Os mundurucus — povo nativo da Amazônia brasileira — conservavam uma prática milenar que enchia os europeus de pavor: a amputação, mumificação e redução da cabeça do inimigo para fins rituais. Criam os mundurucus que as cabeças reduzidas — estes macabros troféus de guerra — tinham o poder sobrenatural de atrair os animais e proporcionar abundante caça.
À tranquilidade dos indígenas e à fartura da caça, todavia, se opunha uma entidade sobrenatural: o Jurupari, o deus da escuridão na mitologia tupi. A ele tange visitar os sonhos das pessoas e submetê-las aos horrores do pesadelo e da asfixia. Como diria o escritor brasílico-estadunidense Luiz Poleto, tal faceta do Jurupari equivale à de “um espírito maligno predisposto a incomodar ou sufocar pessoas adormecidas”, e tal nefasta entidade, adornando-se de outros nomes1, mas conservando os malignos poderes, espraia-se em diversas culturas no mundo: que o diga a célebre pintura de Johann Heinrich Füssli (1741 – 1825)!
Já nas praias dos imensos rios amazônicos, o Jurupari retirava a própria pele antes de banhar-se; nas florestas, atraía astuciosamente as crianças para — qual um morcego — sugar-lhe o sangue. Sim, o Jurupari é um vampiro ameríndio.
Já nas praias dos imensos rios amazônicos, o Jurupari retirava a própria pele antes de banhar-se; nas florestas, atraía astuciosamente as crianças para — qual um morcego — sugar-lhe o sangue. Sim, o Jurupari é um vampiro ameríndio.
Uma mulher mundurucu contou ao etnógrafo brasileiro João Barbosa Rodrigues (1842 – 1909) — quando este, entre 1872 e 1875, se empenhava numa missão científica à Amazônia — uma terrível história protagonizada pelo Jurupari. O cientista anotou-a e a traduziu ao português. Ei-la2:
O JURUPARI E AS MOÇAS
Contam que um velho, que tinha três filhas, combinara com o tio delas para levá-las a apanhar miriti3. Conforme tinham ajustado, apareceu de madrugada o Jurupari sob a figura do tio, que ele havia morto em caminho. Saíram as moças com o suposto tio. Depois de muito caminharem, perguntou uma delas se ainda estava longe o miritizal. O Jurupari respondeu que não. À medida que caminhavam, de vez em quando uma delas perguntava se ainda estava longe o miritizal e ele respondia que não. Ao alvorecer, já quando estavam perto da gruta em que morava o Jurupari, uma delas, olhando para os pés deste, exclamou:
— Kuaá Yurupari! (Este é o Jurupari!)
Chegando à casa, disse-lhes o Jurupari que ali é que era o miritizal. Saiu depois, deixando um papagaio de sentinela às moças, para que não fugissem.
Chegando a noite, convidou a mais velha para levar-lhe fogo à rede. Aí começou, como morcego, a chupá-la. De madrugada, tornou a sair para o mato.
Logo que ele saiu, foram as duas irmãs ver a que dormira com o Jurupari e encontraram somente a sua ossada. À noite, chegou o Jurupari e mandou a segunda levar-lhe fogo à rede e, quando esta se aproximou, agarrou-a e chupou-a como a primeira. Pela madrugada, foi novamente para o mato. Quando este saiu, a mais nova foi à rede e viu a outra ossada. Chorando, deitou-se na rede, junto dos ossos de suas irmãs. Logo depois, viu passar voando sobre a gruta o carão4 e gritou:
— Ah! Carão! Carão! Se tu fosses gente, me levarias à minha mãe!
Daí a pouco apareceu-lhe o carão, sob a forma de um moço, que lhe disse que tomasse os ossos, um pouco de sal e de cinzas e fosse furtar a milonga5 do Jurupari.
Logo que ela arranjou tudo, partiram.
Apenas saíram, começou o papagaio a gritar:
— Ce yara, Karan o raçô ana ne yapuruchitá. — (Meu senhor, lá vai o Carão levando o teu caramujo.)
Ouvindo isso, correu atrás deles o Jurupari gritando:
— U rure Karan ce muyrakytan! (Carão, traz o meu talismã6.)
Ao aproximar-se o Jurupari, o carão disse à moça que tomasse um dos ossos das irmãs. Imediatamente, levantou-se uma grande fumaceira que impediu o Jurupari aproximar-se. Aproveitaram-se disso e caminharam. Já tinham andado muito quando novamente ouviram o grito:
— U rure Karan ce muyrakytan!
O carão mandou, então, queimar sal e cinza, o que fez com que se levantasse um grande espinhal.
Enquanto o Jurupari se desembaraçava dos espinhos, eles avançaram. Já perto da casa da mãe ouviram ainda:
— U rure Karan ce muyrakytan!
Mandou, então, o carão que queimasse juntos os ossos, o sal e as cinzas, o que fez com que aparecesse um grande rio, que o Jurupari não pôde atravessar, e assim puderam chegar à casa da mãe, que ficou contente por ver as filhas, quando as julgava todas perdidas.
Como observa, com bom teor de razão, a escritora brasileira Shirlei Cristina Massapust, o Jurupari compartilha com a mitologia do vampiro europeu a descrição de uma entidade sobrenatural “que vira morcego para chupar o sangue de jovens donzelas (…), não atravessa água corrente e pode ser paralisado por barreiras de plantas espinhosas…”7
Parece que as mais profundas raízes mitológicas — porque mergulhadas na aurora dos tempos — são o vivo testemunho de que o ente humano, por mais distintas e distantes que sejam as suas culturas, conserva e perpetua as tradições que, de alguma forma, perpetuamente assombram e atormentam-lhe o espírito.
1 No Nordeste brasileiro, a entidade denomina-se “Pesador”. Cientificamente, fala-se em “paralisia do sono”.
2 In Poranduba Amazonense, 1890, p. 131.
3 É a palmeira Mauritia Flexuosa de Martius. Do mesocarpo de seus frutos fazem os índios uma beberagem e os comem cozidos. (N. do T.)
4 O carão (Aramus guarauna) é uma ave da família dos aramídeos.
5 É termo africano imiscuído na língua geral e significa remédio, feitiço, talismã (N. do T.).
6 O Jurupari guardava dentro de um caramujo o muyrakytá, seu talismã. O caramujo é a comida do Carão. (N. do T).
7 In Parece morto: um olhar filosófico sobre o papel do morcego vampiro no perspectivismo ameríndio e sua influência na arte cosmopolita, pág. 114. Disponível em https://www.academia.edu/39142457/PARECE_MORTO_UM_OLHAR_FILOS%C3%93FICO_SOBRE_O_PAPEL_DO_MORCEGO_VAMPIRO_NO_PERSPECTIVISMO_AMER%C3%8DNDIO_E_SUA_INFLU%C3%8ANCIA_NA_ARTE_COSMOPOLITA.