A pataca galega e a pataca de Macau

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O meu amigo José Ramom Pichel perguntou-me há poucos dias donde vem o termo “pataca” para referir-se à moeda de Macau, antiga colónia portuguesa na atual China. Curiosamente, pouco depois, recebim um convite duma antiga colega que trabalha lá para participar num workshop sobre tecnologias da língua portuguesa em Macau. Tudo no mesmo dia. Linda coincidência. Pensei logo que devia procurar a etimologia do termo para ter cousas das que falar nas pausas café do congresso. Hoje em dia temos ao nosso dispor muitos instrumentos linguísticos para levarmos a cabo este tipo de buscas, mesmo se não somos peritos etimólogos. Para este estudo, utilizei recursos lexicográficos da web e em papel,(1) assim como corpus diacrónicos com os que consultei usos da palavra e derivados.(2)

No dicionário Estraviz, “pataca” tem duas entradas, o que nos leva a duas palavras homónimas: o tubérculo e a moeda. A etimologia do tubérculo não oferece dúvidas: a batata portuguesa deriva do termo taíno “batata”, que significa nessa língua do Haiti, camote, um tubérculo semelhante à pataca. O termo castelhano “patata” é provavelmente um cruze de “batata” com o termo quéchua “papa”, que designa a variedade de tubérculo que nós conhecemos como pataca. Como ambos eram tubérculos mui parecidos acabaram por confundir-se no termo castelhano “patata”. Tanto em português como em castelhano produziram-se interessantes alterações fonéticas e semânticas. O termo português “batata” sofreu unicamente uma mudança semântica: de camote passou a significar papa por analogia. O termo castelhano sofreu a maiores uma mudança fonética devido à mesma interferência analógica: passou da forma “batata” a “patata” por influência da voz “papa”. Trata-se duma mudança fonética por analogia lexical. Ora bem, por que nas variedades galegas dizemos “pataca” e não “patata” nem “batata”?

Como dizia, além da “pataca” tubérculo existe também o seu homónimo referente a uma moeda. A etimologia desta última palavra é mais polémica. Os dicionários da RAE e da RAG coincidem (por que será?) em oferecer uma origem italiana: “patacca”. O dicionário etimológico de Corominas e o Vocabolario Treccani falam duma origem desconhecida, embora se usasse na Itália e na Provença (“patac”) desde a Idade Média. Fum portanto procurar no Vocabolario etimologico della lingua italiana de Ottorino Pianigian, editado em 1907. Esta obra sinala que o termo procede do árabe “bâtâqa”, explicando que se trata do “nome col quale i mori della Spagna chamavano le piastre [moedas de prata] spagnole”. Isto leva-nos a uma origem ibérica na época medieval. Embora não tenhamos certeza da etimologia exata do termo, fica claro que se usava na época medieval em ambientes comerciais de territórios do sul de Europa, incluindo a Península Ibérica. Constatamos, portanto, que este termo é anterior ao que designa o tubérculo, pois este último só chegou a Europa no século XVI desde América. Curiosamente, foi nesse momento que a pataca-moeda se exporta na outra direção, cara às colónias portuguesas de ultramar. Aparecem moedas chamadas de pataca no Brasil mas também em Ásia, nomeadamente Timor e Macau. Temos, portanto, a certeza de que a pataca de Macau não vem do nome do tubérculo em galego. No entanto, seguimos sem poder responder a pergunta de por que em galego dizemos “pataca” e não “patata” nem “batata”.

É o momento de consultar nos corpus diacrónicos, é dizer, em textos organizados por períodos históricos. Procurei em textos castelhanos, portugueses e galegos desde a Idade Média. Chamo aqui de galego os textos escritos em português na Galiza em qualquer norma (próxima da portuguesa ou da castelhana). Coloquei o foco no uso de “pataca” e derivados (“patacão”, “patacón”, “pataco”, …) com o sentido de moeda. Ao respeito do castelhano, encontrei usos de “patacón” a partir do século XVII, e de galego a partir do XIX, sendo o uso em galego proporcionalmente maior que em castelhano. Um exemplo de uso em galego de este termo é o seguinte:

“Vestía e calzaba millor que todos, e polo peto sempre lle andaba algún patacón.” em Estebo, de Xosé Lesta Meis, A Corunha, 1927.

Não apareceram casos de pataca com este sentido monetário nem em castelhano (exceto algumas referências recentes às moedas de Macau e Timor) nem nos textos galegos. Em português, no entanto, apareceram muitos casos já desde o século XVII. Um exemplo:

“com huns cordoens verdes, e tem dentro seis dobroens, quatro patacas, e hum papelinho de alfinetes.” Arte de Furtar, do Padre Manuel da Costa (1601-1667).

No caso do galego, como não dispomos de um corpus escrito de um tamanho significativo entre os séculos XVI e XVIII, não podemos conhecer de forma direta o uso do termo. A partir do XIX surge no português o derivado “pataco”, referido provavelmente a uma quantidade específica de dinheiro em gíria ou língua popular (semelhante ao uso do termo “contos”). Gosto especialmente deste ditado popular: “mais vale um pataco na mão que duas Philosophias a voar“. E também desta frase cheia de retranca: “não dou nem dois patacos a um padre para te fazer o enterro”. Ambas recolhidas de textos do século XIX. Também neste século recolhem-se os primeiros usos de “patacão” com o mesmo sentido que “pataco”, e nos mesmos contextos que nas variedades galegas:

não tenho hoje nem um patacão para emprestar”, As Mulheres de Mantilha, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882).

Acho que temos elementos para tentarmos responder à nossa pergunta e colocar uma hipótese com fortes argumentos. Existem dous termos parónimos (diferentes palavras mas com forma semelhante): “batata/patata” para o tubérculo e “pataca” para a moeda ou para referir-se a uma quantidade de dinheiro. Quando chega o tubérculo a Europa, no século XVI, o galego-português usava o termo “pataca” para designar uma moeda na língua popular. Este uso foi o que se espalhou polas colónias americanas e asiáticas e deu lugar a diferentes moedas nacionais em diferentes territórios. Dado que, nessa altura, o galego já estava submetido ao castelhano, o tubérculo chegou com o rótulo de “patata”. Este termo, e aqui está a hipótese que formulo, mudou foneticamente para pataca polo cruzamento lexical com a pataca-moeda, de uso mui comum nessa altura na área linguística galego-portuguesa. Trata-se, de facto, de uma mudança fonética por analogia lexical, semelhante ao cruzamento de “patata” com “batata” e “papa” explicado acima para o castelhano. O passo de dental /t/ a velar /k/ não se pode explicar por nenhuma lei fonética regular, senão por algum tipo de interferência semântica inovadora entre dous parónimos. Esta interferência entre “patata” (tubérculo) e “pataca” (moeda) semelha ser bem razoável, nomeadamente se temos em conta que há uma evidente ligação económica entre o tubérculo e o conceito de dinheiro. De facto, a pataca começou desde cedo a ser o alimento básico dos galegos substituindo à castanha. Este tipo de mudanças fonéticas por interferências/analogias lexicais são habituais na língua. No galego-português, por exemplo, o termo “ferrolho” provém da palavra latina “veruculum”. A evolução natural devia ter sido “verrolho”, que também existiu na língua antiga, mas polo facto de os ferrolhos serem de ferro, esta palavra cruzou-se com “verrolho” para dar finalmente “ferrolho”. Algo semelhante aconteceu em castelhano. Existiu “berrollo/berrojo”, mas o cruzamento com o conceito de “cerrar” (a finalidade do objeto) deu lugar a “cerrojo”.

Se a hipótese colocada for certa, tratar-se-ia duma das últimas mudanças internas do léxico das variedades galegas afastando-se do português padrão sem influência do castelhano. Esta mudança evidência a força e vitalidade da língua galega no século XVI embora estivesse submetida ao castelhano no registo formal e na escrita. É uma palavra que se descastelhaniza mediante a interferência portuguesa. A partir de então, o novo léxico que entra se deportuguesiza mediante a interferência castelhana. Por outro lado, se a hipótese se confirmar, poderíamos afirmar que o uso de “pataca” com o sentido de moeda estava mui estendido nas variedades galegas mesmo se não podemos ter evidências textuais nesses séculos. Após uma rápida análise dos textos da época, sabemos que também estava mui presente na língua oral das variedades portuguesas e provavelmente menos ou nada nas castelhanas, pois só encontrei alguns exemplos de “patacón” nesta língua.

Em resumo, dizemos “pataca” para o tubérculo em vez de “patata” graças à palavra que designa a moeda e que se encontra ainda viva em Macau. Se não fosse por essa antiga voz de origem desconhecida, mas tão nossa e popular e que deu lugar ao bem conhecido “patacão”, estaríamos hoje usando o termo castelhano “patata”.

NOTAS:

(1) Principais recursos lexicográficos consultados:

Dicionário Estraviz: https://estraviz.org/

Vocabolario etimologico della lingua italiana: http://www.etimo.it/

Vocabolario Treccani: http://www.treccani.it/vocabolario/

Dicionário da RAG: https://academia.gal/dicionario/rag

Dicionário da RAE: https://dle.rae.es/

COROMINES, Joan. Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana. (DELC) Madrid: Gredos y Bern, Francke, 1954-1957.

(2) Principais corpus diacrónicos consultados:

Corpus CARVALHO galego-português-castelhano (José Ramom Pichel): http://fegalaz.usc.es/~gamallo/resources/Carvalho.tgz

Corpus do Português (Mark Davis): https://www.corpusdoportugues.org/

Corpus CORDE: http://corpus.rae.es/cordenet.html

TILG: https://ilg.usc.es/TILG/