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Ernesto V. Souza: «’A Sentimental Nation’ é um contributo fundamental, indiscutível, uma labaçada na consciência crítica e académica que destaca o abismo e abre também caminhos»

L’historiographie, une polémologie. L’historiographie relève de l’art de la guerre. Pas étonnant, dès lors, qu’alentour règne l’ambiance des secrets-défense. La discipline participe donc de la polémologie: comment envisager le combat, mesurer les rapports de force, mettre au point une stratégie, une tactique pour y parvenir, gérer les informations, taire, passer sous silence, souligner l’évidence, feindre, et tout ce qui suppose des affrontements à même de déterminer vainqueur et vaincu ? L’histoire est faible avec les gagnants et sans pitié à l’égard des perdants. Michel Onfray, 2006

Galicia, a sentimental nationEm 12, 15,29 de março de 2012 decorreu uma polémica em El País Galicia com Helena Miguélez-Carballeira e Pilar Garcia Negro como protagonistas e a respeito do papel de Ricardo Carvalho Calero na configuração do Cânone Literário da nossa literatura, e da interpretação que havia que dar ao simbolismo discursivo de ostentoso machismo que percorre a obra literária e critica do ferrolano, bem como o silêncio a este respeito da parte da crítica e da crítica feminista. Evidenciou-se não apenas um interessante choque de perspetivas geracionais, quanto que, nas margens da argumentação, fluíam notas e perspetivas que destacavam que a crítica que movia Miguélez-Carballeira se sustentava sobre um poderoso aparato crítico e também sobre uma demorada leitura da obra e contexto do autor em questão.

Adorei e apontei. O mais óbvio é por vezes o menos evidente, dizia E. W. Said, qual Sherlock Holmes da crítica, no seu Orientalismo, especialmente quando nos encontramos – como é o caso – num contexto de emergência/subordinação e ambivalência múltipla, tanta como os interesses e carreiras em jogo. Está-se por estudar ainda, na História da Literatura e da cultura, o papel não apenas de Carvalho, quanto de Galáxia, como peneira poderosa, reconstrução e reinterpretação condicionante da história, da política, do sentido da cultura e a literatura da Galiza, para as encaixar no seu programa político, estético e ideológico. Peneira que fixou não apenas a interpretação como também limites do corpus analisável, os itens a destaque e ainda a cronologia canónica dos factos e a importância ou marginalidade de projetos, personagens e obras.

A responsabilidade desta imensa canonização ao jeito do mesmíssimo Paulo de Tarso – cujas repercussões ainda agora começam a ser percebidas e analisadas – cabe aos integrantes do grupo Galáxia e aos círculos e grupos que, relacionados ou concorrendo com ele pelo campo cultural do interior do franquismo, se movimentavam nas instituições, média, plataformas culturais e folclóricas galegas. De qualquer modo, e como aponta a professora da Universidade de Bangor, o tabu do machismo, integrado ou separado no conservadorismo estético e ideológico, permanece oculto doutros tabus identitários e políticos (entre eles, e como manifestação, a norma ortográfica).

Com este contexto aparece um ensaio nas coordenadas da crítica feminista da História da Literatura e crítica pós-colonialista, que entre outros temas dedicava um capítulo inteiro à análise do feminino na obra de Ricardo Carvalho Calero, e umas referências muito elogiosas no seu blogue da também investigadora crítica da USC e professora Maria do Cebreiro Rábade. Evidentemente, encomendei o volume.

Contra o que esperava, a obra que chegou às minhas mãos não era uma tese-calhamaço ao estilo hispânico mas um volume de umas 255 páginas (220 de texto e o resto em notas, bibliografia e índices), capa dura, impresso no pragmático e impecável estilo das modernas tipografias universitárias anglo-saxónicas.

A capa e a cor eram jeitosas, o corpo e tamanho da letra adequado, o espaçamento legível, o estilo académico, didático, rigoroso e fluente. A sua leitura, lápis na mão, verificou-se certamente elucidativa, proveitosa, como não lembrava desde as leituras de González-Millán, a que recordava, ou de Anton Capelán. Deixou-me também uma sensação bastante abaladora, pois evidenciou a negação não apenas no conjunto da crítica mas também na minha própria obra e na perspetiva apreendida “das grandes ausentes” e da importância central “do outro tema”.

O volume está dividido, após os sempre reveladores agradecimentos e apresentações, numa introdução, um posfácio e cinco capítulos com notas, índices e rica bibliografia, com os quais se pretende analisar as fases mais importantes, ou momentos, da dialética colonial de uma perspetiva interdisciplinar, entre a crítica literária e a história político-cultural.

A introdução centra a tese na advertência dos estereótipos, na pesquisa do relacionamento entre a feminização, a vacuidade, a brêtema e a tentativa de definir a Galiza e as suas potencialidades políticas em paralelo ao processo de invenção nacional da Espanha. Entorno ao debate sobre o Celtismo, emergem e vão-se forjando os estereótipos desarmantes na visão típica dos colonialistas: lirismo, feminização, passividade e desorganização que são transformados em idealismo, folclorismo, costumbrismo, bucolismo, arcaísmos de natureza paralisante. Mostra-se como se vai configurando o discurso, como se retificam, incorporam, suprimem elementos do corpus, dentro do debate entre um nacionalismo emergente e um nacionalismo de estado, dentro das premissas do colonizado-colonialismo, e fixando o sentido de muitos dos discursos (de alto impacto mesmo nos contrários) como mímesis, ou possibilismo folclorista tolerado em troca de estabilidade e beneficio/proveito de uma sub-elite regionalizante de discurso ambivalente.

O primeiro capítulo examina os escritos de Augusto González Besada, tanto as suas pioneiras notas de História Literária quanto o papel e sentido do seu discurso de ingresso na RAE em ano tão fundamental como 1916. Destaca-se neles o discurso do “regionalismo instrumental” e a tentativa de anulação de conflito, no momento emergente do catalanismo e com o exemplo da abnegada Galiza-mulher, simbolizada em Rosalia de Castro.

O segundo capítulo analisa os trabalhos de Eugenio Carré Aldao, a sua achega também sobre Rosalia de Castro e a função nobilitadora dos textos críticos e narrativos que escreveu entre 1919 e 1925, todos com o destacado caráter programático da Escola Crunhesa, para construir também um modelo nacional de moralidade exemplarizante da mulher galega.

O terceiro analisa a viragem política do nacionalismo galego em 1916-1936 como uma narrativa em progresso de masculinização desenhada como réplica às metáforas feminizantes vigentes no regionalismo e no centralismo espanhol e como, em contraste, a função principal da obra do autor do Diccionario bio-bibliográfico de escritores, Antonio Couceiro Freijomil (1951–54) era a de restaurar durante a ditadura os discursos coloniais da pré-guerra.

O Capítulo IV debruça-se sobre a obra e a figura do “pai fundador” da história literária galega nacionalista, Ricardo Carvalho Calero, e examina os seus textos críticos, poéticos e narrativos, trespassado por uma problemática de género.

O Capítulo V ocupa-se de alguns exemplos de textos contemporâneos de história literária, de obliteração da criação e experiencia feminina de crítica e escrita, dos discursos mais recentes relativos à nação, como aqueles que aparecem na herança ideológica do piñeirismo, e os discursos contemporâneos em torno à normalização cultural.

Deixar a Nação reduzida a coordenadas sentimentais,
tem normalmente, funções desarmantes do discurso e do conflito

O peso da questão e debate estabelece-se arredor do feminino (com uma bem presente Rosalia de Castro, no seu papel antonomásico de símbolo da nação mulher) e do processo de reclamação, matização, reformulação, refutação ou negação da nação, acorde com os tempos, função e sentido em cada momento, da sentimentalidade, desde a sua aparição nas primeiras análises historiográficas até ao presente, e desenvolvido de forma cronológica, através de pequenos ensaios gizados, mas muito bem construídos, como inteiras sequências cinematográficas, efetivamente engrenadas umas com outras, através de uma conclusio parcial e reiteratio discursiva, que complementam adequadamente a introdução e o epílogo.

A forma define o fundo e o fundo alimenta a análise do tropo que estrutura cronologicamente o ensaio. A escola académica anglo-saxónica, o estilo cuidado e medido, e a repartição eficaz do conteúdo em unidades previamente apresentadas, sequenciadas e concluídas, o impressionante corpus teórico empregado, as leituras sobre nação e imperialismo, e a capacidade de leitura direita e interpretação própria, sobre textos da nossa tradição, dota o texto não apenas de um discurso convincente, quanto de uma voz marcadamente independente e muito periférica, que lembra na sua marcante centralidade á de González-Millán, da crítica galega que navega na sua maioria no ronsel e fronteiras da Espanha.

Se, como expõe a autora, desde Renan, a nacionalidade estriba, não em pouca medida, no apelo à sentimentalidade, deixar a Nação reduzida a coordenadas sentimentais, tem normalmente, e como bem destacou a crítica sarcástica de Fanon, funções desarmantes do discurso e do conflito, “normalizadoras” ou “possibilistas”. Deste jeito, o conceito de Nação sentimental, gerado nos estudos anglo-saxónicos tanto sobre o colonialismo interior (periferias Célticas) quanto as do grande imperialismo assimilador a respeito dos países da Commonwealth, tem a ver com os epocais de “pátria chica” ou de “regionalismo sano y bien entendido”.

Com efeito, dum ponto de vista prático, a história e o seu sub-género, a história da literatura, são umas outras narrativas e como tal devem ser analisadas. A análise de como se vão incorporando, retirando, configurando e re-configurando elementos, peças, tropos, valores, contextos, aparatos críticos e perspetivas confere grande solidez à argumentação.

A Sentimental Nation propõe, nestas coordenadas uma perspetiva rigorosa. Isola um tópico: a função do tropo feminino dentro dos debates na construção e negação da narrativa nacional e através de uma série de sondagens na centralidade do discurso entre fins do século XIX e até quase aos nossos dias, analisa o desenvolvimento e uso simbólico da associação do tropo e campo semântico do feminino no campo e debate do nacional.

Este tropo, criado com uma funcionalidade diferenciadora, vai confluindo – com muitos outros elementos – na propositada estereotipificação ou dissolução, no sentimental e foclórico, no primitivo, associado ao feminino, ao menor, ao impossível, ao ultrapassado, ou incivilizado por parte da crítica de estado e das suas redes e ferramentas, acompanhando os processos de confusão e perda de força na reivindicação e na construção de um discurso e uma cultura nacional de coordenadas próprias.

Galiza, um povo sentimentalAbrindo o campo na metodologia do pós-colonialismo e o feminismo, analisa-se tendo em conta a mímesis e a ambivalência gizadas por Bhabha, a evolução do tropo e destaca-se, segundo se vai configurando no tempo, o debate dos campos concorrentes, os diálogos, explícitos e implícitos, as réplicas, interferências, as ambivalências criadas e conservadas. Deste jeito destacam as análises sobre as obras pioneiras de Augusto G. Besada e Couceiro Freijomil na linha folclorizante e desarmante de conflito e o diálogo que estabelecem, interferindo com as da geração de Carré Aldao e a das Irmandades de alento nacionalista e “masculinizante”. Destacam nesse contraste as luzes e sombras da particular restauração acometida pela geração de Carvalho e Piñeiro, e a persistência no hoje e na depreciação e obsessão por desarmar ou evitar o “conflito” as vozes e contributos “estridentes” “inadequados”, tão presentes, talvez mais que em nenhuma outra parte na literatura e na crítica feita por mulheres.

A dupla análise, nação e género, permite situar mais claramente os sentidos dos contributos, servindo a questão genérica para balizar na cronologia contextual, a elaboração das grandes alegorias, como se vai desenvolvendo na luta de ideias, grupos e capitais, os discursos, do permitido, do tolerado, do subversivo, e como entre eles interatuam dentro do possível e o impossível na narrativa da nação.

A Sentimental nation é um contributo fundamental, indiscutível, uma labaçada na consciência crítica e académica que destaca o abismo e abre também caminhos, que convida a questionar-se a História, a Língua, as Artes…: a imagem e sentido dos cânones estabelecidos sobre preconceitos tão opressivamente patriarcalistas como redutoramente colonialistas.

É um trabalho que merece uma tradução cuidada e a integração num projeto editorial que conferisse ainda maior força à mensagem para a levar perante o público para que realmente foi escrito.

  • Galicia, A Sentimental Nation: Gender, Culture and Politics.  Helena Miguélez-Carballeira (University of Wales Press, 2013).
  • Galiza, um povo sentimental? Género, política e cultura no imaginário nacional galego. Helena Miguélez-Carballeira (Através Editora, 2014)

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