Certa feita, o grande romancista russo Máximo Gorki (1868 – 1931) foi preso pela polícia, acusado de vadiagem.
Embora já fosse um autor famoso, Gorki mantinha uma existência errante. Solitário e maltrapilho, foi alvo das suspeitas dos policiais, que o conduziram à chefatura de polícia. Sempre foi um odioso costume de várias polícias importunarem os pobres diabos andarilhos que, como Jesus de Nazaré, não têm onde pousar a cabeça, a menos que gentilmente lhes concedam as benesses de um cárcere imundo e sombrio.
No Brasil, um país com uma significativa maioria de pobres ou remediados, até o ano de 2012 constituía-se em contravenção penal dar-se “habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que assegure meios bastantes de subsistência”. Como se os empregos caíssem do céu e fossem abundantes como a chuva tropical…
Na delegacia, antes de interrogarem o suspeito vagamundo, a polícia russa procedeu, como de praxe, à sua identificação, que é a primeira providência a ser tomada no caso de detenção de um nômade pobre e miserável. E o escritor foi convocado a declarar o seu nome, estado civil e outras coisas do gênero.
— Nome?
— Máximo Gorki.
Ouvindo o nome que o detido atribuía a si mesmo, o comissário de polícia — não sem que irrompesse aquela arrogante ironia, tão bem reservada a uma ocasião em que se pega, prazerosamente, o indefeso indigente na mentira — perguntou-lhe:
— Ah, então o senhor é parente do famoso romancista?
— Não, senhor; não sou parente do escritor. Eu sou ele próprio.
— Se é assim — respondeu-lhe o comissário, que não acreditara em uma só palavra que o homem lhe dissera —, prove-me. Escreva-me, agora mesmo, um conto no estilo de Máximo Gorki. Se o fizer, estará livre.
E o levou a uma escrivaninha, na qual o escritor, sem hesitar, tomou a pena e o papel. Pouco depois, o conto foi entregue ao policial.
Gorki foi posto em liberdade, mas a sua obra — a singular prova de sua inocência e salvo-conduto para o retorno à tão prezada existência errante — foi confiscada.
Acabasse aqui a nossa história, ela não deixaria de ser interessante. Mas o desfecho é outro.
Dias depois, ao percorrer os olhos nas páginas de um jornal, Gorki surpreendeu-se ao ver publicado o conto que escrevera na delegacia. Sim, lá estava a sua obra. Ela mesma. Assinava-a, porém, o comissário de polícia que o prendera por vadiagem…
Adepto do naturalismo, Gorki denunciou os horrores impostos pelos nefandos costumes de sua época. Lendo a pequena narrativa que segue abaixo, traduzida por autor desconhecido no limiar do século XX, não temos como nos deixar de enternecer com a tamanha humilhação e execração pública imposta a uma jovem mulher ucraniana:
A SURTIDA
Pela rua da aldeia, entre as alvas casinhas da Ucrânia, com um bramido selvagem, se move uma esquisita procissão.
Uma chusma de gente do povo caminha, apertada e vagarosa, adianta-se como uma enorme vaga e, na frente, a passo, vai velho rocim, comicamente hirsuto, com a melancólica cabeça abaixada. Quando levanta uma das patas dianteiras, sacode a cabeça arrepiada de uma maneira singular, como se batesse com ela na poeira da estrada; quando remove a perna de trás, a anca toda se abaixa para o chão e parece que ele vai cair.
No jogo dianteiro da carroça, solidamente amarrada pelas mãos, está uma pequena mulher — quase uma mocinha — completamente nua.
Caminha de um modo extravagante, de banda. A sua cabeça, dotada de cabelos de um louro carregado, está erguida, um pouco voltada para trás. Olhos estão desmesuradamente abertos, e fitam um ponto qualquer ao longe. Seu olhar é estúpido e sem expressão: neles, nada há de humano… Todo o corpo está coberto de manchas azuladas e vermelhas, redondas e alongadas. O rijo peito esquerdo da mocinha está navalhado e dele o sangue escorre, formando delgados córregos que se unem numa linha vermelha no ventre. A tira sanguínea desce ao longo da perna esquerda e se estende até o joelho, onde a poeira, mesclada ao sangue, produz uma crosta escura e repugnante. Parece que no corpo da mulher está cortada uma tênue e comprida tira de pele; e que, por muito tempo, sem dúvida, bateram-lhe com uma acha de lenha sobre o ventre: o abdômen está monstruosamente inchado e horrorosamente azulado.
Os pés, delicados e pequenos, pisam custosamente sobre o chão. Todo o corpo está medonhamente torcido e vacila, e é impossível compreender por que e como se conserva ainda sobre as pernas, completamente cobertas de manchas azuis. Do mesmo modo, não se pode saber por que todo o seu corpo não cai ao chão e, dependurada pelos braços, não se deixa arrastar pela carroça por cima do chão quente e poeirento.
E, em cima da carroça, se mantém de pé um rapagão de camisa branca, gorro de astracã, por debaixo do qual está caída, cortando-lhe a testa, uma mecha de cabelos de um ruivo brilhante. Com uma das mãos, segura as rédeas; com a outra, um chicote. E, metodicamente, açoita uma vez o lombo do animal e outra o corpo da mulher, já pisado a ponto de perder a aparência humana. Os olhos do rapagão ruivo estão injetados de sangue e brilham num triunfo feroz.
Os cabelos fazem sobressair a sua tez esverdeada. As mangas da camisa, arregaçadas até o cotovelo, deixam ver braços fortes, musculosos, cobertos de um pelo ruivo. A boca está aberta, cheia de dentes alvos, pontudos e, de vez em quando, o rapagão solta gritos roucos:
— Xô, feiticeira! Bruxa! Bruxa! Hop! Eh! Eh! Lá vai uma chibatada! Filha de uma… Está bem assim, irmãos?
E atrás da carroça e da mulher que está amarrada a ela, a multidão — uma onda imensa — desliza e, também ela, grita, berra, silva, ri-se, brada, exclama, excita-se… Os garotos correm. Alguma vez, destaca-se um deles, e grita na cara da mulher palavras cínicas. Então uma gargalhada da multidão abafa os outros rumores e o silêncio agudo do chicote no ar…
As mulheres vão com o semblante excitado, os olhos cintilantes de prazer.
Os homens vão e bradam alguma coisa nauseabunda à vil criatura que está em pé em cima da carroça e que se volta para ele e ri-se, com a boca escancarada.
Uma chicotada sobre o corpo da mulher. O chicote, comprido e fino, enrosca-lhe ao redor dos ombros e ei-lo preso sob a axila… Então, o aldeão que chicoteia puxa-o com toda força. A mulher dá um grito estridente e, dobrando-se para trás, cai com as costas sobre o chão… Do meio da multidão, muitos se precipitam e escondem-na com os seus corpos, ao se debruçarem sobre ela.
O cavalo para, mas um momento depois caminha de novo, e a mulher, inteiramente machucada, quase moribunda, continua a caminhar com a carroça, como antes. E o mísero rocim, a cada passada vagarosa, sacode sempre a cabeça arrepiada, como se quisesse dizer:
— Eis por que é mesquinho ser uma alimária! Podem obrigar-nos a tomar parte em não sei que horrores abomináveis.
E o céu meridional está perfeitamente sereno — nem a mais pequena nuvem —, e para além das excelsas alturas, o Sol estival derrama generosamente os seus raios ardentes.
Não é uma pintura alegórica da perseguição e tortura de um profeta ingratamente desconhecido no seu país! Isto chama-se “A surtida”. Assim punem os maridos a infidelidade de suas mulheres. É um quadro de gênero. Um costume… Eu o presenciei no dia 13 de junho de 1891, na aldeia de Kandibovka, no governo de Kerson.
Não temos por que duvidar que Gorki, o escritor andarilho, realmente falava a verdade quando afirmou que assistiu a tão macabro episódio, ocorrido num tempo em que as autoridades policiais, muito ocupadas em perseguir e encarcerar pobres vagabundos, permitiam que mulheres inermes fossem entregues à bárbara justiça de um marido irascível e humilhantemente expostas ao escárnio mesquinho de uma turba degenerada.