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Henrique Egea: “Ainda não desenvolvemos uma historiografia geral centrada no nosso percurso histórico”

A Através Editora acaba de publicar um novo ensaio histórico, As histórias que nos cont(ar)am na Galiza e… em Portugal, um trabalho que analisa o viés historiográfico e trata de oferecer um outro relato, centrado na realidade galega, útil para rever o que fomos e o que somos.

Falamos com o autor, Henrique Egea Lapina, quem contribuiu nas coletáneas 40 datas que zeram a História da Galiza (Através, 2019) e Todas mortas e (quase) esquecidas (Através, 2020), e publicou em solitário, Remover Roma por Santiago (Igalhis, 2022).

Na contracapa do livro lemos a seguinte informação A historiografia está feita por pessoas com ideologia e contextos que forçam a determinadas escolhas. Não existe a historiografia neutral. Assim sendo, toda a análise histórica está alimentada pela subjetividade.

Em maior ou menor grau todos os que contam uma história interpretam os factos. Mesmo as testemunhas presenciais dum acidente, por exemplo, dão versões diversas provocadas pola sua ótica (o ponto de vista físico) mas também polo seu corpo de valores sociais, morais, religiosos, polo relacionamento com os participantes do facto… etc. O ideal na historiografia seria os historiógrafos serem o menos parciais possíveis, procurar o equilíbrio e, no caso de existirem, os diversos pontos de vista possíveis.

O problema surge quando o historiógrafo se serve da história para criar um relato conveniente ou ideologicamente marcado sem ter em conta as fontes. Na historiografia espanhola e portuguesa essa posição é a padrão. Os historiógrafos espanhóis a maior glória de Espanha, que nasceu segundo eles em Castela, e de Deus, modificam e manipulam as fontes sem qualquer ética, criando mesmo um reino, construindo uma realidade paralela adaptada aos interesses políticos do sistema. E no processo apagam tudo quanto poda resultar um inconveniente para esse relato falso.

O mais preocupante é como esse relato tem penetrado na sociedade, através do ensino, da literatura, do cinema, até o ponto de se tornar subversiva e escandalosa qualquer opinião que a contradiga. Os insultos que recebemos nas redes, os que negamos a “definitiva união de Espanha com o matrimónio dos Reis Católicos”, facto que os mesmos historiógrafos espanhóis admitem sem grande dificuldade, são constantes e mesmo vindo de Portugal. A mentira singela é mais fácil de digerir do que uma verdade incómoda. Por isso há tanto católico!

No caso de contextos periféricos como o galego, uma sociedade sem Estado próprio, existe uma dança de perspetivas que, à partida, poderia gerar debates fecundos. Aconteceu, ou acontece assim?

Acho que até agora as perspetivas estão capitalizadas pelo meio académico que assume de modo absoluto o discurso dominante dos Estados espanhol e português, não apenas na historiografia. Sobre essa parcialidade falo no capítulo dedicado a “O nome do Reino”.

Os historiógrafos galegos, com perspetiva não espanhola, centrados na perspetiva galega, são (ou somos) apenas franco-atiradores com perspetiva própria, um grupo mínimo que se dedica a ressaltar certos aspetos, aqui e acolá. Ainda não desenvolvemos uma historiografia geral centrada no nosso percurso histórico e no nosso discurso historiográfico. 

Estamos ocupados em “desmontar” o discurso oficial das academias espanholas e, também da portuguesa, absolutamente reticente a reconhecer sequer a existência duma realidade originária comum no e a norte das suas fronteiras. Esses discursos levam mais de 150 anos criando um relato falso e parcial onde os dados históricos têm menos a ver com a verdade, mesmo subjetiva, do que com um plano para apagar o rasto deste país que chamamos Galiza na origem de ambos os estados peninsulares. 

Levam mais de 150 anos criando um relato falso e parcial onde os dados históricos têm menos a ver com a verdade, mesmo subjetiva, do que com um plano para apagar o rasto deste país que chamamos Galiza na origem de ambos os estados peninsulares. 

Além disso, os autores que optamos por esta perspetiva galega, estamos nas margens do sistema académico porque não somos, nem, quiçá, poderíamos ser, pessoal investigador numa universidade e, com frequência, somos professores de secundária, mesmo, de especialidades diferentes à historiografia, como no meu caso. A atitude clássica dos “especialistas” é ignorar os contributos alheios ao sistema e, com isso, o diálogo, o debate, revela-se impossível.

O papel da pessoa que história está condicionado pelas fontes. Neste sentido, há momentos mais obscuros e outros mais fáceis de iluminar. Ora, as fontes não são finitas, regularmente surgem descobertas. Que podemos esperar a este respeito?

Com respeito ao condicionamento provocado polas fontes insisto no dito antes. O professorado universitário e a maioria dos licenciados nesta matéria, nomeadamente em História Antiga e Medieval, está treinado ou condicionado a não usar as fontes, primeiro porque a sua formação em latim é escassa e isto leva-os a acreditar nas “traduções”. Segundo, porque não é conveniente modificar o discurso instalado no sistema educativo e social. Em suma, prescindem das fontes ou usam fontes parciais que não permitem questionar o status quo  ou, ainda pior, quando a fonte não condiz com o estabelecido, ignoram-na. Falar do Reino da Gallaecia e não do das Astúrias pode ser fonte de incomodidades quando não de reconvenções. 

Quanto à possibilidade de acharmos novas fontes é muito provável para o período medieval e mesmo posterior. O corpo de documentação medieval galego está disperso em arquivos privados, eclesiásticos e nobiliários, normalmente fora da Galiza e com acesso restringido aos investigadores oficiais, isto é, com cartão e apoio institucional, os mesmos que assumem as restrições conceituais de que falamos antes. A documentação monacal conservada (que sofreu ingentes perdas) fica em arquivos localizados em Simancas ou em Madri, mesmo no Vaticano (lembre-se a descoberta das Cantigas) e para poder consultá-los, além das permissões, necessita-se de muito tempo e capital. 

Ler documentação medieval é um processo lento e nem sempre rende frutos. A publicação e, especialmente, a digitalização de fontes é a grande esperança. De facto, as bibliotecas de diversas universidades de diferentes países permitem consultar textos que doutro modo seriam inacessíveis por serem livros muito antigos e mesmo manuscritos. Mas também é possível impor restrições ao acesso aos documentos digitalizados. Por exemplo, o CODOLGA (Corpus Documentale Latinum Gallaeciae), do Instituto Ramón Piñeiro, financiado com dinheiro público, permite procuras por termos, por vocábulos, mas não é possível consultar documentos completos. Isto é um método de restringir o acesso e de controlo do que se pode saber, porque não se pode procurar o que não sabemos que existe… e mesmo sabendo há que dar com as palavras certas.

O primeiro capítulo foca a presença, ou não, dos fenícios nas costas galegas. Porque escolheste este item para iniciar o livro?

Primeiramente por cronologia. É um momento prévio ao processo de integração no Império Romano que costuma ser o primeiro “momento” tratado nos textos sobre a proto-história. Isto é assim porque é um dos mais documentados. Mas há momentos interessantes muito antes, como o megalitismo. Infelizmente quase tudo o que se pode dizer deles é altamente especulativo. 

Outro período interessante na nossa pré-história é a cultura céltica castreja, mas esse assunto levaria um volume inteiro para elucidar determinados aspetos como o controvertido celtismo dos castrejos (do que eu estou convicto) e outros com que não estou especialmente familiarizado. O publicado sobre a cultura castreja tem tal volume que levaria anos preparar uma análise abrangente e crítica. 

Quanto aos cana’ani, como considero que deveriam ser denominados os fenícios, púnicos e gaditanos, pois eram uma continuidade cultural (parece que recentes dados genéticos não permitem estabelecer continuidade genética)… respeito deles, digo, era tal a unanimidade académica em negar a sua presença ou mesmo relação com a futura Gallaecia e tão evidentes os restos arqueológicos que os acreditam (antes descartados por inconsistentes com a teoria oficial), que me serviu para exemplificar a preconceituosa atitude do modelo académico galego, profundamente colonizado ao ponto de assumir acriticamente a descrição desta terra como um lugar remoto e ignoto aonde nem os cana’anis, que têm fama de ter dado a volta à África, teriam chegado.

Por outra parte é um claro exemplo duma tese, adquirida da interação com o meu colega Alberto Lago, que estabelece que os dados (os restos arqueológicos, neste caso) carecem de significado sem uma hipótese que os explique. Se aplicamos o preconceito de os cana’anis não terem estado aqui nunca, é absurdo reconhecer como púnicos os restos arqueológicos de olaria púnica achados durante anos em castros de toda a costa noroeste. Esse foi o motivo de ter começado o livro por eles.

Se tomarmos nas mãos um livro de história para a ESO, a romanização ganha sempre um tom laudatório. No teu livro relativizas esta atitude. 

Relativizo, mesmo a critico. Sem negar que Roma foi um marco histórico porque controlou o poder, a guerra e o discurso durante mais de 600 anos, pretendo fazer pensar como foi o passado. 

Roma… os romanos, não vinheram “civilizar” ninguém. Não o podiam fazer no oriente, onde os gregos, persas, sírios ou egípcios eram mais civilizados do que eles. Mas tampouco vinheram civilizar o ocidente. Os romanos copiavam e levavam às suas últimas consequências os inventos e capacidades dos seus vizinhos vencidos. Tomaram dos Etruscos o arco de meio ponto e a canalização das águas (fecais ou bebíveis), apreenderam dos celtas a construção de carros de todo o tipo; imitaram dos púnicos a construção naval; as famosas quadrículas urbanas, com o seu cardus e decumanus, apreenderam-nas dos gregos (o chamado plano hipodâmico) e estes dos persas; o armamento defensivo e ofensivo foi adaptação doutras culturas, primeiro samnitas e campanianos, depois adotaram dos celtas a cota de malha, o “scutum” e o capacete montefortino, dos hispanos o “gladium” (nome céltico para a espada) e o pilum (imitação e melhora do soliferrum hispânico)… Os caminhos não os inventaram eles, apenas forammelhorados como meio de locomoção rápida das suas tropas… As técnicas agrícolas herdaram-nas dos púnicos ainda que os livros sobre o assunto desaparecessem… e assim por diante.

Os romanos copiavam e levavam às suas últimas consequências os inventos e capacidades dos seus vizinhos vencidos.

O discurso predominante na nossa cultura ocidental de que os romanos eram “a civilização” e os demais “a barbárie”, ainda que a maioria de nós sejamos descendentes desses bárbaros, provoca duas causas fundamentais. 

A primeira é que eles venceram todos (ou quase) e, portanto, escreveram a história e, segundo, que ao escreverem converteram-se com frequência no primeiro referente sobre os mais diversos artifícios e inventos. Como são os primeiros em escrever de minaria, maquinaria hidráulica ou qualquer outro item, acreditamos, ingenuamente (?), que eles inventaram tudo quanto descrevem. Falso! A grande vantagem dos romanos sobre as demais culturas (por não dizer civilizações) é que monoplizaram o discurso histórico e acabaram com as provas de qualquer origem prévia (os sucessivos incêndios da biblioteca de Alexandria não foram casuais).

Este discurso dos ocidentais modernos, desde o século XVIII até hoje, é a justificação da atividade colonizadora da nossa “civilização” ocidental sobre os demais povos do mundo, desde América Latina a África ou Oriente. E mesmo no contexto europeu. Por isso reivindico uma pré-Gallaecia com uma cultura própria que pouco deve ao efeito “civilizador” dos romanos cujo modelo estava assentado na conquista, na escravização e no espólio… atitudes que qualquer bem-nascido atual rejeitaria e que, no caso romano, tomamos como exemplo do capitalismo selvagem.

O nome do Reino localizado no noroeste da Península Ibérica foi abordado por vários autores e autoras. Neste caso as fontes não deixam muito espaço para as dúvidas.

Certo. O reino norocidental cristão da P. Ibérica durante a Idade Média, insistentemente chamado das Astúrias pola historiografia oficial, nunca se chamou assim, nem polos alheios, nem polos próprios. Mas esse discurso continua a repetir-se ignorando as evidências assinaladas há tempos. De facto, é o único e dominante, exceto em autores marginais considerados “nacionalistas periféricos” por parte da Academia. Por mais que este aspeto já fosse tratado antes, continua a ser uma luta ativa e, por agora, não podemos dizer que tenhamos feito mossa na historiografia oficial.

Uma parte importante do livro, dividida em dois capítulos, é O regnum Gallaeciae e a secessão de Portugal. A este respeito, a cisão de Portugal, quais são as ideias-força na historiografia portuguesa?

A historiografia portuguesa ignora olimpicamente a existência do reino da Gallaecia. Qualquer texto histórico surgido da “academia” portuguesa ou espanhola continua a falar do reino de Leão. Essa “confusão”, propositada, facilita a justificação, implícita a partir dos fatos culturais modernos, de que Portugal tinha uma personalidade própria, mesmo antes de se transformar num reino. Parece evidente, se tivermos em conta que, agora, Leão fala “espanhol” e Lisboa “português”. As diferenças atribuem-lhas há muito tempo, já no tempo de Garcia (rei de 1065 a 1072) a confrontação com a nobreza “portuguesa” (em realidade de Porto-Cale, condado entre Minho e Douro) ou a “autonomia” de Sesnando Davides em Coimbra, são para eles prova mais do que suficiente da “personalidade” própria do futuro reino. Eu, no segundo destes capítulos, refuto essa pré-existência do corpo social e da conceção diferenciada do futuro Portugal. 

A motivação profunda da segregação de Portugal da Galécia é de tipo religioso, ou para melhor dizer, de hierarquia religiosa, que nem a historiografia portuguesa, nem espanhola (incluindo nela a de autores da Galiza), trata nem como coadjuvante. Foi o medo de Roma a ser contestada no noroeste peninsular o que a empurrou a confrontar Compostela (cedo controlada polos pró-romanos, personificados em Gelmires) com Braga e esta com Toledo. É um processo longo e cheio de vicissitudes em que os famosos condes Henrique de Borgonha e Raimundo, da outra Borgonha, são apenas “peões” no tabuleiro da política, nomeadamente eclesiástica, do ocidente.

Um dos géneros cinematográficos com maior adesão é o épico-histórico. Em que medida a pugna entre Roma e Compostela poderia inspirar uma peça cinematográfica? Haveria conteúdos suficientes para nutrir o argumento?

Há conteúdos a mais. E esse creio que seria o problema para fazer desta pugna um filme. A cinematografia tende a simplificar os conflitos para facilitar a compreensão do espetador. Assim estamos habituados ao modelo de cinema estado-unidense. Argumentos simples, com bons e maus bem definidos, e com uma resolução reconfortante. Não seria fácil, na minha opinião, reduzir um conflito tão subtil e cheio de matizes a um argumento linear. Acho que seria mais apropriado para uma série porque esse género permite muitos momentos de clímax e anticlímax, numerosos personagens e aparições e desaparições destes.

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