A Galiza como tarefa – pêndulo

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texto originalmente publicado em A Viagem dos Argonautas

Na ilusão de liberdades, na miragem digital e na enchente de informação que chegou com internet talvez esquecemos, imprudentemente, aquele mito conservador, ou ameaça escolar, da história ser pendular. Assim, em nada, diremos: houve um tempo em que a internacionalização, o intercâmbio quase imediato de dados, a comunicação e a tolerância anunciavam belos futuros.

O mundo não é racional, nem justo, nem ordenado, nem lógico, advertidos estávamos. Hoje, se estamos a enxergar o horizonte, percebemos a retirada acelerada do mar que anuncia a chegada das altas ondas da reação. Intolerância, irracionalidade, destruição do outro, fronteiras, invadem tudo; assolagam e fecham os espaços possíveis à circulação da comunicação e das ideias. Tudo em nome de uma aparente democracia, liberdade de escolha, mercado e singularismos. Discursos que agacham a velha tentação da uniformidade, a homogeneização, o controlo interno e adscrição local e política da inteligência, da cultura em espaços fechados, controlados pelos estados e com o menor movimento e circulação possível.

Há não tantos anos pensávamos que internet serviria para criar comunidades de usuário supranacionais, ou supra-estatais, comunidades de interesses, troca cooperativa ou âmbitos. E cuidávamos que era fundamental, para essa circulação aberta, a existência de grandes línguas internacionais. O Inglês básico e simplificado devorava tudo, nomeadamente ante a dispersão geográfico-política do castelhano. Mas a língua portuguesa  também estava aí, a um click de distância física que desintegrava séculos de preconceitos culturais, educativos e fronteiras imaginadas.

Quando menos para os galegos parecia abrir-se um universo inteiro, e com ele, por primeira vez na história contemporânea, a possibilidade de criar ao vivo a língua literária, a língua de cultura, do povo e para o povo. E acontecia, mesmo com a resistência e choque dos diversos defensores do local, num contexto novo e dentro daquele velho sonho ecumênico, do galego universal integrado no espaço lusófono, que reivindicara Guerra da Cal.

Hoje, a redefinição em mercados estatais-nacionalistas, o controlo e geo-localização, obrigada, com ajuda comercial é já a norma e o horror. É dar um simples passeio pelas redes para observar como afeta à construção do pensamento. Como reforça, a base de hastags, de circulação de temas, imagens e tópicos repetidos, de consumo e temáticas de uso, de descarregar versões e corretores ortográficos, o nacionalismo banal dos estados.

Aviso anterior a 1911 na parede da Igreja do Carmo, no Porto. (origem: Wikipédia)
Aviso anterior a 1911 na parede da Igreja do Carmo, no Porto.

E é muito interessante como este reacionarismo afeta a construção das línguas, desses padrões internacionais possíveis: como passamos de modelos nados em culturas progressistas, tolerância e circulação internacional, com tendências a padrões internacionais a redefinições estatais.

Como, em paralelo ao controlo por parte dos Estados da internet, com a ajuda das grandes empresas e corporações, com essa crescente obsessão pela geolocalização e a definição publicitária e sindicação de interesses, as línguas que há uns anos entraram na onda da internacionalização recuam à sujeição nacional.

Eu diria que o Português, hoje, entrou plenamente nessa dinâmica de separação linguística em fronteiras, por pressão do controlo dos estados. No canto de alentar a ideia ecumênica, os mais dos esforços correm aplaudidos em dar fôlego e categoria de símbolo a pequenos marcos. Numerosos dos nossos amigos portugueses, galegos e brasileiros infelizmente alinham – em nome da originalidade, a democracia, as saudades e a reivindicação nacional das singularidades locais – com estes tempos, a cada dia mais escuros, de reação, de controlo e de fronteiras estatais.

Acho que vivemos, por uns anos, o sonho de uma língua internacional, feita para circular as gentes e os conhecimentos. Isso assustou as autoridades que sempre têm intelectuais de serviço. O processo foi parecido com a imprensa no XVI: um flash de humanismo cosmopolita seguido de uma reação brutal e controlo dos estados, do que, por outra banda, nasceram definitivamente aquelas línguas nacionais que tinham um Estado ou uma Igreja.

A China foi uma potência marítima muito antes dos europeus se largarem ao mar. Também o velho Reino do Meio deixou apodrecer aqueles grandes navios capazes de cartografarem os oceanos e apostou pelas navegações de cabotagem curto e o feche nas suas fronteiras.

Máis de Ernesto V. Souza