Um senhor que passava por ali

Partilhar

Celia, a filha de Ramón, o falangista bom, botou-me em cara que falasse de seu pai como isso, como um alcalde falangista. Ele era bom, ajudou muita gente. A outra não, repliquei eu ousadamente; esse é o caso, a uns ajudou, a outros danou, porque estava em posição de poder, de um poder ditatorial baseado na arbitrariedade.

Quando tivemos um segundo encontro, messes mais tarde, Celia, a filha do falangista bom, entre anedotas sobre o pai que eu meti na segunda edição do meu seique, contou-me algo que fez que a admire como nunca: sabes, ando a falar com as minhas amigas, peço-lhes que me contem a sua infância. E olha, agora percebo o que me dizias do meu pai e o poder. Eu não passei fame, pude estudar, mesmo tive aulas de piano. E elas, quase todas, tiveram neinices pobres e frias. As minhas amigas.

Celia estava a revisar o seu privilégio de filha de alcalde franquista. Sem culpas. Sem golpes no peito. Com escuita e aceitação.

O que não fez (em realidade todo o contrário) Inma López Silva no seu Quen non ten un avó fascista?

A autora romanceia a história do seu avô Avelino López López, alcalde que foi de Santiso (A Corunha) entre os anos 1952 e 1979. Para isso combina capítulos em que explica o processo de pesquisa e interpreta a documentação (não) localizada com outros em que reflexiona sobre as implicações das descobertas e outros em que fantasia trechos da vida do protagonista. O objetivo da obra parece ser dignificar a figura do avô mas o que encontramos é uma tentativa de branqueamento tão desnecessária como desrespeitosa com a memória histórica: “…eu por fin escribía na terraza o libro sobre el. O libro sobre o meu avó fascista. // Borrei. // O libro sobre o meu avó” (pág. 36).

A autora romanceia a história do seu avô Avelino López López, alcalde que foi de Santiso (A Corunha) entre os anos 1952 e 1979. Para isso combina capítulos em que explica o processo de pesquisa e interpreta a documentação (não) localizada com outros em que reflexiona sobre as implicações das descobertas e outros em que fantasia trechos da vida do protagonista.

A autora utiliza o tópico da humildade para reduzir, em paralelo, as figuras do avô-alcalde e a da neta-escritora, e fazê-las parecer vítimas quando em realidade exercem ambas desde o privilégio. O avô-alcalde foi-no 27 anos. E a neta-escritora, já o diz a lapela do livro, levou os principais prémios da literatura galega. Nem ele nem ela são marginais. Mas ambos são narrados desde a precariedade. Ele é um pobre de pedir que estudou dez anos em Santiago. Ela uma escritorzinha que dá perdas à sua editora porque insiste em escrever sobre teminhas que ninguém lê, como a memória histórica. A autora gasta quase meio livro para justificar a pobreza do avô1 e na leitura pensamos, não, não vai utilizar isso para justificar que aceite uma alcaldia 27 anos… Pois!

A insistência na pobreza traz outra argumentação em paralelo. A insignificância do lugar. O rural pobre é só bosta e lama, um “recanto miserento dun país en por si atrasado” (pág. 33). Todo o livro é uma diatribe contra a aldeia e a vida do rural, na que só há analfabetismo, servilismo e miserenta subsistência. O avó estuda para mestre porque “obviamente, non hai labregos médicos nin avogados”2 (pág. 43), insistindo na precariedade económica e ignorando (propositadamente?) a diversidade de famílias e riquezas no rural. A autora cita Ana Cabana3 mas parece não ter atendido aos seus escritos. “Las comunidades rurales gallegas se caracterizaron históricamente por su diversidad, por el interclasismo y por las relaciones de reciprocidad asimétricas que de estas desigualdades se derivaban”, afirma Cabana4. Aponta-se López Silva ao tópico franquista que a própria Cabana questiona na sua obra: “Se instrumentalizó una imagen tópica (…/…) de un campesinado ajeno a la conflictividad consustancial a outras formaciones sociales agrarias. Se destacaba, con un fin apologético-instructivo, su carácter servil, su falta de conciencia de clase y su arraigado individualismo”5. E nesse rural infame será onde governe o avô: “un señor franquista ao cargo dun mínimo concello despoboado dun confín do Imperio Español, ou parecendo como parecía un alcalde facha disposto a exercer -polo motivo que fose- o poder do Caudillo sobre os súbditos daquel pequeno anaco de campo e sucidade acorado em 1850” (pág. 76, itálicos meus). Sempre que aparecem vizinhas ou vizinhos do avô, a olhada transita entre o paternalismo, a condescendência e a desvalorização: “O Despacho. // Aí recibe fóra do concello este alcalde que, moito tempo despois, será o meu avó durante só oito anos. // Veñen uns homiños de pantalóns enganchados com tirantes e costra baixo as unllas, que tiran a boina e apertan entre as mans, nerviosos, incómodos nese lugar non apto para iletrados porque ole a libros, tinta e papel. Nada que ver coas cortes, o estrume, o po, os porcos e as galiñas fozando à porta. Esoutras casas quedan a tiro de pedra das xanelas enormes do despacho pero están, em realidade, a un par de séculos de distância” (pág. 152).

A autora encontra mui pouca documentação para a sua história. E escolhe encher o vazio com literatura. Para isso imagina certos momentos na vida do avô e romanceia-os ao tempo que o romantiza. Porque só imagina momentos que o dignificam. Quando exerce de mestre na escola de Lanzá (com caracterização desvalorizadora da mãe que o visita), quando esteve agachado nos primeiros dias do golpe, quando aceitou sem querer aceitar o cargo de alcalde, quando avisou à vizinha, falangista bom, de que andavam à procura do seu homem agachado na palheira… Não elege imaginar os casos contrários: e seria mestre de vara na mão? E andou agachado por detetar opositores? E aceitou feliz o cargo de alcalde? E denunciou vizinhos agachados nas casas, no monte?

A única vez que nos mostra ao alcalde exercendo de alcalde é para luitar contra os verdadeiros maus da história: o camisa-velha passeador e o cura. Nisto recorre, outra vez Ana Cabana, ao mito, já elaborado no franquismo, do falangista bom: “En el lugar común de la memoria que conforman los falangistas que no tuvieron protagonismo em la represión, además de reconocimento de las comunidades hacia aquellos que no usaron la violencia, se percibe la huella dejada por los discursos legitimizadores de los golpistas, y por lo tanto, los restos de la represión psicológica. La memoria colectiva acabó relacionando muchos casos de represión y violencia con «desalmados» que «decían que eran falangistas» o que «traían las camisas azules», pero que «non se cree que fueran falangistas de verdad.»6.

Se uma cousa chama a atenção na obra é a ocultação do poder e o privilégio dos que Avelino López gozou por ser alcalde na ditadura franquista.

Se uma cousa chama a atenção na obra é a ocultação do poder e o privilégio dos que Avelino López gozou por ser alcalde na ditadura franquista. A autora explica, já dissemos, como procura documentação sobre o seu avô. Para isso acode a vários arquivos e pessoas especialistas. Mostra interesse especial em localizar documentos anteriores ao nomeamento como alcalde, mas mostra, ao tempo, zero interesse em estudar, analisar, comentar, o papel dos alcaldes na hierarquia de poder da ditadura. Que podia fazer Avelino López e que não? De que era responsável? Que tipo de decisões tomava? Sobre isso, o importante, nada. E importante porque, se queremos decidir entre ter um avô e ter um avô fascista, mesmo pode ser que as suas atuações políticas nos deem pistas sobre o assunto. E não há ignorância no facto de não rastrejar esse passado político. Outra vez a obra que cita de Ana Cabana oferece centos de possibilidades para averiguar que podia ou não ter feito o avô como vizinho e alcalde. Sofreu a taberna familiar requisas? Foi a família perseguida por dedicar-se ao estraperlo? Os xefes do Movimiento deviam enviar informes ao Governador Civil. A autora não indica ter perguntado por eles (não afirmamos que os haja, mas que ela não escreve que os procure); mesmo aparecem citados, na obra de Ana Cabana, alcaldes amoestados polo governador civil por não terem cumprido obrigas contra a vizinhança7. Foi amoestado alguma vez o avô Avelino?

Em um mínimo concello despoboado dun confín do Imperio Español dá-se um acontecimento importante que é bom reflexo das políticas franquistas: a construção de um encoro, o de Portodemouros, que anega terras de Sárria, Vila de Cruzes e Santiso. Em um artigo disponível na rede8, Ana Cabana (e Daniel Lanero) dá conta das resistências que originou a construção deste encoro, sendo alcalde Avelino López López: concentrações nos lugares das obras, presença excessiva da guarda civil, negociações com o governador civil e boicots na própria central. A autora escolhe imaginar, de entre todas as possibilidades, ao avô presente nas juntanças com os engenheiros a fazer perguntas de engenharia, porque teria estudado isso e não o que estudou. E claro, falangista bom, fazendo-se o parvo perante os pasquins que as pequenas resistências ceivam polos lugares. Nem sequer aproveita para contar essas resistências, pois romperia a imagem de lama e bosta que quer oferecer do rural.

Só que o poder do avô-alcalde pinga por entre as páginas da neta-escritora. Quando narra o seu defrontamento com os maus de verdade, o passeador e o cura, sabemos que tem contactos como para expulsar o segundo da sua paróquia e ameaçar a ambos de os deixar sem os bonos de Cáritas, “que a caridade a distribúe o alcalde” (pág. 167). Sim tem poder para fazer dano e sim o exerce.

A narradora descobre que o neto de um dos promotores da presa de Portodemouros foi ou é broker e imagina que teria sido dela se o avô se tiver feito amigo do engenheiro e ela amiga do neto e rica e escritora de best-sellers e não de livrinhos que ninguém lê. E nisto damos com o outro elemento que consideramos absolutamente falho no livro: a voz enunciadora.

O livro está narrado em primeira pessoa por uma narradora que quer identificar-se com a a autora, Inma López Silva. Como indicamos no início, em parte dos capítulos encontramos essa voz a reflexionar sobre a vida do avô, sobre as suas circunstâncias e as suas possibilidades de atuação. A voz pretende ser irónica, retranqueira, mas, ao combinar-se com essa falsa humildade, essa auto-vitimização de que falamos no início, devêm em cinismo puro e duro: “Estaría ben atopar a Avelino López y López naquela listaxe de antifascistas convencidos e así aforrar este libro. Polo menos, así tería un bo personaxe e, con el, a oportunidade de escribir ese thriller que lle viría tan ben á miña maltreita carreira literaria, mesmo á miña vida sentimental, pero sobre todo á miña economía de subsistencia artística” (pág. 69, itálicos meus).

Essa capa de cinismo cobre qualquer presença na obra de personagens históricas ligadas à resistência antifranquista: galeguistas, guerrilheiras, sindicalistas, exiliadas. Sempre são referidas com uma chata, um sim, mas…, que pretende reduzir a sua resistência para dignificar a acomodação do avô. O cinismo é tal que chega a colocar num monólogo interior do alcalde franquista a frase Mexan por vós e dicides que chove (pág. 212).

Todas as reflexões, todas as elucubrações estão tão filtradas polo eu narrador que fazem da obra uma egocêntrica laudatio. Que o avô fosse ou não fascista só importa na medida em que afete (ou não) à vida da neta-escritora. Tanto tem o povo de Santiso, a vizinhança, as possíveis vítimas da repressão, ajudadas ou não polo falangista bom. E tanto tem a neta em quanto cidadã. Não há reflexão sobre heranças, culpas, medos, silêncios ou privilégios. A olhada é sempre superficial, sem querer manchar as mãos ao escavar na memória, não vaia luxar-se de bosta e lama. O que importa é se afeta à Inma López Silva escritora e às possibilidades do seu romance, esse thriller que quiser escrever mas não.

O nível de banalização que se dá nos capítulos em que a autora romanceia a sua própria vida é tal que linda no desprezo a todo o trabalho desenvolvido polos coletivos de memória histórica, mas chega ao insultante no capítulo em que se imagina vítima da repressão de uma hipotética nova guerra civil: “Se hoxe houbese unha situación como a de xullo do 36, eu probablemente sería executada despois de ser violada, claro. Virían por nós, a por Fran e a por min, sacaríannos da casa e meteríannos dous tiros na cabeza aí ao lado, na praia.

O nível de banalização que se dá nos capítulos em que a autora romanceia a sua própria vida é tal que linda no desprezo a todo o trabalho desenvolvido polos coletivos de memória histórica, mas chega ao insultante no capítulo em que se imagina vítima da repressão de uma hipotética nova guerra civil: “Se hoxe houbese unha situación como a de xullo do 36, eu probablemente sería executada despois de ser violada, claro. Virían por nós, a por Fran e a por min, sacaríannos da casa e meteríannos dous tiros na cabeza aí ao lado, na praia. Alguén sentado onda a Underwood e a orquídea podería observar toda a escena. Alí nos deixarían. Tamén pode que uns gardas, uns milicianos ou, simplemente, uns veciños nos sacasen da casa cunha orde asinada por un xuíz facendo xustiza do revés e nos encarcerasen uns días, se cadra uns meses, para vir un día a sacarnos da cela, axustizarnos, fusilarnos e botarnos nunha cuneta calquera. Pode que, ademais, nalgún deses momentos, estivese presente un cura para non deixarnos morrer sem os nosos sacramentos” (pág. 191). Leio isto e lembro Sara Ahmed e o seu La política de las emociones9. As suas reflexões sobre a dor. Como a dor é solitária mas nunca privada. Só quem sofre sabe que é o seu sofrer mas requer alguma testemunha que o acompanhe nessa dor. Apropriar-se da dor das vítimas para se recriar em um suposto papel de vítima superior é de um cinismo insuportável. Também lembrei Juan Mayorga e a sua insistência em nunca pretendermos ocupar o lugar das vítimas: “La lista de Schindler tiene un grave problema: su factura hace pensar al espectador que estuvo allí. Y el arte y el teatro debe dejar claro lo contrario: que tú no estuviste allí y que no te puedes deslizar hasta la posición de la víctima. Esas formas de representación son un sucedáneo moral y políticamente peligroso. Nuestra experiencia de aquello siempre será incompleta”10. E acordou-me Celia, a filha do tio Ramón, o falangista bom, que soube aceitar com escuita e respeito, a dura herança familiar.

Em fim, Inma López Silva, pregunta ao mundo de maneira mui provocadora quem não tem um avô fascista para acabar por respostar ao mundo que qualquer menos ela, que o seu avô era um senhor que passava por ali e que, como sabia ler, torto em um anaco de campo e sucidade habitado por cegos, acabou por ser alcalde franquista 27 anos. Que não foi um arribista nem um colaboracionista. Um oportunista inocente (pág 85). Mais nada.

Em fim, Inma López Silva, pregunta ao mundo de maneira mui provocadora quem não tem um avô fascista para acabar por respostar ao mundo que qualquer menos ela, que o seu avô era um senhor que passava por ali e que, como sabia ler, torto em um anaco de campo e sucidade habitado por cegos, acabou por ser alcalde franquista 27 anos. Que não foi um arribista nem um colaboracionista. Um oportunista inocente (pág 85). Mais nada.

Para isso não eram precisas nem tanta provocação titular nem tantas alforjas.

Inma López Silva: Quen non ten un avó fascista?

Editorial Galaxia, 2022

1Uma cousa é ser de família labrega humilde e outra é ser pobre. Nenhuma família realmente pobre podia permitir-se enviar um filho estudar a Santiago.

2Que lho pergunte a Marcial Valhadares, labrego advogado, advogado labrego.

3Faz uma utilização maniqueia do título de uma obra maravilhosa da pesquisadora, La derrota de lo épico. A historiadora escolhe este título para o seu estudo sobre as resistências civis ao franquismo no rural galego e a escritora apropria-se do mesmo para lho aplicar ao avô, que não era cidadão anónimo, mas parte da hierarquia de poder franquista. A vitimização desnecessária de que falávamos.

4Ana Cabana: La derrota de lo épico, Universitat de Valência Publicacions, pág. 47.

5Ana Cabana: La derrota de lo épico, Universitat de Valência Publicacions, pág. 50.

6Ana Cabana: La derrota de lo épico, Universitat de Valência Publicacions, pág. 266.

7Ana Cabana: La derrota de lo épico, Universitat de Valência Publicacions, pág. 87.

8Ana Cabana e Daniel Landero: Movilización social en la Galicia Rural del Tardofranquismo (1960-1977). Historia Agraria, 48. Agosto 2009, pp. 111-132, ISSN: 1139-1472 © 2009 SEH. Última consulta 5 de janeiro de 2023: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3026791

9Recensionei a obra há uns anos: http://www.asega-critica.net/2019/08/leituras-atravessadas-por-susana-s-arins.html

10Entrevista em El Cultural: https://www.elespanol.com/el-cultural/escenarios/20161104/juan-mayorga-nacion-bandera-frontera-significan-fracaso/168233892_0.html

[Este artigo foi publicado originariamente na página da Sega]

Máis de Susana Sánchez Arins