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Teresa Moure: “A figura do Zeca é fascinante precisamente pela sua independência de critério – “eu sou o meu próprio comité central”, dizia”

Uma parceria entre a editora galega aCentral Folque e o selo português Tradisom, publicam “Balada do Desterro – Zeca Afonso” um projeto de iniciativa galega que foi escrito pela escritora e professora na Universidade de Santiago de Compostela, Teresa Moure, com desenhos da ilustradora portuguesa Maria João Worm. Com motivo deste lançamento, falamos com elas.

Como surgiu a ideia para este livro? O que vos fascina na personagem do Zeca Afonso?

T.M: Em 1972 o Zeca deu um concerto em Compostela onde cantou, dizem que por vez primeira em público, o Grândola. Embora essa suposta estreia seja bastante controvertida, o evento faz parte da memória coletiva galega, segundo demonstra a correspondente placa no Auditório da Galiza. Na primavera do ano 2021, o nosso editor galego, Ramon Pinheiro Almuinha (aCentral Folque), decidiu celebrar esse cinquentenário com alguma publicação, que ele já imaginava no formato da banda desenhada, e convidou-me para escrever o texto. Nas nossas conversas estava muito presente a ideia de olhar para o Zeca com um ponto de vista galego. Só depois, já no processo criativo, comecei a matutar na necessidade de salientar o homem, o seu retrato íntimo, sobre o vulto em que inevitavelmente se tornou.

2. O que descobriram, a pesquisar para este livro, que não conheciam da vida desta personagem?

T.M: Eu confesso que foi uma descoberta imensa. Sabia do Zeca, é claro. Da sua música ou do seu compromisso político; também da sua vinculação artística e pessoal com espaços lusófonos não portugueses, como a Galiza ou Angola e Moçambique. Porém, a pesquisar sobre as suas estadias na Galiza, surgiram um par de pessoas reais que mantiveram grande amizade com ele: o músico Xico de Carinho e a jornalista Begónia Moa. Através destas duas vozes consegui aceder a qualquer coisa que não estava, que não podia estar, nos documentos históricos ou nas entrevistas: detalhes do seu caráter, formas de falar, frases realmente ditas que enriquecem o texto e permitem captar o perfil do homem. Para além disto, e com a perspetiva atual, a figura do Zeca é fascinante precisamente pela sua independência de critério – “eu sou o meu próprio comité central”, dizia quando alguém lhe pedia contas –, um aspeto que talvez fosse polémico na altura, mas que hoje, quando os espaços do político são mais difusos, pode ser revalorizado. No entanto, como mulher do século XXI, surpreenderam-me também alguns factos relativos ao seu primeiro casamento: esse dois filhos que nascem no mesmo ano apesar da difícil situação económica ou o desaparecimento da Maria Amália ao finalizar a relação e que os filhos fossem encomendados aos avós e enviados para África, tão longe dela. Não era preciso incidir demasiado nestes aspetos para não incomodar ninguém, mas tinha que mostrá-los dalguma maneira para contornar o risco de idealizar a personagem. Afinal, tecemos as nossas existências com os fios da própria época.

A pesquisar sobre as suas estadias na Galiza, surgiram um par de pessoas reais que mantiveram grande amizade com ele: o músico Xico de Carinho e a jornalista Begónia Moa.

3. Qual era a importância da figura feminina na vida e na música de Zeca Afonso?

T.M: Esse é propriamente o tema da Balada do Desterro e, portanto, a pergunta só poderá ser respondida com a leitura da obra. Deixaremos, no entanto, algumas dicas. Ele teve duas mulheres e duas filhas. Como disse antes, ao se separar da Maria Amália, encomenda os filhos à mãe, o que indica uma estreita confiança com ela. Além do mais, na infância ele próprio fora educado em momentos diversos por duas tias. Parece, portanto, que existem personagens femininas de grande importância para decidir os capítulos da sua vida. Se formos para a música, canções como Teresa Torga indicam uma peculiar sensibilidade do Zeca com a situação das mulheres. Todos estes dados estão sem dúvida mediados pela minha própria preferência, pessoal e artística, de focar qualquer narrativa nelas, as habitualmente afastadas ou apagadas da História.

Para quem ainda não leu “Balada do Desterro – Zeca Afonso”, o que podem esperar desta BD? Este livro é apontado a alguma faixa etária em específico?

T.M: O universo da BD é hoje bastante amplo e plural. Nesse sentido, acho que a Balada do Desterro é um livro de autor. Neste caso de autoras. Não se trata de uma biografia nem de um documento histórico ou de material pedagógico. Na ilustração, a Maria João usa diferentes variantes de sombras chinesas; não é o tipo de desenho habitual nos produtos de massas. No texto, eu utilizo técnicas habituais na minha narrativa como a mistura de géneros –diálogo, flashbacks, entrevistas a personagens reais ou inventadas, cartas reais do próprio Zeca. O resultado e um produto com múltiplas texturas, mais poético do que histórico, ainda que tentamos ser absolutamente rigorosas com a nossa documentação. Acho que pode dirigir-se a pessoas de todas as idades, quer conheçam bem o Zeca, quer não o conheçam em absoluto.

5. Porque contar esta história em formato de banda desenhada?

T.M: E porque não? Há tempo que a BD é um formato artístico próprio, não um produto de segundo nível. Confesso que, quando o Ramon Pinheiro Almuinha me propôs a ideia, experimentei alguma intranquilidade, mas, se houver alguma ousadia em visitar esse formato, o mérito é completamente seu. Afinal, fiquei muito satisfeita do processo e do resultado. Para mim, como escritora, foi uma grande oportunidade de me expressar num registo diferente, que me formulava desafios inéditos e, sobretudo, de partilhar criação com uma ilustradora tão potente como a Maria João Worm.

6. Maria João, como foi fazer o trabalho visual para esta BD? O que mais lhe agradou?

Maria João Worm

M.J.W.: Em primeiro lugar estou muito grata pela grande liberdade que o editor me deu para que eu pudesse desenvolver uma técnica que me vinha a interessar e que consiste em imagens que resultam de recortes atravessados por luz. Estas “imagens fantasmáticas” pareceram-me ajustadas para recriar o lugar da memória, do passado, e ao mesmo tempo acentuar o facto de, dentro do livro, estarmos perante a presença de personagens habitando espaços cénicos.

O facto de partir do texto da Teresa, possibilitou-me concentrar-me no desenho, criado pela luz, como lugar de encontro com as suas palavras. Apesar da síntese gráfica, houve bastante trabalho de pesquisa para que os ambientes evocados pudessem ser justamente credíveis. Também foi um ponto essencial conseguir edificar a estrutura gráfica, e fazer com que os diferentes registos formassem um corpo coeso.

Este foi um livro em construção até ao fim, e com a delicadeza de ser feito em conjunto.

7. Qual é a mensagem que Zeca Afonso, através da sua vida e da sua música, continua a transmitir?

T.M.: Para as pessoas galegas – das espanholas não sei tanto assim –, o Zeca transmite o respeito para o minúsculo, para as personagens fora de foco, para a desigualdade em termos de classe, mas também de raça ou de ideologia. A sua música, enraizada na tradição, mas impregnada de ritmos não europeus, traz a alegria de estar no ponto preciso para virar uma situação. Isso faz com que seja sempre atual.

8. Se olharmos para o atual momento político, qual é a música de Zeca Afonso que melhor descreve o momento em que vivemos? O Zeca é ainda um músico atual?

T.M.: Num repertório tão amplo como o do Zeca é impossível ficar com uma canção em particular. Mas vou fazer minhas as palavras da Begónia Moa, que numa dada altura da Balada do Desterro tem de responder a esta pergunta e escolhe Tinha uma sala mal iluminada. Quando o Zeca canta “As vezes uma dúvida rondava: valia ou não a pena o que fazias?” reproduz perfeitamente o sentir de quem procurava uma mudança política, mas também o que experimentamos hoje em tantos corpúsculos alternativos que trabalham contra o colapso ecológico, contra o capitalismo selvagem ou contra o consumismo tornado numa maneira de viver. E o melhor é que deixa sempre um espaço para a esperança nas forças coletivas quando diz: “Se alguém caía um outro alevantava o tronco que tombava e renascias.”

9. Qual era a relação de José Afonso com a Galiza?

T.M.: Segundo ele próprio declarou em diferentes entrevistas, sempre se sentiu muito querido na nossa terra, que visitava com frequência, e hoje a memória do Zeca está tão viva na Galiza quanto em Portugal. A Balada do Desterro inclui um dos episódios mais ilustrativos para valorizar a profundidade desse relacionamento. Em agosto de 1985 vinte mil pessoas reúnem-se em Vigo para um grande concerto em homenagem ao Zeca, já aflito por uma doença que daria cabo dele. Quando uns meses antes alguns amigos, entre eles o Xico de Carinho e a Begónia Moa, lhe comunicam esse tributo, ele aceita ser cabeça de cartaz de um evento que entende como organizado em defesa da língua galega e das reivindicações nacionais. No dia do concerto, para além da música, intervêm poetas e líderes políticos que leem comunicados solidários, mas o Zeca, que só pode participar telefonicamente, fala dos direitos políticos e culturais da Galiza e é respondido com seis minutos de palmas. Não há bilheteira. Quem quiser pode colocar dinheiro numa bolsa e levar um cravo. A bolsa rebenta com uma quantidade que finalmente vai para Azeitão, destinada a sufragar os caros tratamentos da última etapa e um elevador para a sua casa.

10. Estão a pensar fazer novos livros?

T.M.: Talvez, se tudo correr bem, as editoras considerem essa possibilidade. Mas os livros do futuro sempre dependem da receção dos livros do presente. Oxalá o público responda com entusiasmo e nos brinde essa oportunidade.

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