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Celebrar com Castelão as Letras Galegas (Filme: ‘O Pai de Miguelinho’)

Fotografia de Castelão
Fotografia de Castelão

Vou dedicar à Semana das Letras Galegas dois depoimentos da minha série “As Aulas no Cinema”, com o fim de que, nos estabelecimentos de ensino dos diferentes níveis, se organizem atividades educativo-didáticas durante estas datas de maio, e se promova a vida e obra de Manuel Maria e de outro dos nossos vultos insignes, como foi Castelão. Num segundo depoimento a seguir na próxima semana tocarei o tema do cinema galego, com uma aproximação a uma filmografia básica.

Castelão publicou em 1929 um lindo livro sob o título de Cousas, em que se inclui um belo relato sobre a emigração galega com o título de “O pai de Miguelinho”. O ourensano Miguel Castelo realizou em 1977 uma curta-metragem sobre este relato, muito recomendável para ser projetado aos escolares desde infantil até secundária. O relato de Castelão é muito formoso, pelo que tenho a bem reproduzi-lo aqui:

'O Pai de Miguelinho', desenho de Castelão
‘O Pai de Miguelinho’, desenho de Castelão

“O pai de Miguelinho chegava das Américas e o rapaz não cabia de gozo no seu trajo festeiro. Miguelinho sabia com os olhos fechados como era seu pai; embora antes de sair da casa deitou-lhe uma olhada ao retrato.

Os “americanos” já estavam desembarcando. Miguelinho e a sua mãe aguardavam no peirão do porto. O coração do rapaz batia-lhe na tabela do peito e os seus olhos esculcavam nas greias, na procura do pai ensonhado.

De súpeto avistou-no de longe. Era o mesmo do retrato ou ainda melhor portado, e Miguelinho sentiu por ele um grande amor e quanto mais se achegava o “americano”, mais cobiça sentia o rapaz por enchê-lo de beijos. Ai!, o “americano” passou de largo sem olhar para ninguém, e Miguelinho deixou de quere-lo.

Agora sim, agora sim que o era. Miguelinho avistou outro homem muito bem trajado e o coração dava-lhe que aquele era seu pai. O rapaz devecia-se por beijá-lo a fartar. Tinha um porte de tanto senhorio! Ai!, o “americano” passou de largo e nem tão sequera reparou que o seguiam os olhos angurentos dum menino.

Miguelinho escolheu assim muitos pais que não o eram e a todos quis loucamente.

E quando esculcava com mais angúria, fez-se cargo de que um homem estava abraçando a sua mãe. Era um homem que não se parecia ao do retrato; um homem muito fraco, metido num trajo muito frouxo; um homem de cera, com as orelhas fora do cacho, com os olhos encoveirados, tossindo…

Aquele sim que era o pai de miguelinho.”

FICHA TÉCNICA DA CURTAMETRAGEM:

  • Fotograma do filme
    Fotograma do filme

    Título original: O pai de Miguelinho.

  • Diretor: Miguel Castelo (Galiza, 1977, 11 min., cor).
  • Roteiro: Miguel Castelo, segundo o relato do mesmo título do livro Cousas de Castelão.
  • Fotografia: Roberto Gómez e Trote Trenas. Música: Fabrizio de André. Són: Maruchi Olmo.
  • Produtor: Vítor M. Ruppén. Ajudante de produção: António F. Simón.
  • Montagem: Polo Aledo e Javier Maqua. Prémio da Crítica no Festival de Huesca.
  • Nota: O filme pode ser visto entrando aqui.
  • Atores: J. Cabanas Cao, J. Diaz Noriega, Hermínia Vázquez, J. M. Garcia Seoane, Manuel Vázquez, Andrés Rey, Emílio Gundín, Ricardo Pinheiro e Manuel Rodríguez.
  • Argumento: Baseado no relato de Castelão anteriormente transcrito. O filme conta a história de Miguel, um emigrante galego que viaja num comboio enquanto lembra a sua infância. Quando era criança esperava que seu pai, que vinha da emigração americana, viesse cheio de dinheiro e fartura. Na realidade veio pior do que quando partira.

A ARTE DE NARRAR EM CASTELÃO,

por Adriana Castillo de Berchenko:

Como explicar a emoção que se vive ao ler o relato O pai de Miguelinho de Castelão? Em que reside a sua força expressiva se, no fundo, não é senão uma história muito simples?

O pai de Miguelinho, que se encontra integrado em Cousas de Castelão, é em essência uma brevíssima narração. A sua aparência anódina, feita de sete parágrafos curtos, pode induzir a erro. Porém, a impressão é passageira. Desde as primeiras frases um mundo é revelado, lugares, personagens, situações humanas, sentimentos, são misturados gerando-se uma pequena obra-prima.

Fotografia de CastelãoUma anedota banal, quase quotidiana, constitui a trama, um jovem, o “rapaz”, Miguelinho, espera com anseio o retorno do pai, que volta “das Américas”.

Estamos aqui perante uma história de retorno e reencontro, contada de maneira singela, transparente. Do conjunto, porém, nasce um efeito estilístico indubitável.

O pai regressa e o evento comove o meninho. Longo tempo estiveram sem se ver. Só um retrato tem significado até então a função de pai. Imagem paternal irrevogavelmente em estado puro. Por fim chegou o momento em que o reflexo vai ser concretizado, “o rapaz não cabia de gozo” porque, claro, “sabia com os olhos fechados como era o pai”.

A ansiedade da espera infantil percorre todo o texto, inundando-o. O desejo de ver, e sobretudo de reconhecer o pai, marca a história a lume. O discurso narrativo enche-se, em consequência, de vocábulos do que se enuncia, “o coração do rapaz batia-lhe na tabela do peito”, “os olhos angurentos dum menino”, “o coração dava-lhe”, “seus olhos esculcavam nas greias em procura do pai ensonhado”. “O pai ensonhado”, um pai idealizado, produto dum sonho; o narrador expressa-o ao cabo do segundo parágrafo. Neste momento faz-se evidente que a espera de Miguelinho deve finalizar na confrontação do reflexo ideal com o homem de carne e osso. Para que isso suceda, é necessário ao leitor esperar o final e é que (e graças a um efeito estilístico de qualidade) leitor e personagem vivem a angustiosa situação da espera e o reconhecimento.

Se há uma temática difícil de resolver na criação, esta é, precisamente, a de reflexar com verosimilitude os meandros de uma consciência infantil. Castelão consegue-o.

O pai de Miguelinho é uma narração em que tudo o que se conta está dito a partir da perspetiva do protagonista. O leitor conhece a visão das cousas, das pessoas, do mundo a partir do que percebe a olhada da criança. Assim, a narração, é estritamente personalizada inclusive se o narrador joga todo o tempo com a distância de uma enunciação em terceira pessoa.

É incrível como um relato tão breve, tão minucioso, logra provocar através da sua leitura, não só a evocação de uma alma infantil, senão além disso sugerir todo um mundo de conflitos sociais e económicos que são os que o próprio criador conhecera e vivera.

É com obras como esta que o génio criador da Arte narrativa dum escritor se verifica.

UM RELATO IDEAL PARA ENSINAR NA AULA A FAZER UM COMENTÁRIO DE TEXTO:

Capa das 'Cousas' de Castelão
Capa das ‘Cousas’ de Castelão

Estamos perante um relato idóneo para ensinar aos estudantes a fazer um comentário de texto. Este relato de Castelão pode estruturar-se nas seguintes partes:

– Resumo: Trata de um filho e uma mãe que vão procurar seu pai e esposo que chega das Américas (pode ser qualquer país da América Latina, especialmente a Argentina, Cuba ou o Uruguai), e o que pensa o menino e as suas ilusões rotas.

– Forma e estilo: O relato está escrito num estilo adequado para ser entendido, como se fosse falado no lugar de escrito. As expressões são coloquiais e resulta fácil de ler, o que vai em consonância com a filosofia de Cousas e de Castelão, que não é rebuscado ou complicado como os escritos de Risco ou Otero Pedraio da mesma geração do rianjeiro, e está mais em relação com o povo e a gente humilde que é da que fala o livro. As orações adoitam ser ou simples ou coordenadas e é difícil encontrar uma subordinada, mas nem por isso é uma linguagem descuidada.

– Estrutura: Na 1ª parte, estamos na casa de Miguelinho onde se nos introduz na história com umas quantas “imagens” como o desenho que figura no cabeçalho do relato, que aparece o filho olhando um quadro de seu pai para lembrar como era. Isto leva-nos ao primeiro tema do relato, que é a emigração. Há tanto tempo que o pai teve que emigrar, que o filho não o conhece: embora tenha uma imagem de seu pai que “…sabia com os olhos fechados como era…”, esta imagem não era real, já que teve que botar “…uma olhada ao retrato”.

Na 2ª parte isto aparece reforçado: No peirão, onde o rapaz espera que o seu pai seja um de esses triunfadores que chegavam das Américas. Tinha um ideal de ele, que mesmo um de estes triunfadores ricos se parecia ao do retrato, “…ou ainda melhor portado,…”. Logo aparece outro que só por levar um bom trajo, já pensava que era seu pai. E “…assim muitos pais que não o eram…”. As ilusões do rapaz vão crescendo até ir perdendo as ilusões.

Na 3ª parte é onde o rapaz muda a ilusão pela “angúria”. Quando o pai que de súpeto vê que abraça a sua mãe, resultou ser um pobre homem doente, “Era um homem que não se parecia ao do retrato…”.

– O espaço e o tempo: Espaço e tempo estão unidos à estrutura. Por um lado há um espaço explícito que faz referência ao caminho do rapaz e a mãe.

Casa – Peirão: A passagem da casa ao peirão não aparece no relato, já que com certas imagens típicas dos relatos, pressupomos o nervosismo da mãe e do filho em esse trajeto perante a chegada do pai. E, por outro lado, há um espaço que tem a ver com o tema: a emigração, que é a viagem que faz o pai.

América – Galiza: Estre trajeto é o tema do conto, e deveu ser angurioso pelos pensamentos do pai que não levavam nada de volta.

Quanto ao tempo existe o tempo de narração, que está em passado, já que predomina o pretérito perfeito: “estava…, batia-lhe…, esculcava…”. E o tempo da história, que poderíamos enquadrar nos inícios do século XX, onde a emigração estava a ser uma das principais causas do abandono da Galiza. O desenvolvimento da ação é muito breve: Da casa ao peirão e a espera enquanto chega o pai.

– Temas: O tema principal é a emigração, embora na sua parte negativa, a que faz voltar o pai à Galiza sem nenhum dinheiro. Mas, aparecem outros temas como a ilusão dum rapaz, a separação pai-filho, a emigração positiva e a negativa refletida nos “americanos”, o amor da mulher, e a penúria do ser humano.

– Conclusão: O relato está muito bem escrito: com umas quantas “imagens” Castelão dá-nos a conhecer o drama de uma época e a psicologia das personagens. O relato leva-nos a uma Galiza de há um século, embora com parecidos problemas aos de hoje, como são a emigração, agora a outros países ou cidades do estado espanhol, para procurar trabalho. E a pobreza da gente do campo, e a penúria da gente humilde.

O relato é uma reflexão sobre a vida, como faz no resto dos relatos do livro de Cousas, e que também aparece esta mesma filosofia nos seus desenhos e pinturas, no álbum Nós e nos volumes de Cousas da vida.

TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR:

Fotograma do filme
Fotograma do filme

Servindo-se da técnica do Cinema-fórum, analisar e debater sobre a forma (linguagem cinematográfica: planos, contraplanos, panorâmicas, movimentos de câmara, jogo com o tempo e o espaço, truques cinematográficos, etc.) e o fundo do filme anteriormente citado, realizado em 1977 por Miguel Castelo.

Organizar nos estabelecimentos de ensino duas amostras dedicadas a Castelão e a Manuel Maria, o poeta da Terra Chã, a quem se dedicam as Letras Galegas de 2016. Os escolares devem consultar para organizar as mesmas bibliotecas, livros, revistas, jornais e a internet. Hão de incluir fotos, desenhos, frases, pequenos textos, poemas dos autores, e também textos criativos dos estudantes. Seria bom que as amostras se completassem com livros e monografias dos dous autores galegos. E mesmo se poderiam editar e/ou policopiar duas monografias sobre ambos os escritores.

Ao redor da data das Letras Galegas seria lindo preparar representações de peças teatrais dos dous escritores, a cargo dos escolares, com a ajuda dos professores. No caso de Manuel Maria são muito adequadas Berenguela, uma espinha de tojo ou Barriga verde. No caso de Castelão Os velhos não devem de namorar-se, ou dramatizar alguns dos seus relatos. As atividades podem completar-se com a organização de dous Livro-fórum, escolhendo um livro a ler por todos de cada um dos dous escritores. Inclusive seria lindo organizar uma audição musical de Os sonhos na gaiola, cantado e musicado por Suso Vaamonde no seu dia.

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