Ritos, jogos e passagens

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Algumas não gostamos da literatura fantástica. Melhor, não gostamos da literatura ambientada em lugares fantásticos ou em distempos ucrónicos. Em troca, adoramos essa literatura que nos coloca o estranho, o surpreendente, o impossível, ao carão da colherinha e o pocilho do café, açúcar sim, obrigada. No quotidiano. 

Esses são os relatos que mais gozei no conjunto editado sob o nome O axolote (e outros contos de bestas e auga), de Lara Dopazo. Ainda que a autora nos dê pistas no título sobre aquilo que outorga unidade às suas narrações, eu acho que é esse achegamento desde o dia a dia, desde as rotinas, que faz que prendamos em cada uma das silvas. O banho diário, o momentinho para sentar no banco ao sol, o passeio com o cadelo, preparar uma churrascada, fuchicar na rádio à procura de emissoras. 

Os treze relatos que compõem o volume oferecem-nos diversidade de lugares, de protagonistas, de vozes narrativas, de mitologias inspiradoras. A autora domina umas e outras, conseguindo que entremos em cada uma das propostas dispostas a ser surpreendidas umas vezes, convencidas de que não será possível a surpresa, outras, e dando o conto por acabado sempre com um palavrão: hóstia! Sempre. 

É complicado manter em cada relato essa reviravolta ao final. Em algumas ocasiões é a voz narrativa, que não desvenda a sua identidade até o último parágrafo do conto, outras vezes é a capacidade para re-escrever mitologias reconhecíveis, as mais, o final não explicativo, que deixa em nós a responsabilidade e a vontade de decidir que raios aconteceu na ilha das mulheres ou com o avô Dima. 

A autora tem uma grande capacidade para titular os relatos. Quase nunca oferece o conto aquilo que o título promete e este adquire novas significações uma vez chegado ao final. O mais arriscado era, sem dúvida, o que dá nome ao conjunto. Algumas sentimos o eco do Axolotl de Julio Cortázar e entramos com o medo de dar com um remedo deste autor. E não, Lara Dopazo foi quem de apagar qualquer som afastado e deixar-nos pampas com a sua água criónica. 

Do que mais gostamos são das histórias com base tradicional e re-elaboradas pola autora. O jogo com as mitologias. E que se misturem as umas com as outras. Que Xochitónal fale galego, ou que Rosa Rosales fale mexicano, mesmo tendo saído nunca do Uruguai. Quiçás, nesse sentido, o nosso conto favorito é o titulado O Corpo: contemporaneidade, tradição, lenda urbana, voz narrativa inesperada. Ou não. O que se diz As moscas: ambientação, noite, tronada, e só a burra que pare. Ou não. O carpincho: o prodígio castigador e castigado. Ou não… 

Já o diz o refrão: se escolher não podes, lê ao completo. 

Lara Dopazo Ruibal: 
O axolote (e outros contos de bestas e auga) 
Galaxia 2020

[Este artigo foi publicado originariamente na Sega]

Máis de Susana Sánchez Arins