Outra Europa é possível (revival)

Partilhar

Por José Tubio

A “Assembleia”, hoje “Parlamento Europeu”, criou-se em 1958 como órgão comum da CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aceiro) e do Euroatom (energia nuclear) para “representar a cidadania”. Porém, até 1979 as europarlamentares não eram eleitas por sufrágio direto senão que eram designadas polos parlamentos dos Estados membros. Seria mais jeitoso ter-lhe chamado Deputação Europeia mas seria ostentoso já que as competências duma deputação provincial eram bastante mais alargadas numa altura em que o Parlamento Europeu era um mero órgão consultivo em matéria legislativa, com uma participação lateral na aprovação dos orçamentos que lhe foi atribuída por primeira vez em 1970 e alargada em 1975.

Após os Tratados de Maastricht, Amsterdam, Niza e Lisboa deixou de ser um caríssimo clube de comedor@s de petiscos com denominação de origem, para passar a ter poder de codecissão, junto do Conselho, na aprovação de normas comunitárias em alguns âmbitos concretos. Alcançou agora deste jeito o nível dos parlamentos de princípios do século XIX, onde as Cortes legislavam “com El-Rei” (com os seus ministros), seguindo as cartas outorgadas. Como manifestou El-Rei –atual–, “los españoles van a elegir el parlamento europeo más poderoso de su historia”. Mas, então, qual foi e continua a ser a sua função?

O Conselho é a reunião de todos os ministros duma área determinada a tratar, por exemplo, agricultura. As propostas legislativas procedem da Comissão Europeia, parte do Executivo da União. Parte, já que o Conselho Europeu (a reunião dos chefes de Estado ou de governo dos Estados membros) determina as políticas da União e as prioridades e, além disso, existem outras instituições como o o Tribunal de Contas e o Banco Central Europeu que também têm capacidade executiva e ainda legislativa. Finalmente, a resolução judicial de conflitos derivados do direito comunitários e do funcionamento das instituições comunitárias corresponde ao Tribunal de Justiça da União, composto por três Tribunais, dous com 28 juíz@s, uma por Estado membro, que são os que as designam (poder judicial comunitário designado polos executivos estatais). Através do Conselho, os Estados também designam os juízes que conformam o terceiro Tribunal, destinado especificamente à resolução de conflitos laborais do pessoal ao serviço da União.

De aplicar-lhe o paradigma da separação de poderes –executivo, legislativo, judicial– de Montesquieu à arquitectura institucional da União o resultado é que:

– O poder Executivo é partilhado principalmente pola Comissão e polo Conselho Europeu, quer dizer, polos Executivos estatais, quem também decidem sobre a composição da Comissão Europeia.

–  O Parlamento Europeu tem capacidade para aprovar ou rejeitar a proposta do Conselho Europeu relativa à composição da Comissão Europeia, mas não participa na designação dos órgãos de governo da outra instituição principal no exercício do poder executivo na União: o próprio Conselho Europeu.

– A nível da União a maior parte do poder legislativo, incluindo as decissões orçamentárias, é partilhado polo Parlamento Europeu e o Conselho, sendo este último uma expressão do poder executivo estatal. No entanto, a nível dos Estados membros, o poder legislativo não é compartilhado senão que pertence aos parlamentos, no mínimo para aprovação de leis, sendo o executivo o que aprova os decretos para o seu desenvolvimento. Além disso, a nível comunitário a Comissão tem um papel de primeira ordem no poder legislativo, já que dela partem os textos legislativos, variadíssimos e complexos, só analizáveis por homólogos dos Executivos estatais e polos grupos de poder do setor regulado, mas muito fora do alcanço, no seu conjunto, da compreensão do europarlamentares e assessores que, além de particulares e propagandísticos debates, seguem disciplina de voto do partido e fazem proselitismo superficial partidarista da postura adotada.

– Adicionalmente, dous âmbitos fundamentais do poder legislativo da União ficam de fora da (co)participação do europarlamento. Primeiro, a denominada Política Exterior e de Segurança Comum, que corresponde principalmente ao Conselho e ao Conselho Europeu (expressões dos Executivos estatais). O Parlamento Europeu participa simbolicamente propondo a pessoa que ocupe o posto de Representante da União para a Política Exterior e de Segurança Comum. Além disso, a Política Exterior fica de fora da jurisdição do Tribunal de Justiça da UE. Para boa parte dos Estados membros tal política já foi deslocalizada há anos a Washington via OTAN, no mínimo o núcleo duro da mesma, o militar, e da parte que não o fora, muita ainda está em mãos dos Estados.  Segundo, e mais importante: o Conselho Europeu tem um papel protagonista na mudança dos Tratados. Conforme ao procedimento ordinário possui direito de veto sobre qualquer proposta ou, em sentido contrário, decide diretamente sobre as emendas através duma conferência intergovernamental: o “poder constituinte europeu” (o poder de “outra possível Europa” pertence aos Estados.

– A judicatura –como  governo e como função judicial– da União é eleita polos Estados membros, sem participação do europarlamento, um cenário que contrasta com a habitual participação do Legislativo (diretamente ou através do Governo, apoiado pola maioria parlamentar) de todas ou parte das pessoas integrantes dos tribunais supremos, órgãos de governo do poder judicial e tribunais constitucionais. De modo que o topo das magistraturas judiciais da União decide-se a nível dos Estados membros, habitualmente polos seus Executivos. Um simples UKIP-designated Advogado Geral ou Magistrado vai evidenciar claramente a natureza governamental do “poder judicial europeu” através de posicionamentos ou votos particulares, um  poder judicial que tem sido fulcral na definição do status do direito comunitário, através do estabelecimento das doutrina de primacia e do efeito direto, ainda não recolhidas em nenhum Tratado.

– Também o conselho de governo do Banco Central Europeu (esse órgão absolutamente antidemocrático, em palavras de X.A. Pérez Lema, indiferenciável na sua composição de qualquer outra instituição comunitária) é eleito polos Estados membros através do Conselho Europeu e da designação a nível estatal do correspondente presidente do Banco Central, em ambos casos sem a participação do europarlamento.

– Finalmente, as pessoas que integram o Tribunal de Contas europeu, cujo objectivo é auditar as contas da União, também são designadas polo poder executivo dos Estados membros.

Historicamente o papel do Parlamento Europeu tem sido dar cobertura “democrática” a uma estrutura supraestatal que açambarcou muitas das competências estatais. Quando em 1979 se começou a eleger com sufrágio direto a sua composição as suas funções não ultrapassavam o ornameltal. Mas as eleições deviam ser tão seriosas como as atuais. Um autêntico exercício de soberania popular. O chamado “déficit democrático da UE” não é outra cousa que a cessão de competências do Estado à UE, algumas das quais passavam polos parlamentos estatais e que na UE só passam polos Executivos estatais, incluídas aquelas relativas aos direitos fundamentais que no Estado espanhol eram reserva de lei orgânica e que na UE se legislavam ainda através de Diretivas do Conselho (de Ministros) no ainda não plenamente comunitarizado pilar de “Liberdade, Segurança e Justiça”. Diretivas que obrigam aos parlamentos estatais a adotarem as correspondentes leis (orgânicas).

Quanto à palavra de ordem eleitoral “outra Europa é possível”, pois é. O papel do europarlamento no processo “constituinte europeu” não é decisivo senão mais bem pouco relevante se comparado com o poder dos Executivos estatais através da sua participação no Conselho Europeu, carecendo portanto de poder de autodefinição de delimitação das suas atribuições no conjunto da arquitetura institucional comunitária (entre outras cousas). Noutras palavras: de se acreditar realmente que uma transformação social e política pode produzir-se através duas eleições, essa hipotética outra “Europa” (UE) passaria polos Executivos dos Estados membros, prévias eleições estatais, e não polas eleições europeias. No caso do Estado espanhol seria “só” tirar maioria absoluta no Congresso dos Deputados e essa hipotética outra Europa poderá ser possível com o beneplácito de outros Executivos estatais. De aí que as eleições europeais não sirvam para eleger uma Maioria Europeia que suporte um Governo Europeu, face à Oposição Europeia. Servem, em todo caso, de inquérito para as citas eleitorais estatais. Dizer o contrário é vender fumaça.

Mais fútil é ainda a reciclagem do velho “Para ter voz em Madrid” tendo em conta a forma em que é gerido o poder na UE, modelo mimético do lobbyismo, por outro lado perfeitamente legal, dos EUA. Uma muito elegante forma de definir a Europa dos lobbys é a de Wallace que fala em “intergovermentalismo intensivo” como fórmula de governança. Na versão supraestatal do “que hay de lo mío?” na que a fórmula mais rápida para triplicar a tua voz em Europa (na UE) não consiste precisamente em triplicar o número de europarlamentares, mas em triplicar o orçamento da Fundación Galicia-Europa (ou da Fundación por la Europa de los Ciudadanos), criar lobbys setoriais público-privados especializados (algo que Feijoo já leva tempo fazendo) ou outras fórmulas para chegar a esses burocratas da União e dos Estados para que legislem “como é devido“. Sem esquecer que esta categoria é em si própria um lobby. Quer dizer, o “intergovernamentalismo intensivo” é a versão supraestatal do “governamentalismo intensivo“, com a vantagem de que a nível comunitário, as restrições da teatral democracia representativa comunitária são muito menores do que no caso dos parlamentos estatais devido à arquitectura da UE.