O evento de Tunguska (II)

Partilhar

Por Manuel Andrade Valinho

20 de dezembro de 2008 – Descarregar PDF

As expedições soviéticas da pós-guerra

Na primeira parte deste trabalho deram-se a conhecer os factos do acontecido em Tunguska no verão de 1908 e as circunstâncias em que se desenvolveram as primeiras expedições à região chefiadas por Leonid Kulik entre 1927 e 1939. Graças a elas foi possível identificar o epicentro da explosão, localizado no chamado Paul do Sul1 (ver Figura 1), além de recolher numerosos e valiosos testemunhos. Aliás, os seus trabalhos foram pioneiros na procura de um meteorito responsável do evento de Tunguska.

 

Figura 1: “Epicentro da explosão no Paul do Sul atualmente.”


 

Com o passamento de Kulik na II Guerra Mundial as investigações ficaram interrompidas até 1958, ano em que se levou a cabo a primeira expedição da pós-guerra a cargo do geólogo e astrónomo russo Kirill Florensky (1915-1982). Um dos investigadores mais notáveis desta segunda época foi o cientista russo Nikolai Vasilyev (1930-2001), membro da Academia das Ciências da URSS, quem de 1963 em diante seria responsável de até 29 expedições.

Parâmetros conhecidos

Relativamente à tipologia dos dados que existem sobre o evento de Tunguska podemos distinguir duas categorias. Na primeira, a dos dados objetivos, temos os registos sísmicos e barométricos imediatamente posteriores ao evento, a informação sobre as noites brancas observadas na Europa e na Ásia em julho de 1908 e os dados sobre a devastação da floresta recolhidos nas diferentes expedições científicas. Na segunda, a dos dados de caráter subjetivo, estão os testemunhos de diferentes observadores recolhidos desde o início das investigações. A partir de todos eles foi possível calcular um conjunto de parâmetros que caraterizam o fenómeno e sobre os quais existe bastante acordo.

É geralmente aceite, baseando-se nos registos sísmicos e barométricos, que a explosão aconteceu2 às 7h 14m 27s de tempo local. Quanto ao ponto exato do epicentro este teria coordenadas3 60º 53′ 09” 06” N e 101º 53′ 40” 13” E.

A energia libertada calcula-se entre 10 e 15 megatoneladas – equivalente a umas mil bombas atómicas como a lançada sobre Hiroshima. De acordo com este intervalo de valores, a altitude à que aconteceu a explosão estaria entre 6 e 10 km.

No que atinge aos parâmetros da trajetória, o corpo teria entrado desde o sudeste (azimute desde o sul de aproximadamente 315º, SE) com um ângulo de incidência (altura) entre 30º e 50º, embora cálculos mais recentes ofereçam valores de 290º 5º (ESE) para o azimute e 30º para a altura.

Asteroide ou cometa?

Dadas as evidências observacionais a teoria mais largamente aceite é a do impacto de um corpo cósmico contra a atmosfera terrestre e ulterior explosão a uma altitude de entre 6 e 10 km. Ainda, os modelos mais modernos e confiáveis sobre o impacto deste tipo de objetos explicariam o evento de Tunguska como a explosão de vários troços de um corpo que sofreu fragmentação ao entrar na atmosfera. Neste contexto uma das maiores dificuldades consiste em determinar a sua natureza: asteroidal ou cometária.

Uma consequência provável do impacto de um meteoroide4 de origem asteroidal, rochoso ou metálico, do tamanho atribuível ao causante do evento de Tunguska é a criação de uma cratera. Sem embargo, Kulik, que sempre se referiu ao hipotético objeto como o “meteorito de Tunguska”, passou grande parte da sua vida na procura de uma cratera de impacto e dos restos de um corpo metálico que nunca apareceriam.

A ausência de vestígios desta classe favoreceu que, lado a lado da hipótese asteroidal, se desenvolve-se também a chamada hipótese cometar, sugerida pelo astrofísico estado-unidense Harlow Shapley (1885-1972) em 19305. Conforme a esta, um pequeno cometa6 de baixa densidade teria entrado na atmosfera da Terra desencadeando subsequentes reações, ou bem químicas ou bem nucleares, que explicariam a libertação da enorme quantidade de energia. Contudo, tal libertação de energia também se pode explicar a partir da fragmentação na parte final da sua trajetória de um corpo de densidade normal, como um asteroide rochoso de uns 60-100 m de diâmetro. Para mais, os mesmos cálculos também não permitem excluir um asteroide metálico entrando a alta velocidade.

De certo modo, numa situação alimentada pelo ambiente de guerra fria da segunda metade do século XX, a hipótese cometar ficaria ligada à escola de astrónomos soviéticos, enquanto a hipótese asteroidal seria especialmente apoiada pelos astrónomos ocidentais7.

Um dos trabalhos recentes e mais completos em que se discute pormenorizadamente a natureza do objeto que impactou em Tunguska é o artigo intitulado “Probable asteroidal origin of the Tunguska Cosmic Body”, publicado em Astronomy&Astrophysics por Farinella et al. em 2001. Após estudarem um conjunto de 886 possíveis órbitas seguidas pelo corpo cósmico a sua conclusão é clara: muito provavelmente ele era um pequeno asteroide – concretamente, a probabilidade de que o corpo cósmico tenha origem asteroidal é de 83%, sendo apenas de 17% para a origem cometária.

As expedições do Grupo da Universidade de Bolonha

 

Figura 2: “Trabalhando no Paul do Sul (epicentro) em 1991.

De esquerda a direita: Gennady Andreev, Guiseppe Longo, Menotti Galli, Romano Serra e Nikolai Vasilyev.”


 

Até ao ano 1989 não se realizaria a primeira expedição com investigadores estrangeiros como convidados. Desde aquela diferentes grupos de investigadores, nomeadamente europeus, têm contribuído à resolução do mistério de Tunguska, ora realizando investigações in situ, ora construindo modelos teóricos. Talvez o mais ativo e frutífero destes seja o chamado Grupo da Universidade de Bolonha, uma equipa de cientistas8 do Departamento de Física de dita universidade coordenados pelo físico nuclear Giuseppe Longo (nado em 1929).

 

Figura 3: “Árvores derrubadas fotografadas pelos membros da expedição da Universidade de Bolonha em 1991.”


 

Na sua primeira expedição em julho de 1991 (ver Figura 2) puderam comprovar que após oitenta e três anos algumas árvores ainda permaneciam deitadas a consequência da explosão (ver Figura 3). Aliás, recolheram amostras de madeira nas quais detectaram um incremento da concentração temporal, correspondente ao ano 1908, de micropartículas suscetíveis de serem atribuídas a um corpo cósmico. Porém, a determinação da sua origem é complexa, já que esta poderia estar ligada ao vulcanismo da região. De facto, o epicentro do evento de Tunguska situa-se no meio de uma antiga cratera vulcânica de 250 milhões de anos de antiguidade, a do Kulikovskii.

 

Figura 4: “Fotografia do lago Cheko tirada exatamente 100 anos depois da explosão.”


 

Em julho de 1999, acompanhados de novo por Nikolai Vasilyev e pelo astrónomo russo Gennady Andreev, o grupo de Bolonha organizou outra expedição de umas vinte e cinco pessoas na qual se realizou um exaustivo estudo dos sedimentos do lago Cheko (um lago de água doce a uns 8 km ao NNW do epicentro, ver figura 4), além de medições magnetométricas e uma nova inspeção topográfica com técnicas GPS. De certeza, outra das principais tarefas foi a procura dos, sempre cobiçados, fragmentos macroscópicos do hipotético corpo cósmico. Embora estes últimos não aparecessem por lado nenhum, sim se acharam micropartículas nos sedimentos do lago Cheko similares às descobertas em 1991 no terreno.

 

Figura 5: “Mapa de direções das árvores derrubadas.

O sistema externo de coordenadas está em quilómetros, enquanto o interno corresponde às coordenadas geográficas.

A cor amarela, verde e preta indicam, respectivamente, uma alta, média e baixa confiabilidade dos resultados.”


 

Nesta expedição foi também efetuada uma nova inspeção aérea, a primeira desde 1938. Tendo em conta os dados obtidos e alguns outros de estudos anteriores construiu-se um novo mapa de direções das árvores derrubadas (ver Figura 5). Conforme aos resultados obtidos os investigadores concluíram que o objeto que originou o evento de Tunguska foi um objeto múltiplo formado, no mínimo, por dois corpos de massas similares. Provavelmente eles entraram na atmosfera seguindo trajetórias paralelas desde o sudeste com uma inclinação de entre 30º e 50º. O primeiro deles, o mais massivo (TCB1), teria emitido a máxima energia a uma altitude de entre 6 e 8 km, enquanto o segundo (TCB2) continuava a deslocar-se em direção ao lago Cheko. Mesmo um terceiro corpo (TCB3) poderia ter impactado contra o permafrost sem a energia suficiente como para produzir uma cratera (ver Figura 6).

 

Figura 6: “Representação da queda do corpo múltiplo causante do evento de Tunguska segundo o chamado modelo de Anfinogenov.

O eixo horizontal indica a distância ao epicentro, enquanto o vertical assinala a altura sobre a superfície da Terra.

A largura dos cilindros é proporcional à energia libertada por cada corpo.”


 

Após as expedições de 1991 e 1999 este grupo realizaria ainda um reconhecimentos na região em julho de 2002. Durante as suas pesquisas voltaram a verificar o crescimento acelerado das árvores a partir de 1908, o que já tinha sido observado em anteriores expedições. Na Figura 7 podem observar-se os anéis no toro de uma árvore e a diferença entre os anteriores e os posteriores a 1908. Este fenómeno poderia ter a sua origem na fertilização por cinza das árvores abrasadas, na diminuição da competitividade na procura da luz, na maior disponibilidade de minérios a causa do aumento da distância entre árvores, etc. O último dos reconhecimentos sobre a zona até agora realizados foi o de junho de 2008, do que ainda não se publicou nenhum resultado.

 

Figura 7: “Crescimento acelerado das árvores evidenciado nos seus anéis de crescimento.

(fotografia tirada por membros da Universidade de Bolonha em 2002).”


 

Talvez exista uma cratera de impacto: o lago Cheko!

Uma das conclusões mais notáveis que se deriva das pesquisas realizadas durante estes últimos anos pelo grupo de Bolonha é, sem dúvida, a que sugere que o lago Cheko é realmente uma cratera9 originada pelo impacto de um pequeno asteroide (ver Figura 8). Além do mais, eles argúem que nenhuma das testemunhas faz referência ao lago Cheko como tal – este nome é sempre utilizado unicamente para referir-se ao rio que o alimenta – e que ninguém lembra que existisse antes de 1908; mesmo algumas delas aludem explicitamente à sua formação durante o evento. Em qualquer caso este é um resultado controverso que está a ser contestado por outros grupos de investigação10.

 

Figura 8: “Imagem 3D do lago Cheko construída a partir de dados topográficos e batimétricos reais.

O nível da água é situado 40 m abaixo do nível real para pôr em destaque a sua morfologia.”


 

O maior desafio desta teoria é, além do de provar de modo irrefutável a aparição do lago Cheko durante o evento de Tunguska, o de explicar a ausência de restos do meteorito. Uma boa tentativa é a de Luigi Foschini, um dos colaboradores do grupo de Bolonha, quem em 1999 propus um mecanismo conforme ao qual as cavidades internas do pequeno asteroide poderiam ter aumentado a desaceleração e a eficiência da explosão. Este mecanismo, denominado fluxo hipersónico de Foschini, consiste no seguinte: ao entrar na atmosfera a dissipação de calor por atrito elimina a superfície do asteroide deixando a descoberto as cavidades internas, as quais agem como um paraquedas aumentando deste modo a desaceleração e produzindo a completa vaporização do asteroide (ver Figura 9).

 

Figura 9: “Fluxo hipersónico de Foschini que explica a volatilização de um pequeno asteroide.”


 

Contudo, enquanto não existam provas incontestáveis desta teoria, uma miríade de hipóteses alternativas continuarão a ter a sua parte de protagonismo na procura de uma explicação final do evento de Tunguska. Destas alternativas e de algum outro assunto falaremos na próxima (e última) entrega.

Notas:

1 Foi Yevgeny Krinov quem sugeriu, durante a terceira expedição, que este era realmente o local sobre o qual se tinha produzido a explosão.

2 Existem cálculos que adiantam este instante às 7h 13m 35s 5s (Pasechnik, 1986).

3 Calculadas por Fast (1967).

4 Aqui entenderemos por meteoroide um objeto de consistência sólida que vagueia pelo espaço interplanetário e tem um tamanho de, no máximo, algumas dezenas de metros.

5 Esta hipótese seria também proposta em 1934 pelo cientista inglês Francis Whipple (1876-1943) e pelo cientista russo Igor Astapowitsch (1908-1976), este último baseando-se nas ideias do mineralogista e geoquímico russo Vladimir Vernadskky (1863-1945). Nesta linha também Kulik tinha sugerido em 1926 que o meteorito de Tunguska poderia estar associado ao cometa Pons-Winnecke.

6 O astrónomo eslovaco L’ubor Kresák (1927-1994) sugeriu em 1978 que o objeto causante do evento de Tunguska foi em realidade um pedaço desprendido do cometa periódico Encke, cujo passo está associado à chuva de meteoros das Beta Táuridas, a qual tem o seu máximo em fins de junho.

7 De acordo com Farinella et al. (2001) estas duas “escolas” teriam sido praticamente ignorantes uma da outra até ao congresso internacional Tunguska96 celebrado em Bolonha (Itália) em julho de 1996.

8 Formado, basicamente, por Giuseppe Longo, Menotti Galli, Andrea Magnaterra e Romano Serra.

9 Uma exposição pormenorizada da sua hipótese pode ler-se em A possible impact crater for the 1908 Tunguska Event (Gasperini et al, Terra Nova, 2007) [veja-se aqui].

10 Uma contestação contrária a esta hipótese é dada em Evidence that Lake Cheko is not an impact crater (Collins et al, Terra Nova, 2008) [veja-se aqui]. Por sua vez, a argumentação a favor da hipótese do lago-cratera é reforçada em Lake Cheko and the Tunguska Event: impact or non-impact? (L. Gasperini, E. Bonatti e G. Longo, Terra Nova, 2008) [ligação: http://www3.interscience.wiley.com/cgi-bin/fulltext/119409944/PDFSTART].

(*) Todas as figuras foram tiradas do sítio sobre Tunguska da Universidade de Bolonha [16/12/2008].

Entrega anterior: O evento de Tunguska (I)

Máis de Manuel Andrade Valinho