No passado mês de maio, decorria entre Compostela e o Rio de Janeiro, organizada entre a AGAL (Associaçom Galega da Língua) e A ABL (Academia Brasileira das Letras) a Leitura Continuada do romance A República dos Sonhos, da escritora brasileira de origem galega, Nélida Piñon. Agora, falamos com algumas das pessoas que participaram da mesma, para recolher as suas impressões e o pouso do evento.
Passado já um tempo da leitura, como lembras o teu passo polo evento?
Chegamos entre chuva e vento, para encontrar um espaço de acolhida, de rostos sorridentes, afetos e uma fantástica organização.
Gostei muito da “Nélida-bis” que sorria na sala, de encontrar rostos amigos e da leitura, transversal, com participação de diferentes gerações e com sotaques vários.
Noutros tempos era costume reunir-se para ler. Senti um bocado a volta às salas de aula da minha escola de primária, àquele espírito comunal à espera dos novos aconteceres… mas desta volta na nossa língua comum, para relatar caminhos entre a Galiza e o Brasil. As navegações nas palavras compartilhavam músicas e abalavam uma história lenta, lenta, que permitia construir alguma coisa em comum.
Também gostei do saquinho que me foi dado e dos sorrisos na saída. Havia uma festa ali, naquele espaço da Cidade da Cultura, enquanto fora continuava o temporal. Dalgum jeito foi metafórico: sofremos o terrível estresse social do temporal, por isso estes espaços interiores são necessários, ações que nos aportam força individual e também comunal, para pensar que talvez é possível e necessário habitar os nossos direitos linguísticos, imprescindíveis para exprimir o que pensamos e como o pensamos, neste espaço do mundo, na nossa língua, isto é, na construção coletiva que criamos para adaptar a nossa comunicação às nossas circunstâncias.
Como avalias a repecursom do mesmo, achas que serviu para dar a conhecer melhor a figura e obra da Nélida?
Na verdade, pensei mais no livro que na autora, neste caso. Estou certa de que serviu, mas acho que seria muito bom rever, dalgum jeito a repercussão da leitura anual em relação com a divulgação das pessoas e das suas obras.
Até que ponto achas que é influente reparar em que nom há qualquer problema na Galiza para a compreensom dum texto escrito no Brasil?
É imprescindível. Roubar às pessoas galegas a ortografia comum dos espaços nos que a sua língua é também veículo de conhecimento, relacionamentos, criação cultural… é amputar o nosso corpo social. A “desalbetização” não é apenas carência, mas também inversão que deixa ao coletivo de pessoas galegas sembraços para interagir com o mundo, para trabalhar no mundo, para acariciar o mundo. O nosso é um dos casos mais graves e deploráveis de ataque à construção cultural e utilitária de gerações e gerações, um ataque que começou no último quartel do século XIII e foi em crescendo, que continua com mais e mais força e com resultados extremadamente alarmantes nos últimos tempos. É uma ação agressiva, especialmente grave no nosso caso, porque temos uma comunidade distribuída por cinco continentes, de uma riqueza indescritível, da que somos privadas.
Agora, reparar não significa ter caminhos para reverter a situação, significa para nós assumir ou não o compromisso de criar caminhos, e não culpabilizo a quem decide não criar, porque é uma aposta de vida, um empenho que pode valer a pena, mas que condiciona tudo, não necessariamente de jeito negativo -e até diria que muito positivo- mas condiciona e implica muito esforço se assumido de jeito individual ou por pequenos grupos.
As comunidades, de jeito natural, econômico –no sentido original da palavra-, aproveitam todas as ferramentas à hora de fomentar e preservar as vias mais eficientes para obter o máximo êxito na sua continuidade no mundo, sendo a comunicação uma das funções e das condições da sobrevivência das pessoas que fazem parte delas. Privar uma comunidade desse triunfo é uma agressão grave e premeditada, habitualmente aplicada de jeito lento e contundente e mesmo com a colaboração implícita ou explícita de muitas das vítimas -como aconteceem todasas agressõessociais-.Reparar tem de significar agir, movimentar-se, “despertar do sono” e trabalhar de jeito coletivo para promover a riqueza cultural, social, emocional e vivencial à que temos direito.
Quais seriam, do teu ponto de vista, as áreas alvo em que trabalhar para construirmos caminhos de ida e volta entre a Galiza e a Lusofonia?
Os caminhos de ida são bem simples. Apenas necessitamos derrubar as barreiras, a partir desse ponto, tudo é natural.
Derrubar as barreiras é alfabetizar às crianças na língua própria do nosso espaço. Abrir as portas do mundo, da nossa herança rica, elaborada por todas as pessoas das que vimos, aquelas que deixaram os seus corpos no nosso húmus e às que devemos respeito e lealdade. Derrubar as barreiras é abrir os olhos para nós e para o nosso imaginário, assumir o nosso compromisso connosco como individualidades e como elos transmissores.
As barreiras abolidas, permitem encontros com o mundo, com todos os mundos, interesses, relacionamentos: é uma oportunidade maravilhosa, mesmo para valorizar outras línguas, outros espaços culturais, outras perspetivas, porque o plurilinguismo individual é uma riqueza que se aprende também no caminho que abrem essas barreiras derrubadas, enquanto o plurilinguismo social é uma impossibilidade que ou é utilizada como ferramenta para ocultar as tentativas da substituição linguística,ou para criar psicoses coletivas.
Como derrubar essas barreiras? Simplesmente procurando que os livros, as músicas, os filmes, os desportos, as aplicações digitais,as novidades científicas, as agrícolas… na língua comum cheguem também do Brasil, de Portugal, dos PALOPs, de Timor-Leste… e que se promova a sua difusão de um jeito natural.
Agora mesmo estou em Lisboa, num programa de Doutoramento do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova e a Universidade Aberta, estou com pessoas que falam a minha língua e que chegam desde diferentes lugares do mundo. Não sou diferente: apreendemos, rimos, conversamos… compartilhamos, e a partilha desta galega não é menor, porque quando derrubamos as barreiras, a descoberta é que isso não significa apenas um compromisso connosco, também com as outras comunidades às que tanto, tanto temos de aportar e das que tantotemos deaprender.Se habitamos um espaço com apertura a um oceano que comunica com outros oceanos, não é para perder as nossas oportunidades.
A AGAL já tinha organizado uma primeira leitura continuada do Scórpio de Carvalho, depois do Ensaio sobre a cegueira de Saramago, e esta última da República dos Sonhos de Nélida Piñon, que outras obras sugeririas para serem lidas deste jeito?
Acho que é imprescindível ir para a África e temos no grande e querido continente muitas vozes abaladoras, vozes femininas e masculinas, emergentes e consolidadas.
Se tivermos de escolher prosa, se tivermos de escolher alguém que já não é connosco… se me deixam sugerir… que tal Orlanda Amarilis e os seus contos de Cais-do Sodré té Salamansa, Ilhéu dos Pássaros, A Casa dos Mastros e ainda os seus livros para crianças: Folha a folha (com Maria Alberta Menéres), Facécias e Peripécias e A Tartaruguinha, que podem dar um espaço para a leitura infantil? É uma ideia. Mas todas são bem-vindas, muito bem-vindas, porque cada palavra é uma oportunidade de convívio.