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A casa da mãe: a chama, a Ostrácia e a língua

Uma aranha mora na sua teia.
Para não entrar em pânico perante
um mundo que não entende,
nunca rompe relações.
Luta para manter a aranheira
e resiste à rutura dos fios.

Livro da aranha (Ostrácia, Teresa Moure)

 

Nanda Garbero
Nanda Garbero

A quem nos dirigimos quando tudo ao nosso redor parece incendiar e os bombeiros não atendem aos chamados de emergência? É possível fazer da margem um espaço onde a precariedade abrigue novas configurações de permanência e acolhimento?  Ou, ainda: podemos reinventar nossos laços de pertença no exílio de uma casa ao lado, habitada por um vizinho que fala outra língua? Enfim, entre tantas coisas que me vêm à mente, essas são apenas algumas das muitas perguntas que me faço – e não me respondo – ao ler os três últimos livros de Teresa Moure, todos escritos em português.

Acolhida pelo espaço de um blogue que me despe do rigor acadêmico e falando a leitorxs imaginadxs, dentre xs quais idealizo certas semelhanças e ao mesmo tempo distâncias providenciais daquelxs axs quais “submeto” meus artigos à espera de um “aceito para publicação”, tiro a roupa da professora de literatura para tentar vestir algo mais leve, quem sabe aquela calça jeans surrada, guardada há tempos no armário, que só entra na leitora. Se o modelito da estação parece não combinar muito bem com essa peça, saio assim mesmo e confesso: nada mais confortável que essa calça em épocas de tanta saia justa.                            

Meu primeiro contato com Teresa (sim, vou chamá-la assim porque, como leitora, eu sou livre do peso dos sobrenomes, das citações e das gasturas) foi com a leitura dos 49 textos que compõem o provocador Eu violei o lobo feroz. Foi a partir dali que reconheci a “carapuça” como um adereço compartilhado nesse desejo de provocação, pela palavra, ao lobo predador que nos espreita, ameaça, desde que ouvíamos a história da “Chapeuzinho Vermelho”, e com ela morríamos de medo de nos perder no caminho. No entanto, agora, pensando bem, me pergunto: que caminho era esse? Que lobo era esse que minha mãe já conhecia ao me avisar sobre sua existência pavorosa no meio do atalho?

Ao me perder decidida e voluntariamente nos bosques da ficção, a floresta se transformou numa casa em chamas, incendiada pela combustão entre desejo e descarte. Entre um pedido de socorro em meio a tanto lixo guardado. E a mãe que antes me alertava sobre o atalho, mas que, de certa forma, sempre apostou na minha desobediência, agora é um andarilha “punk” que revira caixotes de fruta pelas ruas de uma cidade sem nome, vagabundeando por uma paisagem tão hostil quanto aquela em que se peregrinava para emboscar o lobo feroz (sem bússola, gps ou sinal de telefonia). É pela reviravolta que cada uma dessas minhas personagens companheiras encenam no ambiente donde foram atadas anteriormente (talvez, na época de minha vovozinha), que elas me levam à Ostrácia, uma Pasárgada às avessas, capaz de resistir ao fogo, ao vento, à chuva e, pela força de suas habitantes, até aos sopros do lobo mau de outras histórias: histórias velhas, atuais e ainda não escritas. Mesmo sem cartilhas instrutivas, elas me avisam com seu olhar, que leio em minha língua “materna”: para habitar a Ostracia, é preciso saber se machucar, se cuidar sozinha e ter a certeza de que aquela ferida que sara já se prepara para outra. Como leitora, agora ficamos vizinhas. Foi assim que dei de cara com ela: Sara, Uma mãe tão punk.

Como a casa que desaba e entre escombros se procuram os rastros de um passado surpreendentemente desconhecido para os que ali viviam, me vi caminhando por uma narrativa que ultrapassava o enredo da mãe cansada de sua existência careta e, movida pelo abandono de suas saias justas de jurista bem sucedida, empreende uma reinvenção/reivindicação biográfica de Diógenes, o filósofo grego que teria encontrado na miséria os autênticos valores da virtude. Se eu fosse falar como num artigo (o que já até fiz), diria: Sara, ao incendiar-se com a casa-lixão, desmonta, despedaça, o peso do óikos, termo grego que se refere aos sentidos imbricados nas espacialidades domésticas conhecidas pela compreensão simbólica do lar. Porém, quero pensar nisso de outro jeito: ela viola o lobo feroz. Ponto. Viola e mostra as fragilidades do patriarcado diante da escandalização da asfixia familiar ora revelada na fotografia pública de um edifício engolido por labaredas. Logo, a casa em chamas incendia a razão do filho insuportável: Pedro, um “yuppie” engomadinho que jamais combinaria com minha calça jeans da estação-leitora, com a “carapuça” da valente caçadora do lobo feroz e, principalmente, com as vestes mendigo-punk de sua “anarcomãe”. Ele, menino-lobo criado por lobos, conhece a floresta e a cidade. A pólis é dele e para ele foi feita. Para aniquilá-lo, é preciso fazer como as aranhas (imagem cara a Teresa, aliás): enredá-lo na teia que o sustenta. Frágil. Inflamável. Dinamitável. Feito isso, basta só riscar o fósforo.

Por outro lado, não tenho como não pensar na orfandade sentida com o fim da casa de uma mãe, em seu aspecto bífido. Não que eu pense em Pedro. Quero falar de Helena, a nora que segue seu périplo trágico em meio aos escombros, à casa em ruínas, para entender seu lugar naquela história e dar sentido ao que construíra ao lado do marido-lobo, ou seja, dois filhos erguidos por ela, soterrados pela ausência da avó e pelo peso de um pai sem afeto. Pois bem, volto à perda bífida: ao mesmo tempo em que as paredes se afundam numa espécie de desabrigo, ver-se sem teto (e sem chão) requisita a necessidade de fundar novos espaços de sobrevivência. Talvez o exílio, mais que um lar, prometa o breve acolhimento de quem deve conjugar ausência e resistência em um compasso de disritmia. E a escrita parece convergir nessa aposta melhor que a arquitetura. Se Helena não escreve, nem foge, resta a Alba, a filha viajante de Sara, dona de um roteiro imaginário, tecido numa viagem inexistente, escrever a série de cartas que se misturam, literalmente, aos lixos abarrotados pela mãe. Como a casa, as cartas impressas também se perdem no fogo, mas não apagam o “diário de viagem” como uma rota de fuga que se inscreve na experiência de leitura.

Escrita e leitura. Memória e resgate. Compreensão e reinvenção. Volto à Ostrácia, agora não só como espacialidade imaginada ao redirecionamento de um passado que me contaram e me ensinaram numa língua estranha em plena terra que nasci. Agora, a paisagem é nome de romance, com 314 páginas, lançado em 2015, numa “primavera de arder”.

Misturando a história de Inês Armand e Lênin, resgatada por Várvara Armand como um desejo de compreender-se nessa relação de luta, restituição e amor travada com a memória da mãe, e uma escritora nos dias atuais que se vê provocada pela sugestão do filho de escrever sobre a “acratoide” (palavra usada por ele e que me custou alguns minutos de google para compreender seu significado) comunista francesa, Ostrácia é uma aposta na margem. Corrigindo, Ostrácia é mais uma aposta de Teresa a partir das margens, com as margens e, sobretudo, marginal.

Como o amor à beira de Inês e Lênin, e as compreensões afetivas postas em questionamento a respeito dos caminhos por que percorrem os apaixonados, a língua se mostra como uma potência erótico-política, com a qual podemos não só reescrever novos romances, como também podemos enunciar outros discursos e experimentar novos desejos. E aqui o desejo mora ao lado; é o vizinho que nos abriga quando a casa da mãe está em chamas e os bombeiros não entendem o que dizemos em português.

Como leitora desses enredos e radicando na precariedade da Ostrácia, vejo que a cada dia chegam novxs e variadxs habitantes. De onde saíram, chamam-lhes de loucxs, radicais, afinal, seus ex-conterrânexs não entendem o porquê da comunicação “oficial” lhes causar tanto desconforto. Há ainda xs que acham mesmo certo que aprendam a “falar” na escola, alfabetizando-se na língua do lobo, para se performativizarem melhor na floresta, na jungla. Muitxs que aqui se refugiam narram experiências bastante curiosas para essa gente que se dedica às letras: em casa, falam uma língua. Na rua, outra. Ou, ainda, o que me parece mais estranho: com a mãe, o pai e irmxs podem até falar essa língua de um xeito. Com xs amigxs, de outro jeito. Mas, oficialmente, em suas escolas, ainda são obrigadxs ao delírio deslegitimador que se inscreve no “prestígio” de una única forma.

Pelo que tenho entendido de minha experiência nesse espaço de resistência, é preciso estar atento e forte, como cantava a Gal Costa, porque, sendo um lugar de exílio, Ostrácia é constantemente bombardeada, além das dificuldades de morar num lugar onde as casas não dão para as ruas. Os três livros de que falo são de lá, mas não são somente para os de lá. Lá existe para quem está disposto a se cortar e ler, compartilhando o que a literatura tem de mais valioso: sua generosidade sem barganha. E, mesmo que tenha dito que neste texto eu me via livre de citações, é mentira. É ficção. Tomo emprestadas as palavras que me conta Teresa sobre  esse “lá” (ou cá) que me parecem as melhores, até o momento, para representar o que também sinto: “Para passar pela Ostrácia e sair viva é preciso superar doze provas: um julgamento injusto, uma amizade traidora, o desprezo dos teus, a sanha dos guardiões, a fome, a sede, o sono, a dor, o frio, a ausência de carícias, a falta de notícias e, a pior de todas, a autocrítica. Porque Ostrácia foi concebida para a presa entender que poderia ser salva do castigo se tivesse renunciado a tanta rebeldia atempadamente e em devida forma, de maneira que o castigo é sempre merecido”. 

Com outros códigos, reescrevo minha pertença e transgrido com minha língua, para encontrar minhas companheiras aqui. Eu, leitora, rompo o pacto ficcional para me fazer de personagem. Ferindo os olhos dxs puristas com meu x, reivindico em minha descrição a menina que viola os lobos na floresta; a mãe incendiária; a mãe amante de Lênin; as mulheres que se marcam com hematomas por conta de suas paixões; a escritora que vê a folha em branco e precisa preenchê-la como fazem as aranhas com suas teias, seu sustento. Meu x é uma questão de mulheres e a escrita que entrega uma das armas apre(e)ndidas que me levou à Ostrácia. Porém, o que nos prende lá e consta nos relatórios não são os motivos; são os pretextos e, nesse departamento, infelizmente quem dá as cartas é o lobo.

Ainda nos restam os fósforos. Ainda: só. Só os fósforos nos restam…

Enquanto escrevo este jogo-texto, lembro também dos tempos em que lecionava nas escolas de meu país e, em plena descrença e desconforto, ensinava (sem nunca ter apreendido) os pronomes tu e vós, jamais usados como sujeitos para dizer sobre meu amor e minha paixão a que ou a quem quer que fosse. Transcrevia no quadro o que era certo versus o que me ensinaram como errado, repreendendo com caneta vermelha os garranchos, tirando pontos de um “onde” que não se referia a lugar, além de implicar severamente com as concordâncias de gênero que não levavam 1000 meninas e 1 menino para o masculino, fato que em meu juízo final hão de lembrar que um dia chamei veementemente de “vogal temática”. Ai, quanta memória estranha! É difícil lembrar do que se viveu sem paixão. Era tudo fake, protocolar, bimestral. Tudo saia justa, corpo de professora sem marcas, sem língua, obediente.

Agora, como Várvara Armand que sai como uma personagem borgiana em busca dos passos da mãe comunista, penso nos cadernos apócrifos deixados por minha mãe meio punk e tão irreverente, ela que tanto conhecia a geografia da Ostrácia, vivia violando um bando de lobos ferozes e que, com toda sua lucidez (arrebatada em noventa dias na floresta por um incêndio com nome de “câncer no cérebro”) sempre me dizia que, para ir à casa da vovozinha, mais valiam um roupa confortável (seria um jeans surrado?), um atalho, uma caixa de fósforos  e uma garrafa de álcool para proteger do frio e queimar o que fosse preciso. E, claro, um livro e uma língua afiada para desobedecer sempre.  Às vezes, reconheço que me faltam a roupa cômoda e o atalho. Dou voltas. Mas a leitora sempre carrega o livro, escudo cheio de letras e mundos que me protege mais que o fogo com o qual eu queimei toda a papelada do tempo de professora de gramática. Eu nunca fui isso e, pelo que tenho sentido, na Ostrácia não preciso explicar o passado para ninguém. Aqui, embora gélido e cheio de coisa complicada, é preciso acreditar no futuro, e nós acreditaremos. Um dia, anote aí: a gente ainda faz disso aqui um lugar diferente, com mais geografia que utopia. Será real, matéria do sonho.

Toca o despertador. Tenho que levantar da cadeira, vestir outra roupa. Em cima da mesa repousam os 3 livros de Teresa e a certeza irredutível de que ser leitora é poder viajar o tempo todo sem precisar de um traje mais formal que me sirva de visto simbólico na aduana. Assim, caminho mais livre para me deixar à disposição dos encontros que o livro me traz: as personagens que me atormentam, me encantam, me emprestam suas roupas e carapuças. Enquanto passeava por aqui com a calça, solta de tantas amarras, os múltiplos ruídos impertinentes da hiperconectividade me avisavam sobre os e-mails que chegavam à professora de literatura. A leitora curiosa, desobediente chapeuzinho, deve pegar o atalho e ver os pareceres, as revisões, os deveres do lobo chefe e o tal artigo pendente que precisa de revisão bibliográfica. A contragosto, ela olha para o cabideiro onde pendurou a saia justa, veste e se transforma em terceira pessoa. O texto termina.

À noite, no futuro, que é o tempo que aprendemos a conjugar, voltarei à casa, tirarei a roupa e me entregarei a outro romance.

 

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