Bestiário maternal, maternidade bestal

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Sempre foram os cristãos um pouquichinho sádicos. E como fazem tantas vezes os humanos, procuravam na natureza a maneira de justificar essa sua violência: e andavam polo mundo fora a observar animalzinhos para ver neles os comportamentos que a si mesmos lhe eram próprios. E quando isso não acontecia, não se passava nada: inventava-se o bicho ou a sua etologia, que tanto tem, mito mais, lenda menos.

E isso fizeram com a pobre pelicana, que vive ignorante nas branhas e lameiras do Nilo ou do Lago Victoria. Alguém decidiu que em tempos de fome a pelicana dana o seu próprio boche até o fazer sangrar para alimentar assim, com o seu sangue, os pitinhos. E mesmo há quem decidiu que por vezes arranca febras de carne, própria também, e dá com elas vida às criancinhas. Por isso virou o pelicano não só símbolo de Cristo (sangue do meu sangue, carne da minha carne) mas, sobre todo, do sacrifício paternal polas filhas e filhos: assim deve de ser a boa mãe cristã, entregada até a própria aniquilação. Y perdona nuestras ofensas. 

Com estas vímbias constrói Alicia Fernández o seu Mamá Pelicano. E escolho o verbo construir com toda a intenção. Mamá Pelicano é um artefacto, um objeto poético que não esconde a sua natureza (“Convidei a un cazador / a este libro / e desde aquí / véxoo andar”). Fernández dispõe metodicamente duas partes nesse todo que é o poemário: a urdume formam-na os poemas em que nos conta dos pelicanos, Pelecanus onocrotalus, “tobogáns feitos de músculo”. A trama conta a estória da mãe, da “mamá pelicano, / amor absoluto”. Como em bom tecido, urdume e trama cruzam-se e chegam a fundir-se numa única textura. Atroz.

A trama conta a estória da mãe, da “mamá pelicano, / amor absoluto”. Como em bom tecido, urdume e trama cruzam-se e chegam a fundir-se numa única textura. Atroz.

A autora não nos coloca perante uma formosa crónica de abnegação e apego. Ela mesma o diz: É cruel a historia que narro / desde aquí dentro. Conta a maternidade como uma penitência, na que a Dolorosa sofre, por vezes em silêncio, um silêncio ofensivo para a filha, por vezes a chorar, a chorar de mais para a filha. A felicidade só aparece, aparente, no dia da festa. Numa solitária fotografia, o sorriso. 

Mamá pelicano cresce na incomunicação. As pessoas que habitam o livro não falam. Fazem cousas: escacham porcelanas, esportilham pratos duralex, untam pernas com nivea, esfregam até a debilidade qualquer retrato de comunhão, mas quase nunca falam. Só a avó serve de médium para a conversa. No cemitério. 

A mãe sofre. E a filha participa da tortura. Essa é também a história da mamã pelicana. E no tempo, assume “ a angustia de entrar na casa”, revisar a infância com a vontade de exorcizar a vergonha, o dano. Constrói-se assim o texto como um cerzido que procura a cicatriz, “ir apertando e cosendo / levando a agulla, afundíndoa / procurando que non saian as tripas”. Mais ou menos, mas não. Ou constrói-se o texto como bisturi que rasga o bandulho para “aceptar que te desangras”. Acabar com o trabalho. Poupar dores e mais sacrifícios. Ser a caçadora que dê o tiro de graça. Ou não.

Deixar que o caçador se perda nos caminhos. E o pelicano sobreviva. E as criancinhas cresçam e deixem de picotar boches. 

Lógico que a poeta escreva: teño medo de que me atendades.

Alicia Fernández: Mamá Pelicano.

Espiral Maior 2020

[Este artigo foi publicado originariamente na Sega]

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