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Horacio Quiroga

Ao longo do ano de 1927, a revista argentina Caras y Caretas publicou uma série de artigos — vinte ao todo — de Horacio Quiroga (1878 – 1937), sob o título geral “Heroísmos”.

Ao contrário do que o título pode sugerir, não cuidou o grande contista de sondar, em cada um de seus brevíssimos artigos, as façanhas militares perpetradas, com risco ou sacrifício da própria vida, pelos grandes vultos que povoam as galerias de heróis. Como explica o escritor uruguaio Pablo Rocca, Quiroga preferiu explorar episódios isolados, mas exemplares, na vida de pessoas — artistas, cientistas, inventores e expedicionários — que levaram a cabo uma missão ou tarefa extraordinária.

O próprio Quiroga nos revela a que espécie de heroísmo ele se refere:

Chega um momento na vida em que as circunstâncias colocam o homem à beira de um precipício que ele deve saltar — ele, que nunca saltara antes; à entrada de um túnel em chamas — ele, que não resistiria aos primeiros calores; diante das portas de uma cidade devastada por uma epidemia — ele, que sempre evitou o menor contágio.

Estas circunstâncias — precoces para alguns e tardias para outros, mas sempre inevitáveis — constituem o destino de toda existência.

Hoje ou amanhã, o homem há de se encontrar, fatalmente, diante de tais circunstâncias. Dois caminhos se abrem para ele: o homem de têmpera mediana, o homem normal, equilibrado como uma balança, o homem-tipo, a cuja categoria todos pertencemos, este homem volta as costas ao precipício que lhe poderia custar a vida; afasta-se das chamas que poderiam malograr a sua existência; foge dos moribundos da cidade que poderiam arrastá-lo consigo.

Outro caminho se abre: o homem que se decide a segui-lo não ignora que se matará no precipício, que arderá no túnel e que renderá sua vida à epidemia. Mas, a despeito desta certeza, domina-o apenas uma convicção: ele tem que fazê-lo.

Este sentimento de dever, este impulso do destino anteposto à razão, ao discernimento, à comodidade e bem-estar conservadores dos anos constitui, posto em ação, o heroísmo.

A um Edgar Allan Pöe (1809 – 1849) premido pela miséria e pelas súplicas do alcoolismo — é mais fácil, diz o articulista, arrancar um lampejo de genialidade em um mentecapto, do que um ato insignificante da vontade diluída no marasmo glacial dos estupefacientes — dedicou Quiroga um de seus mais belos artigos: A Honestidade Artística. Ei-lo:

Recentemente, vieram a lume documentos nos quais se comprova que o trabalho literário de Poe era remunerado à razão de cinquenta centavos de dólar por página impressa. Constando os seus contos mais conhecidos, ordinariamente, de quinze páginas, e de apenas dez ou doze laudas os mais famosos, encontramos a média de seis dólares por conto1, ou seja, quinze pesos de nossa moeda.

Vale dizer que um dos mais extraordinários gênios que já tivemos no mundo — quase sem ascendentes e sem nenhum sucessor, sozinho e isolado na história literária como um diamante, este homem de inteligência profunda até a vertigem — tinha que viver, comer, vestir-se e relacionar-se socialmente à razão de um só peso por página que escrevesse.

O caso não é único. De Homero a Leonardo Frank2, passando por Beethoven — que, urgentemente, vendeu por vinte e cinco pesos sua quinta sinfonia —, o gênio adquire os seus privilégios pelo sacrifício de seu bem-estar. Mas se este fenômeno, de certo modo biológico, não nos causa estranheza, a honestidade de Poe — tão grande quanto o seu gênio — é digna de uma surpresa sem fim: ele limitava a doze páginas seus grandes contos, para com eles ganhar apenas seis pesos, quando lhe seria fácil estendê-los a vinte ou cem páginas.

Admitamos que, com esses seis pesos, o homem saciava a sua fome de seis dias, e dormia por igual lapso de tempo sobre um colchão de lã. Tudo é possível em Poe. O que não é admissível é que esse ganho fosse suficiente para custear a bebida na quantidade que Poe bebia.

Conhecidas são as fraquezas do poeta. Não havia paraíso artificial que ele não visitasse, nem serpente que não devolvesse fielmente as suas visitas na forma de delirium tremens. Fome de comer e sede de álcool, vagabundagem desorientada e mais ainda o que se desconhece sobre aquele estranho ser, tudo devia ser penosa e mesquinhamente satisfeito com os seis pesos por cada conto seu.

Se em Poe a necessidade de álcool, éter e ópio era tão orgânica quanto se supõe, poucas torturas teriam sido iguais a de que padecia aquele homem quando a falta de recursos lhe permitia comer e dormir, mas não se drogar. Nestes momentos, daria uma fortuna, se a tivesse, por uma gota de álcool. Aprecie-se agora a honestidade mais que heroica, a dignidade mais que divina do escritor quando, posto a escrever um conto, concluía o trabalho no momento preciso, na décima página, ainda que a ânsia de beber lhe transtornasse a vontade.

Vontade, sensatez, decoro, tudo no grande contista ruiu, menos a honradez artística. Ele poderia ter alimentado folgadamente o demônio do álcool simplesmente ampliando e recheando os seus extraordinariamente sóbrios contos. Ninguém como ele teria tanta facilidade para fazê-lo. Não o fez, contudo. Mas hoje, sem urgências e necessidades — e, se premidos ou necessitados, basta-nos ampliar e rechear um conto, que de conto mesmo só leva o nome —, somente nos lembramos de que Poe bebia muito; de sua honestidade, contudo, mal nos damos conta.

Um incidente na vida do poeta nicaraguense Rubén Darío (1867 – 1916) — assim como Pöe e Quiroga, autor de maravilhosas narrativas fantásticas — foi a fonte de inspiração a outro belíssimo artigo: O Capital Invisível. Nele, mais uma vez, o dinheiro e a arte são sopesados pelo fiel de uma balança infiel:

Quando um médico diz que o que se paga com dez pesos numa consulta não é o exame de um minuto ou a receita de um segundo, mas sim os longos anos de perseverança — senão de pobreza — com que sobrelevou os seus estudos, expressa a situação de todos aqueles que, sem esforço aparente, percebem os rendimentos de um potente capital invisível.

As pessoas costumam julgar com mau humor esta espécie de ágio da intelectualidade, tanto mais duramente quanto sutil é a essência do capital opressor. Assim sucede no domínio da arte, cujas transações econômicas desde sempre pasmaram, e continuam a pasmar, os negociantes em geral.

Há muito tempo, um senhor, cujo nome não importa, proprietário de uma casa de moedas, recebeu, certa tarde, a visita de Rubén Darío, com quem tinha uma dessas vagas amizades travadas numa mesa de bar.

Esse senhor não era precisamente um homem inculto. Talvez merecesse maior consideração do que a que lhe foi dispensada pelo poeta ao final de sua visita. Mas todos sabemos que Darío não era estritamente formal em suas relações e, demais disto, passava por um mau momento.

Chegando Darío às cinco da tarde na casa do amigo, que não se achava sozinho, tomou chá com os convivas e, ali demorando-se, jantou. Já era meia-noite quando, para o pesar de seus deslumbrados anfitriões, se despediu.

É preciso advertir que Darío não era expansivo, nem mesmo na intimidade. Todavia, naquela ocasião, havia se mostrado o incomparável causeur que poderia ser, acaso assim desejasse. Por longas horas, manteve escravo de seus lábios os convivas que, mesmo após a despedida, não podiam recobrar-se do efeito de seus encantos.

O dono da casa o acompanhou à porta da rua. Lá, ao apertar-lhe a mão, Darío pediu dois pesos.

Não dez, nem mesmo cem. Somente dois pesos me pediu, como um pedincha qualquer”. Com estas palavras, o comerciante despeitado considerou e julgou Darío.

O capital desse senhor estava pomposamente exposto em suas vitrines. Podia vender, sem escrúpulos, suas quinquilharias, por centenas de pesos, a quem, por prazer ou capricho de um momento, se dispusesse a pagar, pois representavam um valor bem visível. Mas a causerie do poeta, não.

Mas o que Darío dava por dois pesos era o encanto, prolongado horas e horas, de uma inteligência privilegiada, de uma erudição cultíssima, de uma vida amplamente sofrida em emoções, depurada em arte; e tudo isto entregue, com humildade e generosidade sem par, em contrapartida a um pedido de dois pesos, que qualquer um de nós se atreveria a exigir sem deixar como refém um átomo de vergonha.

Para que se tenha ideia das vicissitudes de Darío e Pöe, vai uma informação: um bom par de sapatos, no tempo em que publicados os artigos, custava por volta de quinze pesos. Assim, para comprá-lo, teria Allan Pöe que escrever e publicar pelo menos uma obra-prima; Rubén Darío, entreter encantadoramente os seus ouvintes por 52 horas e meia… A primeira vítima da genialidade — defende Quiroga, como se em causa própria — é aquele que a detém.

Narrativas fantásticas de Darío, Pöe e Quiroga podem ser lidas em nosso sítio Contos de Terror.

1 US$ 6, em 1839 — ano de publicação, por exemplo, de The Fall of the House of Usher e William Wilson —, correspondem, atualmente, a aproximadamente EUR $ 130. A conversão feita por Quiroga respeita ao câmbio de agosto de 1927.

2 Leonhard Frank (1882 – 1962), escritor expressionista alemão.

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