Sermos as bruxas que queimastes

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Sempre foi do meu interesse a história negra europeia, essa que nos alicerça. Por isso apanhei o livro e o trouxe comigo à casa só polo título1. Contava com aprender mais sobre o extermínio de mulheres que se estendeu por este nosso civilizado continente na alvorada da Idade Moderna. 

Mas não foi isso o que encontrei. Não dei com o seguimento de juízos sumaríssimos nem repertórios de torturas nem estatísticas de danos e perdas. Não era uma história da caça de bruxas. 

Somos as bruxas que não pudestes queimar, afirma um conhecido lema dos feminismos. Porém, a tese de Mona Chollet no seu ensaio Bruxas. A forza invencible das mulleres é mesmo a contrária. Não deixamos de ser, as sociedades europeias, herdeiras das bruxas que foram queimadas.

Ela tem claro que o tratamento que recebemos as mulheres tem muito de herança dessa época negra da história europeia, da que, o primeiro sobre o que chama a atenção, é a superficialidade com que é tratada. A queima de mulheres, os tormentos diversos que receberam, a sua expulsão social, recebem achegas em muitas ocasiões tão banais que deveria ser obriga de muitos (re)ler Hannah Arendt. 

A reflexão de Chollet assenta em três eixos: o tratamento que na atualidade recebemos as mulheres autónomas e independentes, aquelas que não temos crianças, aquelas que vamos velhas, é consequência do tratamento recebido por aquelas que eram acusadas de bruxaria. O controlo do próprio corpo leva associado um quarto eixo: a expulsão das mulheres (das bruxas sandadoras) do sistema científico contribuíram a construir uma medicina/ciência totalmente afastada da humanidade, dos afetos e dos cuidados. 

A reflexão de Chollet assenta em três eixos: o tratamento que na atualidade recebemos as mulheres autónomas e independentes, aquelas que não temos crianças, aquelas que vamos velhas, é consequência do tratamento recebido por aquelas que eram acusadas de bruxaria.

Pode que seja porque estou incluída no grupo alvo, o caso é que durante toda a leitura sentim-me plenamente identificada com aquilo sobre o que reflexiona Chollet: não deixo de ser uma mulher solteira, independente, que não quis ser mãe e que passa dos 45 anos. Direta ao caixote das solteirõas bruxaris amargadas e com gato. 

Atirando de umas fontes bibliográficas esmagadoras, combinadas com a própria experiência e a de companheiras e amigas, a autora vai debulhando como o imaginário social e cultural do século XXI continua a utilizar os mesmos insultos, desgabos e desqualificações para aquelas mulheres que optam(os) por esses caminhos de autonomia e desmaternidade, assim como para todas as que não vivem(os) a idade ocultando-a2. Toda este imaginário tem um único objetivo: que só o da submissa (dependente), útil (procriadora) e falta de experiência (nova) seja considerado como bom modelo de mulher. Casualidades da vida, o tipo que ao sistema lhe convém, que aos homens lhes vêm bem. 

Sempre temo uma cousa quando leio textos feministas: o essencialismo. E sempre temo outra quando leio textos feministas europeus: o eurocentrismo. Eurocentrismo há na medida em que a influência do fenómeno histórico estudado (a caça de bruxas) é privativo (ou não) do mundo ocidental. Entrei na quarta parte, a dedicada à conceção cartesiana da ciência e da natureza amedada. Temia dar com essa ideia tão presente em Clarissa Pinkola Estés de que todas levamos uma bruxa dentro que nos conecta diretamente coa terra e os elementos naturais. Chollet não segue esses caminhos e agradecemos. Centra-se em como a expulsão das mulheres de um campo de saber que dominavam (o médico) evoluiu numa ciência médica arrogante, desumanizada e violenta. Patriarcalizada, vamos. Ao tempo, o controlo das mulheres que supus a caça de bruxas quadrou (e não por casualidade, opina a autora) com o controlo da natureza por parte dos homens. Um controlo exercido desde a violência, a exploração, a violação e o abuso. Patriarcalizada, vamos.

Como já indicamos, o livro está inçado de referências e bibliografia por se queremos continuar a aprendizagem: monografias sobre a caça de bruxas, sobre os diferentes achegamentos feministas à maternidade, sobre a beleza e a idade, sobre a prática da medicina e o controlo da natureza. Quase toda francesa, isso sim. 

Ontem, acabada a leitura, pus um seriado para descontrair. Tratava-se de Vexed, um produto britânico protagonizado por uma parelha de polícias (ele e ela). No primeiro capítulo um assassino em série mata mulheres. O polícia, na inspeção ocular do lugar do crime, deduz o perfil da vítima: vive sozinha, bebe vinho, come chocolate, tem livros românticos, portanto é uma solteiroa amargada que devece por um homem. Seguro que tem gato, afirma. E vários minutos depois o gato aparece. 

Disto fala o livro de Mona Chollet. 

Mona Chollet: Bruxas. A forza invencible das mulleres

Tradução de Ánxela Gracián. 

Hércules de Edicións, 2020

1 E também porque aparece na Coleção Púrpura de Hércules de Edicións, que está a traduzir obras do feminismo ao galego, algumas das quais já gozamos previamente.

2 No dia em que escrevo esta recensão (17 de fevereiro de 2021) a BBCWomansHour publicou no twitter este excerto sobre Mary Beard: Como os insultos que você enfrenta mudam com a idade? Eles pioram? Ouvimos Mary Beard @wmarybeard, que diz que por ser uma mulher mais velha com cabelos grisalhos, ela agora é uma ‘bruxa’: https://twitter.com/BBCWomansHour/status/1361985529856860167

[Este artigo foi publicado originariamente na Sega]

Máis de Susana Sánchez Arins