No bicentenário da 2ª constituição espanhola (III)

Partilhar

Por José Tubio

Adicionais análises de conteúdo, precedentes e contexto não têm muito interesse, mesmo por serem mais dificilmente falseáveis. Porém, o seu significado político sim o tem e por isso foi e está a ser adulterado26, haveria que dizer, invertido, até o delírio mitológico.

– A Constituição foi elaborada por uma Comissão e só depois assinada (não tanto “debatida” em Cortes). Parte do seu papel num país invadido e em plena guerra, também civil, foi o de servir de contra-propaganda à Constituição de Baiona e à modernização (face ao mais obscuro absolutismo e desde a ótica das elites do despotismo ilustrado) processual e dos códigos napoleónicos que trazia sob o braço José Bonaparte. O texto de Baiona, igualmente não revolucionário e reaccionário, trazia porém novidades como a restauração das Cortes, com os três estamentos representados: nobreza (25 escanos), clero (25) e popular (122: 62 deputados eleitos polas juntas populares, 30 pelos concelhos principais, 15 entre comerciantes propostos pelas Juntas de Comércio e 15 representantes das universidades). O texto de Cádiz não podia ser menos (ainda que o foi no detalhe regulatório): tinha de existir e tinha de prever Cortes, não só um Rei absoluto. Por isso umas Cortes inicialmente não constituíntes como as de Cádiz, decidiram “magnanimamente” constitucionalizar.

Se a Constituição de 1808 reconhecia a liberdade de imprensa27 sem censura prévia, os deputados de Cádiz não se podiam permitir o fluxo contínuo de dissidentes dos que acudiram a Baiona e dos que iam aceitando cargos nos territórios ocupados polas tropas napoleónicas, vendo-se obrigadas a aprovar o Decreto de “Libertad política de la imprenta28” o 10 de novembro de 1810 que, em verdade, o que fazia era abolir todos os julgados de imprensa (a censura prévia), cada vez menos operativos por estarem já em território ocupado (“liberado”, diriam os afrancesados), mas responsabilizava a qualquer impresor de fazer constar a verdadeira autoria no texto impreso. A censura a posteriori ficava garantida e aplicar-se-ia em caso de que o texto fosse “un libelo infamatorio, escrito calumnioso, subversivo de las leyes fundamentales de la monarquía, licenciosos y contrários a las buenas constumbres”. E contudo, a tal “libertad política” não se aplicava a textos religiosos, cuja censura prévia corresponderia aos Ordinários eclesiásticos.

– A “Pepa” é um texto parido por “revolucionários absolutistas” ferrenhos, revoltados contra o simulacro de liberalismo que representavam Napoleão e os afrancesados que o apoiam (alguns meros oportunistas).

A natureza de encíclica militar que supuram as páginas da Constituição de Cádiz faz que seja, até para disfarçar o absolutismo, um fato realmente ruim. Sem faltar à verdade com o seu título, a sua função era a de lhe organizar ao monarca a forma em como exercer o seu poder absoluto (porém, Fernando VII preferirá o anarquismo). Assim, uma década mais tarde, quando a seguinte quenda de “liberais” aplaudiam a nova quinta de generais golpistas a cavalo, ainda quando era a vez dos generais Pepeiros (¡viva la Pepa!) revoltados contra o Rei, a ideia já era também tomar o poder para substituir ou pelo menos revisar profundamente o texto gaditano. Precisamente porque vigorá-lo novamente não servia para embridar em nada ao monarca.

Por dar um exemplo conhecido, na França a revolução que dá incicialmente cabo do antigo regime e principia o liberalismo francês, cortando cabeças primeiro e assasinando dúzias de milhares de dissidentes de qualquer classe, grande parte deles simples labregos, nos anos posteriores, está composta por opositores ao absolutismo. Os assassinados e reprimidos na primeira volta são em boa medida elites que até então dominavam a vida política, social e económica francesa. Sucessivas revoluções e contra-revoluções acarraterão sucessivas rázzias, mas a incial foi de signo liberal, com toda a carga política da palavra, mais do que etimológica, que nunca a teve.

Ora, isto não é o que acontece “nas Espanhas”: desde o motim de Aranjúez contra as tropas francesas, as direções das Juntas de Defesa, a Junta Suprema, o Conselho de Regência e as Cortes de Cádiz (onde impudicamente se acunhou o termo “liberalismo español”) conformam a nata do absolutismo espanhol da altura. A criva aos dissidentes, autêntica guerra civil, não só de independência, foi sobretudo uma dizimação e retaliação do muito débil liberalismo, sempre não-democrático, que integravam as elites afrancesadas, por volta de 12.000 famílias que foram assassinadas, reprimidas29 ou definitivamente exiliadas.

Acrescentando o diferencialismo a respeito de como se ultrapassou o Antíguo Regime para chegar ao Estado moderno noutras latitudes, a primeira contrarrevolução que derroga a Constituição de Cádiz é a efetivada desde acima pelo próprio Fernando VII no seu regresso da catividade. Na primeira fasse, de 1814 a 1820, com o apoio (embora seja mais exato dizer, com a forte pressão) do setor mais recalcitrante dos deputados das Cortes de Cádiz, os firmantes do conhecido como Manifesto dos Persas30 (boa parte Prelados) convirte a Espanha peninsular, como diz Florez Estrada31en una nación de delatores y perseguidos, de carceleros y encarcelados, de verdugos y víctimas”. O resultado é que a primeira contrarevolução é mais reacionária, absolutista e sanguenta (no que entre espanhois se refere) do que a inicial “revolução liberal”. Os dissidentes passam a integrar sociedades secretas nos Exércitos, nada menos. O próprio Argüelles e outros déspotas ilustrados estão entre os retaliados. No contador do já de por si anti-democrático liberalismo, Espanha começa em menos dous.

Este absolutismo Vs absolutismo absoluto32 vai ter consequências futuras em termos comparados de evolução política, mas já ao longo do século XIX tem-as lexicais. Na medida em que o absolutismo em Espanha se chamou liberalismo, avançada só uma década, os primeiros liberais chamar-se-ão “radicais” ou “exaltados”, face aos liberais “moderados” ou “doceañistas”, os absolutistas. E assim por diante: Quando Pi e Margall apresenta o projeto de Constituição federal de 1873 (texto não-nato inspirado na Constituição americana, também não democrático e reacionário, embora bastante menos do que os precedentes), representará a facção de liberais federalistas “benévolos”, partidários dum federalismo de acima-abaixo, para os diferenciar dos liberais federalistas “intransigentes”, partidários dum federalismo de abaixo-acima, cujo projeto constitucional não será nem debatido.

 

26 Diz o Catedrático da Universidad de Sevilha Bartolomé Clavero, num artigo a propósito do bicentenário: “Se está por lo general utilizando la efectiva renovación de la historiografía de materia política para proyectar hacia atrás imágenes atemporales como las de liberalismo y democracia que dislocan y desvirtúan la historia y, al cargarse de pasado, la política misma. Afortunadamente, al menos el intento de manipular desde España la conmemoración de bicentenarios constitucionales por América, con el corolario de magnificar el aporte gaditano, ya está dando ciertas muestras de frustración.”

27La Constitución de Bayona”, Fernández Sarasola.

29 A luta contra a dissidência foi uma constante durante toda a vida das Cortes de Cádiz, efetivada militarmente, com propaganda de toda classe e com a discriminação e promesa de discriminação. Um exemplo é a imposibilidade de exercer cargos públicos dos afrancesados e não patriotas: http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/coleccion-de-los-decretos-y-ordenes-que-han-expedido-las-cortes-generales-y-extraordinarias-desde-24-de-septiembre-de-1811-hasta-24-de-mayo-de-1812-tomo-ii–0/html/0027bda0-82b2-11df-acc7-002185ce6064_212.html

30 O título do conhecido como Manifesto dos Persas era: “Representación y manifiesto que algunos diputados á las cortes ordinarias firmaron en sus mayores apuros para que la Magestad del señor D. Fernando el VII a la entrada en España de vuelta de su cautividad, se penetrase del estado de la nación, del deseo de sus provincias, y del remedio que creian oportuno; todo fue presentado á S. M. en Valencia por uno de dichos diputados, y se imprime en cumplimiento de real órden.” O texto está assinado por até 69 deputados das Cortes ordinárias resultantes do procedimento de eleição previsto na Constituição gaditana: as elites mais selectamente absolutistas que lhe pedem ao rei um regresso às formas de absolutismo puras anteriores à invasão. O nome do manifesto procede de uma cita no mesmo relativa à costume dos antiguos persas de terem 5 dias de anarquia após a morte do monarca, período que eles equiparam ao que está a viver a Nación. Estas e outras pressões somadas à sua própria vontade, fazerão com que Fernando VII derrogue o corsé da Constituição de 1812 o 9 de março de 1814.

31 Déspota ilustrado, advogado, economista, historiador, alto funcionário do absolutismo com Godoy, Deputado nas Cortes gaditanas, dos poucos tenuemente liberais (no sentido político de começos do XIX), passará a ser alto oficial militar em 1813 e terá de se exiliar um ano mais tarde quando regressa o Desejado.

32 Um decreto de Fernando VII descreve o essencialismo da ala purista: “Con del fin de que desaparezca para siempre del suelo español hasta la más remota idea de que la soberanía reside en otro que en mi real persona…”