José Pedreiro é ferrolano. Em criança falava um castelhano e na sua mente achava que falaria galego em adulto, que eram os que os adultos faziam. Finos e ginjas foram ótimos aliados para ganhar expressão em galego. O seu primeiro contacto com a estratégia internacional foi Scórpio, do seu conterrâneo. É professor de português no ensino secundário e na rede de EOI. Para o avanço social da perspetiva reintegracionista, julga que a escola é fundamental. Acha que na Agal há sítio para todos e, como dizia Castelao, a obra ainda não está acabada
José Pedreiro nasceu em Ferrol. O que lembras da fotografia linguística da tua infância? Havia uma única sintonia?
Nasci em Ferrol, sim, numa clínica já desaparecida situada na Porta Nova. Passei a infância toda na Terra de Trás-Ancos, entre Ferrol e Meirás, freguesia de Valdovinho (nada a ver com “vinho”, dizem), de onde é originário o meu pai. A minha mãe nasceu em Covas, freguesia de Ferrol. Duas freguesias que, já agora, vale muito a pena visitar pelas suas paisagens marítimas incríveis.
Pronto, eu em criança falava castelhano, o que me falavam na casa. Era um castelhano muito galeguizado, aquela espécie de crioulo que já quase não se ouve nas crianças da atualidade, eu dizia coisas tipo “lo que?”, “esmagué las patatas”, “me rabuñó el gato y me laia mucho”, “los pésegos están podres” “vamos jugar al peón” o “casi me esgano con el pan reseso”. Hoje, mesmo a falar galego, muitas pessoas já usam as formas castelhanas de esmagar >aplastar, rabuñar > arañar, laiar > escocer, pêssego>melocotón, podre>podrido, peón > peonza, esganar-se > ahogarse, reseso >viejo… a situação mudou radicalmente numas décadas, de usar galeguismos no castelhano passou-se a usar castelhanismos no galego.
Pelo lado paterno fui a primeira geração a falar castelhano, pelo lado materno já fui a segunda. Os meus avós maternos deixaram de falar galego aos filhos de forma habitual por um episódio que aconteceu em Tui. Certo dia foram ver uns familiares que viviam lá e durante a visita, a minha tia, era uma rapariguinha, falou galego à frente de todos. Os de Tui começaram a rir às gargalhadas e diziam “ai que simpática, hablando gallego” e esse tipo de coisas tão engraçadas. Conta a minha mãe que os meus avós passaram bastante vergonha. Quando voltaram para Ferrol, a minha avó disse “Nesta casa não se volta a dizer uma palavra em galego!”, disse-o em galego, claro. E, desde esse momento, falou castelhano aos filhos, mas com o meu avô continuou a falar galego, … claro.
Os meus avós maternos deixaram de falar galego aos filhos de forma habitual por um episódio que aconteceu em Tui. Certo dia foram ver uns familiares que viviam lá e durante a visita, a minha tia, era uma rapariguinha, falou galego à frente de todos. Os de Tui começaram a rir às gargalhadas e diziam “ai que simpática, hablando gallego” e esse tipo de coisas tão engraçadas.
Esta história não tem nada de especial. Ela é apenas uma das muitas histórias de vergonha e humilhação que contribuíram para o abandono da língua por parte de muitas gerações. Para evitarem situações constrangedoras, vexatórias e verdadeiramente humilhantes, os pais deixam de falar galego aos filhos. Em todas as famílias galegas que abandonaram a língua há histórias deste tipo. Ainda hoje continua a acontecer.
Portanto, eu em casa ouvia castelhano, daquele que se falava antes, e era quando ía a Meirás ou a Covas que ouvia galego em abundância. Lembro-me que quando tinha seis ou sete anos pensava que na idade adulta eu também iria falar galego, mas não por convicção de nenhum tipo, mas simplesmente porque falar galego era uma coisa própria de adultos. Um dia iria acordar a falar galego, seria a prova irrefutável de que já era um adulto. Na minha mente de menino os adultos bebiam vinho, os adultos fumavam, os adultos falavam galego.
Na minha mente de menino os adultos bebiam vinho, os adultos fumavam, os adultos falavam galego.
Por essa altura, um dia vi na tv uma velhinha toda ela vestida de preto, levava um lenço também preto a cobrir-lhe a cabeça, parecia uma velhinha de qualquer aldeia galega, mas quando ela abriu a boca… fiquei mesmo chocado, a velha falava castelhano! como era possível? Isso deitava abaixo a minha teoria, não podia ser! Depois entendi, a senhora era de Salamanca.
A minha teoria continuava inabalável, os adultos falavam galego e as crianças castelhano.
Quando é que começas a ouvir mais sinfonias e quando é que começas a ensaiar tu próprio?
Como já disse, comecei a ouvir essas sinfonias de tenra idade e comecei a ensaiá-las durante o último ano do ensino secundário, denominado C.O.U. naquela altura. Falava galego com algum amigo que também sentia a chamada da língua. Nesse mesmo verão, a noite foi a minha aliada e entre finos e ginjas fui alargando o número de pessoas com quem falava galego. Na casa, um belo dia, disse: “a partir de hoje vou falar galego. Sempre.” e pronto, até hoje. Quando fui estudar para Compostela já falava galego com todo o mundo.
No entanto, eu sabia que o meu galego precisava de ser aperfeiçoado, em todos os aspetos. Comecei a tomar notas e a aprender de familiares, vizinhos, desconhecidos e também mergulhei nos mapas linguísticos do galego para verificar formas verbais, timbres de vogais ou vocabulário usado na minha região de Trás-Ancos, especialmente o das minhas freguesias de origem, Covas e Meirás. Tive que aprender muita coisa e ainda continuo a aprender. Tenho claro que nunca conseguirei falar um galego tão bem falado como o dos meus avós, com todas aquelas expressões e estruturas tão ricas e variadas, muitas delas já esquecidas ou quase.
Vamos continuar a falar de música mas de outra forma. Lembras quando surge a primeira partitura reintegracionista? E quando é que decides que será o teu estilo?
Lembro que um dia fui fazer a prova de galego na EOI de Ferrol, como aluno autoproposto. Uma das partes era sobre um livro de leitura. Consultei a lista de livros e vi que um deles era o Scórpio, de Carvalho Calero e decidi lê-lo. Eu não sabia que o livro estava escrito na ortografia reintegrada. Fui à biblioteca municipal de Ferrol e encontrei o livro, vi que estava escrito “daquela forma esquisita”, li, gostei e quando no dia da prova oral disse aos examinadores que tinha lido o Scórpio, ficaram calados, olharam-se entre eles, como se eu tivesse feito algo mau. Afinal não havia prova de leitura, mas fiquei contente por ter lido aquele livro do meu admirado conterrâneo. Ainda por cima o protagonista era um rapaz de Ferrol que ia estudar a Compostela, igual que eu!
Pouco tempo depois, já na Faculdade de Filologia, inscrevi-me numa cadeira de introdução à língua portuguesa. Era daquelas opcionais, eu nesse momento estava a tirar o curso de inglês e foi nessa cadeira que eu aprendi a ortografia da língua. Achava um imenso prazer em escrever aquelas cedilhas, aqueles <nh>, os <lh>, os tiles ~, os circunflexos ^… eram como as peças dum quebra-cabeças que agora encaixavam perfeitamente. Tudo fazia sentido.
Parece-me normal e natural que uma pessoa galega, ao entrar em contacto com a ortografia portuguesa, sinta que aquilo é o que necessita o galego. É algo espontâneo e diria que quase inevitável. Pelo menos comigo foi assim.
Parece-me normal e natural que uma pessoa galega, ao entrar em contacto com a ortografia portuguesa, sinta que aquilo é o que necessita o galego. É algo espontâneo e diria que quase inevitável.
José Pedreiro é professor de português do ensino público. Em que medida o português é mais do que uma língua de formação para o ensino de adultos?
Exatamente, por um lado, o português é uma língua de formação porque saber português abre portas, cria oportunidades profissionais. Eu próprio arranjei vários trabalhos, não relacionados com a educação, simplesmente por saber falar e escrever português. Quando dava aulas nas E.O.I. contava isto aos alunos para eles verem que, além do aspeto cultural, o português é uma mais-valia no campo profissional.
Mas o português é mais do que isso para aqueles adultos que se decidem a estudá-lo. Significa aprenderem palavras que já não usam no seu dia a dia, mas que os seus pais ou avós usavam correntemente. Por exemplo, eu aprendi do meu pai palavras como vesgo, parceiro ou grainha e, nas aulas, quando essas mesmas palavras aparecem, quase ninguém as conhece, os alunos aprendem-nas nesse momento, através do português padrão, ignorando que membros das suas famílias, há não tanto tempo, também as usavam. Aprender português, obviamente, é aprender galego, os alunos melhoram e enriquecem a língua que usam diariamente.
E, sendo também docente do ensino secundário, qual a utilidade de crianças galegas estudarem português?
Como no caso dos adultos, através do português as crianças também aprendem galego, bom galego. Durante as aulas repito constantemente a frase “Isto em galego diz-se igual “, “Isto também o podeis dizer em galego”. Conto-lhes, igual que aos adultos, que eu arranjei vários empregos pelo simples facto de saber português. Digo-lhes que o português pode abrir-lhes muitas portas, tanto no presente como no futuro. Há um mundo lusófono à sua espera: música, jogos, filmes, livros, vídeos, pessoas! Só há vantagens: melhoram o seu galego, abrem a mente, aumentam a autoestima como galeg@s e incrementam as possibilidades de sucesso no seu futuro profissional.
Como no caso dos adultos, através do português as crianças também aprendem galego, bom galego.
Se queremos que uma visão internacional da língua galega progrida socialmente, quais áreas seriam as mais importantes?
Como obreiro da educação, quero pensar que a escola é fundamental. Se todos acabássemos o ensino secundário com a firme ideia de fazermos parte da lusofonia, tudo seria mais fácil. Se todos estudássemos português desde o primeiro ano da escola primária até ao último ano de escola secundária, ninguém deixaria de ler um livro, um artigo ou uma notícia pelo simples facto de estarem escritos com uma ortografia “estranha”, “hoje” e não “hoxe”, “sonho” e não “soño”, “gente” e não “xente”. Quando nas aulas de galego, também dou a matéria de Língua e Literatura Galega nalgumas turmas, peço aos alunos para lerem um texto escrito em português padrão, pronunciam as letras <j> e <g> como em castelhano e a cedilha como o <c> de <casa>. Mas quando escrevo “Barça” e “Jordi” no quadro, ninguém pronuncia aquilo como “Barca” ou como “Jordi” com jota castelhana, todos o sabem pronunciar!
Quando nas aulas de galego, também dou a matéria de Língua e Literatura Galega nalgumas turmas, peço aos alunos para lerem um texto escrito em português padrão, pronunciam as letras <j> e <g> como em castelhano e a cedilha como o <c> de <casa>. Mas quando escrevo “Barça” e “Jordi” no quadro, ninguém pronuncia aquilo como “Barca” ou como “Jordi” com jota castelhana, todos o sabem pronunciar!
Também seria muito importante permitir a receção de canais e emissoras de Portugal nos lares galegos. Isto iria normalizar a presença diária da língua na vida das família, mas também da realidade portuguesa, de forma espontânea e natural. E claro, o mundo da empresa também é vital, espalhar a ideia de que ter conhecimentos da variedade internacional da língua é sinónimo de carcanhol… afinal isso é o que move o mundo, não é? E no fundo é o que os pais e as mães querem para os seus filhos, que tenham um emprego digno e uma vida desafogada, por isso também é importante dar a conhecer essa sinonímia entre as famílias dos estudantes: português = melhor futuro para @s filh@s. Muitos alunos desejam escolher português na escola como segunda ou até como primeira língua estrangeira, mas em casa simplesmente não lhes deixam, porque pensam que tanto o francês como o inglês serão mais úteis na idade adulta em geral e na profissional em particular.
Porque decidiste tornar-te sócio da Agal e que esperas do trabalho da associação?
Quanto mais gente melhor, a união faz a força. Na Agal há sítio para todos e, como dizia Castelao, a obra ainda não está acabada. Dela espero que continue com o seu enorme trabalho de informar, divulgar editar, filmar, comunicar, em definitiva, de nos colocar no lugar do mundo que nos corresponde.
Em 2021 somamos 40 anos de oficialidade do galego. Como valorarias esse processo? Que foi o melhor e que foi o pior?
O melhor, a visibilidade que o galego ganhou para muitas pessoas e a presença da língua em âmbitos nos quais antes estava desaparecida. O pior, que o número de falantes diminuiu de forma assustadora pela péssima gestão dos responsáveis e também que o galego perdeu muita qualidade nas últimas décadas, ficando quase reduzido a um galtrapo cada vez menos reconhecível como galego, ainda que para algumas pessoas este pareça ser o modelo a seguir.
Como gostarias que fosse a “fotografia linguística” da Galiza em 2050?
Olha, gostaria que fosse possível perguntar no supermercado “Há uvas sem grainha?” e receber uma resposta coerente e imediata. Gostaria que fosse possível pedir polvo para jantar num restaurante e que não me trouxessem “polo”, como, aliás, já me aconteceu. Gostaria também de poder pedir a um amigo que me traga mais uma acha para meter no lume e que este NÃO apareça na porta com uma machada na mão e com cara de confusão. Acho que não é pedir muito, ou talvez sim…
Conhecendo José Pedreiro:
Um sítio web: o “iotube”
Um invento: o robô corta-relva.
Uma música: qualquer uma d’Os Diplomáticos!!
Um livro: W.C constrangido.
Um facto histórico: ainda não aconteceu…
Um prato na mesa: uma sobremesa, os freijós!!
Um desporto: futebol. Carrega Racing!!!
Um filme: “A invenção da mentira” e uma série? “Black Mirror”
Uma maravilha: na tvg já ouvi dizer “maravela”…
Além de galego: além de galego, falo espanhol, nível quase nativo, inglês, just a little bit e francês, bon, je parle français comme une vache espagnole…