreverem com a ortografia portuguesa é com todas as hesitações e defeitos e com todas as implicações, desafio e procura de coerência, cousa de há umas poucas décadas. É pouco o volume e escasso o tempo para podermos analisá-lo como realidade e como espaço de criação alternativa de uma Norma Galega.

Ser conscientes das limitações, percebermos a realidade em todo o seu tamanho é complicado. Pormos os meios, a energia, mais, deixarmos uma prática à que nos afizemos, na que vinculamos esforço, decisão, paixão, ideologia, política e com ela momentos, ambientes, projetos, pessoas, por outra é difícil e mais quando não há facilidades, nem recompensas. Não é uma simples escolha técnica, ou vontade, é também uma questão de hábito, de lealdades, de identidade e de imagem pessoal e grupal. Não é questão de capricho ou de pouca importância, mas também, portanto, não é de pertinência ou idoneidade linguística.

Um dos grandes erros sociais e políticos de 1980 a hoje, foi não promover ou dar um sentido a iniciativas e campanhas populares de alfabetização para adultos. Efetivamente que isto é algo que teria de ter feito a Xunta e as instituições que têm os recursos e dificilmente poderiam ter feito particulares ou coletivos. Não fez. Talvez por má vontade. Talvez porque não deram prioridade ao ensino do galego. Talvez porque na realidade o seu objetivo sempre foi dificultar que o galego fosse uma língua nacional.

Um dos grandes erros sociais e políticos de 1980 a hoje, foi não promover ou dar um sentido a iniciativas e campanhas populares de alfabetização para adultos. Efetivamente que isto é algo que teria de ter feito a Xunta e as instituições que têm os recursos e dificilmente poderiam ter feito particulares ou coletivos. Não fez. Talvez por má vontade. Talvez porque não deram prioridade ao ensino do galego. Talvez porque na realidade o seu objetivo sempre foi dificultar que o galego fosse uma língua nacional.

Lembro com saudades aqueles primeiros manuais populares, o seu espírito e cantiga de esperança nos prólogos; lembro muitas daquelas iniciativas de espaços associativos dos anos 80 e de antes; e sempre admirei o grande trabalho formativo popular que fizeram as Associações culturais – nomeadamente as reintegracionistas – nas últimas décadas.

É de lamentar que não se desenvolvesse, a sério e por todo o país, como programa, algo neste esquema, em espaços paroquiais, associações de vizinhos, bibliotecas, centros de cultura e de dia, espaços de socialização popular, sindicatos, bibliotecas, aulas de cultura, câmaras de comercio, formação de desempregados, associações locais e gremiais. Aproveitando esses espaços para desenvolver algo como o que se fazia nos cursos de galego de “Iniciación” e “Perfecionamento” (aqueles antecedentes dos CELGA) desenhados para emigrantes.

E isto digo por experiência, não se tratava tanto dos títulos, esses eram para a gente nova que procurava saídas profissionais, quanto para gente na maturidade e já idosa, poder aprender a ler e até escrever a própria língua; o que acontecia em forma diversa, em função da alfabetização e cultura prévia, e com dificuldades, nomeadamente, quando as carências educativas eram enormes; mas para essa gente era a maravilha nas mãos, era abrir a porta a um mundo.

A Galiza depois da Pandemia, tem de pensar na alfabetização pendente dos adultos, agora e definitivamente numa perspetiva lusófona. É dizer, de jeito simples e claro: a alfabetização maciça de adultos em Língua portuguesa, devia fazer parte do programa de qualquer organização política, sindical ou social que tenha um projeto de Galiza nas miras.

Nota.

Uma versão bocadinho mais light deste artigo foi publicada em A viagem dos Argonautas. Republico no PGL, com algumas mudanças, por pedido do amigo Alexandre Banhos. Cumpre dizer que o texto nalgum jeito dialoga com os últimos artigos de Elias Torres re-publicados no PGL e escritos para o blogue Viva Cerzeda e no meio do bulir reintegracionista que neste ano Carvalho Calero e um mais, podemos evidenciar nos mass média e redes sociais galegas.

As imagens foram tiradas da Revista Opera.

Máis de Ernesto V. Souza