Cumprem-se neste 2025 os 80 anos da primeira edição da Estilística da Língua Portuguesa do professor Rodrigues Lapa, um manual de referência que não apenas nos ensina a escrever corretamente, mas que também nos desafia a refletir sobre o estilo e a liberdade da expressão literária. Para revisitá-la hoje, falamos com o professor José Luís Rodríguez, autor do prólogo na reediçom que a Através Editora vém de publicar.

Quando é que conheceste o Professor e em que circunstâncias?
Pois, por acaso, lembro-o muito bem. Como já contei no livro que publicou a Através Editora, situando-me “nos trilhos da língua” (2020), foi no ano académico de 1970-1971, com motivo de um seminário seu sobre literatura medieval, talvez sobre D. Lopo Lias, o trovador galego que tanto satirizou uns infanções de Lemos, e sobre o qual Lapa publicara um artigo em Grial. Mas falta-me a certeza! Naquela altura, eu, recém acabada a carreira, e por ter tido aulas de Literaturas Românicas com D. Ricardo Carvalho Calero, sabia que Rodrigues Lapa era figura central no estudo do nosso trovadorismo, mas longe de imaginar até que ponto. Desconhecia totalmente, por exemplo, a sua dimensom cívica, o seu firme posicionamento anti-salazarista, que o levara a ser expulso da Universidade, acabando por ter que ir ganhar o sustento ao Brasil. Nesse primeiro contato que tivemos, obsequiou-me com um livro, que nem era da sua autoria. Tratava-se de “Tipos Portugueses. 1. O Galego”, do grande historiador, romancista e poeta que foi Alexandre Herculano. Afinal, o tal ‘galego’ era um indivíduo da zona de Coimbra, se o lembro bem. Andando o tempo, foi-me claro o seu significado, assim como a frase de Gallaecia usque ad Mondegum, que lhe ouvim muitas vezes. Livro que dedicou ao “estudante galego”, que era eu e continuo a ser, ainda que oficialmente já era na altura incipiente professor da Universidade de Santiago.
Rodrigues Lapa fazia muitas viagens à Galiza, poderías descrever qual era a sua atitute perante a nossa terra e a nossa língua?
Com efeito, desde a primeira vez que veu, em 1932, participando numa homenagem a Castelao em Nadela (Lugo), até que a sua saúde nom lho permitiu. Muitas vezes, mas decerto menos das que terá desejado. E nom vinha como turista, mas como interessado nos problemas da língua, sobretudo, da cultura, do País em geral. Há um artigo do Prof. Montero Santalha de 1984, intitulado “Rodrigues Lapa e a Galiza”, que leva um subtítulo soberbo, precioso: ”Crónica de um longo amor”. Nele, quase no início, reproduz um verso camoniano, que sintetiza belamente a atitude de Lapa: ‘Para tao longo amor, tao curta a vida’. Quero aproveitar o ensejo para pedir ao autor, o bom amigo Martinho, e a quem corresponder no Portal, a reproduçom neste meio do magnífico artigo, que ilumina, melhor do que ninguém, esse relacionamento de mais de meio século. Montero Santalha, que também conheceu de perto o Professor…
Rodrigues Lapa era um home amável, aberto, muito próximo, com um fino sentido do humor. Um intele(c)tual profundamente ligado ao povo (era, aliás, de origem humilde), com um único compromisso, exclusivo e irrenunciável, um compromisso com a verdade, o que o levou a choques com “intelectuais bem-pensantes”, como dizia um autor brasileiro. E também na Galiza, que ele considerava a sua própria terra, como pertencente à Galiza histórica, a do rei D. Garcia (a citada Gallaecia usque ad Mondegum!), e a nossa língua que sentiu sempre como sua, e a literatura galega, que prezou e analisou (como a portuguesa e a brasileira), nos seus estudos de filologia, história da literatura e/ou de crítica literária. “Galego honoris causa”, chamou-lhe Fernández del Riego em 1964, ao que responderia: “eu não quero ser Galego honorário, mas simplesmente ordinário, no bom sentido do termo”. Lembro-o bem em Santiago, comendo no restaurante Fornos, na rua do Hórreo, a comentar-me que gostava dele porque era popular e podia ouvir falar a gente, na sua/nossa língua, e não em castelhano. Por isso desejava ver convertida essa estupenda modalidade popular em língua literária, língua da cultura escrita, que exige um alto grau de unificaçom, e na qual a expurgaçom de castelhanismos levava já, quase obrigatoriamente, à convergência galaico-lusa (o que ele chamava de ‘portugalego’), pois as bases medievais eram as mesmas, ou muito similares, e o fundamental do núcleo morfossintático e lexical (o chamado léxico fundamental) continuava, e continua, ainda a ser o mesmo. Faltava resolver o problema ortográfico, a que já aludiu no recuado ano de 1933, e defendeu até ao seu falecimento em 1989, com quase 92 anos.
“Galego honoris causa”, chamou-lhe Fernández del Riego em 1964, ao que responderia: “eu não quero ser Galego honorário, mas simplesmente ordinário, no bom sentido do termo”. Lembro-o bem em Santiago, comendo no restaurante Fornos, na rua do Hórreo, a comentar-me que gostava dele porque era popular e podia ouvir falar a gente, na sua/nossa língua, e não em castelhano.
Lapa tem participado em diversas revistas, entre as galegas A Nosa Terra e Agália e, em Portugal, em Colóquio/Letras e Nova Renascença, e tem opinado sobre a situação do galego nalguma delas. Como é que foram recebidas as suas propostas?
Penso que em todas as publicações citadas, jornais e revistas, só participou muito pontualmente, pois tanto a Nova Renascença como Agália, por exemplo, som revistas da década de 80, e Lapa faleceu em 1989, como já indiquei, um ano antes do seu amigo Carvalho Calero, e os seus últimos anos, por problemas de saúde, nom forom nada férteis. Na Colóquio/Letras, iniciada, creio, na década de 70, sim lançou em 1973 um trabalho marcante, e também polémico, “A recuperação literária do galego”, que se reproduziu imediatamente na revista Grial, no mesmo ano. Nesta é que publicou mais, pois tinha boas relações com a gente de Galáxia, Fernández del Riego à frente; nessa editora é que veu a lume, em 1965, a sua magna ediçom das Cantigas d’ escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses. Mas a sua franqueza em expor os problemas do galego e a sua proposta de unificaçom ortográfica galego-portuguesa (e brasileira), aspeto já exposto por ele em 1933, indispugerom-no com o poder político-cultural da altura, oficial ou oficioso, que se concentrava na linha que ia da Corunha (a Real Academia Galega) a Vigo (a Editorial Galaxia), passando por Santiago (a Universidade e a Junta da Galiza). Também publicou alguns artigos em La Voz de Galicia, adatados polo Prof. Montero Santalha.
A obra do catedrático é abundante e multifocal. Qual foi o primeiro livro com o qual tiveste contacto e que mais te lembra ao professor? O que achastes dele?
Abundante, sim, multifocal relativamente. Para começar, Rodrigues Lapa nom foi catedrático, que o teria sido, com certeza, se nom fosse saneado da Universidade, junto com outros funcionários públicos, polo regime fascista de Salazar. E a causa primeira, mas nom única, claro, foi o artigo que mencionei de passagem, a sua célebre conferência de 1933, de título “A política do idioma e as Universidades”, onde por primeira vez citava a urgência da unificaçom ortográfica galego-luso-brasileira, para além da crítica azeda à situaçom da Universidade, com problemas ainda hoje nalgumha medida persistentes. Tal trabalho, publicado como outros dele na Seara Nova, foi recebido com aplauso por parte dos homes da revista Nós, considerando tal objetivo como “indispensável”, como se vê, quarenta anos antes do artigo de 1973, da Colóquio/Letras e Grial, a que se aludiu, e que tanta balbúrdia ocasionou.
Rodrigues Lapa nom foi catedrático, que o teria sido, com certeza, se nom fosse saneado da Universidade, junto com outros funcionários públicos, polo regime fascista de Salazar.
No entanto, Rodrigues Lapa nom precisava de ser catedrático para ser um mestre reconhecido dentro e fora das fronteiras portuguesas. Foi, ainda é, uma referência indispensável nos estudos medievais, na ediçom de clássicos, como os da coleçom Sá da Costa, ou os texos da Seara Nova. Só prestou menos atençom aos escritores do séc. XX, mas a sua estadia na Universidade Brasileira, foi também frutífera para a literatura deste país, sem esquecer também os seus contributos para com a galega, que sempre o acompanhou. Também para nós forom muito importantes as Lições de Literatura Portugues. Época Medieval, manual de culto para tantos estudantes, pois fora publicado em 1934, com inúmeras edições, “revistas e ampliadas”. Provavelmente o primeiro livro dele com que tivem contato.
Quanto à Estilística. No momento em que tiveste acesso a este livro, o que é que te pareceu? Era muito frequente o uso de Estilísticas na época?

Bom, eu julgo que ouvim falar desta obra por vez primeira, em 1970, num Curso de Férias em Lisboa ao Professor Lindley Cintra, figura básica da Filologia e da Lingüística Portuguesa. Cintra, que nos dava aulas, indicou nom ter sido aluno de Rodrigues Lapa, mas que se considerava discípulo dele, e recomendou a Estilística da Língua Portuguesa qualificando-a de, lembro bem, “o seu livro de cabeceira”.
Sempre lembrei essa consideraçom por parte do Professor Cintra, que exercia aliás umha grande seduçom inteletual sobre nós, tanto era o seu prestígio. Também foi ele a quem ouvim por primeira vez falar de três normas no mundo lingüístico galego-português: a galega (ainda em construçom, precisava), a lusitana e a brasileira, às quais poderiam agregar-se outras no futuro.
Voltando à Estilística de Lapa, pareceu-me sempre tam útil para aprender e melhorar a língua que a punha como leitura obrigatória aos meus alunos de nível superior, pois, para além da informaçom linguística que lhes oferecia, estava aberta às diversas modalidades do idioma comum, e podiam ouvir nela vozes da Galiza ao Brasil que poderiam despertar a sua curiosidade. Também, como conhecedor das peculiaridades da língua, das suas fibras mais íntimas, da sua enorme capacidade expressiva, poderia moldar o próprio escrita deles, nom esquecendo nunca, aspeto que muitos sublinharom, que Lapa escrevia sempre com marcada vontade de estilo. E ao mesmo tempo com clareza, o que o torna muito didático. Provavelmente nom cheguei a ser bem entendido polos meus alunos o porquê lhes exigia a leitura desta obra, pois que os aspetos estilísticos eram, de regra, mais considerados nas aulas de literatura que nas de língua.
A Estilística do anadiense diferencia-se de outras portuguesas em que, entre os exemplos escolhidos, aparecem trechos de textos galegos. Era útil para um galego este livro? Apesar dos anos que já têm passado, poderia ser útil para nós revermos este volume e aprendermos com ele?
Assim é, com efeito. Acabo de o dizer. Com cada nova ediçom da obra aumentava o número de autores galegos incorporados a exemplificarem determinados aspetos linguísticos ou estilísticos, geralmente comuns e, por vezes, específicos. Apesar de certos pontos, sobretudo léxicos, em que a obra pode estar algo ultrapassada, a Estilística, para os amantes da língua, continua a ser um magnífico livro de cabeceira! Atençom, nom é um livro para ler de uma assentada, mas aos poucos, para permitir ir consolidando conhecimentos. Com ele aprende-se muita língua, tanto no sentido de aumentar capacidades como no de melhorar ou desestimar estruturas. E até um pontinho gostoso quando permite descortinar as molas, digamos assim, que prendem a escrita literária. Todos os aprendizes de escritores ganharíamos abeirando-nos da Estilística. Qualquer um de nós, afinal, poderá tirar proveito dela.