Derradeiro dia em Barcelona. Comecei-no, com muitas saudades, passeando por algumas ruas que formam parte de uma parte da minha infância. Pois é: estão presentes, mas não na sua totalidade, só nalguns fragmentos mais ou menos conexos.
Anos depois da última estadia, custa-me reconhecer muitos lugares que eram comuns. A peonalização avançou tanto que transformou por inteiro a fisonomia de alguns bairros. Algum deles até reviveu graças a um processo que inicialmente fora deostado.
«Antes só passavam por aqui os carros; carros e carros. Agora, a gente detém-se, faz vida. Não apenas a rua, mas todo o bairro está mais vivo agora», comenta um vizinho do bairro de El Clot, cliente frequente de ‘A Ruta Gallega’ [sic], um bar que poderíamos chamar «dos de toda a vida».
Com efeito, antes da peonalização, El Clot era um «bairro decadente», afirma veementemente a proprietária da confeitaria La Palma. «Houvo muitos protestos, mas triunfou a peonalização e acho que agora todo o mundo vê que foi uma boa decisão».
Na Galiza, apesar da experiência sucedida de Ponte Vedra, em boa medida graças ao empenho do alcaide Lores, a peonalização continua a criar controvérsia quando é projetada noutras localidades. «Tu faz muitas fotos e amostra-as quando voltares lá», indica-me uma senhora mais veemente ainda enquanto me segura um braço e estende para o ar o dedo indicador da outra mão.
Vou de El Clot cara à praia, atravessando El Poblenou, e vou comprovando os efeitos da peonalização. Concertos na rua, crianças a brincar, gente sentada a conversar… Mesmo dou com uma rotunda peonalizada: os veículos circulam ao redor, sim, mas o interior é mesmamente uma praça, até com alguns bancos para gente sentar!
PS: El Poblenou é, sem hesitar, o «bairro das arquiteturas impossíveis»!
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De tarde, as minhas derradeiras três horas antes de pegar o avião de regresso dedico-as a gaudir Gaudí, isto é, «desfrutar Gaudí». Antoni Gaudí i Cornet (1852-1926) foi um génio da arquitetura. O magnífico Gaudí Exhibition Centre – Museu Diocesà, que forma parte do mesmo complexo que a catedral de barcelona, é um ótimo lugar para conhecer melhor a obra do autor modernista.
A visita ao museu está estruturada em várias etapas. A primeira, um vídeo introdutório sobre o contexto artístico de Gaudí. A segunda, um percurso sobre as influências que determinariam o seu estilo artístico: a arte religiosa —de um lado— e o catalanismo —do outro—. A terceira parte é uma aproximação das inovações técnicas de Gaudí —por exemplo, foi pioneiro na aplicação das possibilidades da fotografia—. Já a quarta, permite conhecer mais de perto algumas das suas soluções arquitetónicas e como a elas chegou.
Para mim foi particularmente impactante a maquete polifunicular, sem a qual não seria sido possível erguer obras como a Sagrada Família e as suas formas impossíveis. Para calcular com precisão como erguer as torres, desenvolveu este sistema, em que uns saquinhos com pesos deformam umas cordas. Depois, invertendo a maqueta, Gaudí realizava os cálculos necessários sobre um plano convencional para eregir as estruturas.
Tão interessante quanto a sua faceta artística é a política, se bem esta aparece demasiado difuminada na exposição, apenas com a menção genérica ao compromisso com o catalanismo. Sem mais. Mas já estou para emendar isso!
A melhor descrição do compromisso político do Gaudí foi um facto que tivo lugar dous anos antes da sua morte. Com motivo do Dia Nacional da Catalunha de 1924, 11 de setembro, a ditadura de Primo de Rivera proibiu quaisquer celebrações políticas. Gaudí, que na altura tinha 72 anos, acabou detido quando acudir para participar num ato político-religioso numa igreja. À porta mesma do templo, a polícia impediu-lhe a entrada e, ante os seus protestos, acabou sendo detido e conduzido à esquadra, donde sairia após pagar uma coima.
Segundo Joan Crexell, o arquivo histórico de Barcelona contém documentos que narram como foi a detenção de Gaudí e do vexame que sofreu na esquadra.
— [Em castelhano] Como se chama você?
— [Em catalão] Antoni Gaudí.
— Que anos tem?
— 71 anos.
— Qual profissão?
— Arquiteto.
— Pois a sua profissão obriga você a falar em castelhano…
— A profissão de arquiteto obriga-me a pagar impostos e já o faço, mas não a abandonar a minha língua.