A transição como mentira

Partilhar

Duas personagens rememoram o passado e decidem contar-nos o que tal lhes aconteceu. Uma desde o hoje revisa o seu primeiro trabalho como jornalista. A outra é a pessoa objeto da sua pesquisa. E sabemos. O protagonista nasce ao jornalismo em plena transição espanhola, num jornal que poderia bem ser transunto do Elpaís. Por azares da vida, chega a responsabilizar-se da redação duma exclusiva que conseguem os seus chefes: a entrevista a um assassino em série a ponto de morrer e desejoso de contar a sua versão. De confessar. E a história deste criminal leva-nos ao golpe de estado de 36 e à repressão posterior.

Guiar o carro em solidão dá para cismar todo na vida. Por vezes pode entreter-nos a emissora de rádio, o parte, as músicas na moda, mas acabamos por cair no pensamento, na auto-confidência. Funciona a cabina como céu protetor. Recuperamo-nos na nossa intimidade, lembramos, reconduzimos atitudes, reinventamos conversas e predizemos comportamentos. É na road-movie que nos podemos permitir a verdade. Sermos quem somos. Levamos uma mão ao guiador, calcamos o travão com o pé e sinceramo-nos. Construimo-nos em cada um dos quilómetros que recorremos durante horas. Isto é o que não faz o protagonista [e narrador] de Transición. Cruza a meseta na busca do lugar inominado e só sabemos, na viagem, das paradas e do conteúdo dos sandes que toma no caminho. E desta maneira toda a narrativa. Anda doente com o mundo, mas não chegamos a acreditar nele porque nunca, em momento algum, partilha com nós a sua intimidade. Pode que confesse, como em balcão de bar. Pode que nos revele algum segredo. Escatológico, provavelmente. Mas a confidência, que requer cumplicidade e cordialidade, essa, não chegamos a senti-la. Não somos depositárias da narrativa. Somos simples destinatárias duma mensagem adulterada.

Assim, conhecemos as duas estórias, de um personagem, do outro, com todos os pormenores: com todos os cruéis e desnecessários pormenores. Porque se algo desconseguimos a medida que avança a leitura é amigar com nenhum deles. Acedemos à vida privada de ambos, em especial do protagonista, mas não acedemos ao seu âmago. Quiçá seja essa a principal falência da narrativa. O texto não deixa de ser uma continuidade de ações, movimentos e deslocamentos do jornalista; sabemos que janta, que opina de quantos o rodeiam (sempre o mesmo: eles cabrões, elas putas) e mesmo quando bota peidos e vive más digestões, mas não sentimos em nenhuma das linhas que lemos que esteja a ser franco com nós, não deixamos de percebê-lo como uma mostra de afetação, de moço que pretende parecer fanfarrão e não deixa de ser inexperiente jornalista. Ajuda a isso o tom do narrador, chulesco e desprezativo. E assim como nos são outorgadas as razões do assassino para assassinar, desconhecemos as de tanta chularia e desgabo. Contribuem, também, as escolhas linguísticas para caracterizar a sua fala, com tipos, conas, fulanos, lurpias, putas, e paisanos em excesso e mesmo adaptações de todo inadequadas1.

O texto não deixa de ser uma continuidade de ações, movimentos e deslocamentos do jornalista; sabemos que janta, que opina de quantos o rodeiam (sempre o mesmo: eles cabrões, elas putas) e mesmo quando bota peidos e vive más digestões, mas não sentimos em nenhuma das linhas que lemos que esteja a ser franco com nós.

É provável que esta incapacidade para seducir-nos que tem a leitura venha dada, também, polo facto de haver um leitor implícito claramente definido. Vem a ser esse leitor pirolo, que fazemos depositário (pode que entre eles sim se dê a intimidade que nós não encontramos) do autor de estilo cipotudo que caracteriza com precisão Íñigo F. Lomana2. O texto ressuma testosterona, cheiro a tabaco, alento a álcool e, sobretodo, referências humilhantes cara às mulheres estradas pola narrativa.

E damos aqui com outro osso: o tratamento conferido às personagens femininas. Todas de adorno, é claro. Todas comparsas do protagonistas. E sempre sentindo-se eles (narrador e personagem) com direito a tratá-las de maneira vexatória: “o meu cicerone anunciou a un par de secretarias que eu ía con el, ao que elas responderon cun sorriso nos beizos e as bragas á altura dos nocellos” (pág. 12). Nas redações da década de 80 andavam as margaridas ledo e as tareixas navaza a a mecanografar as suas crónicas en velhas olivettis, mas nesta narrativa as únicas mulheres que aparecem som secretárias cachondas, esposas ofendidas, freiras grosseiras e viúvas fanáticas. O narrador não é consciente daquilo que refletem as suas frases, porque não duvida em qualificar as que pronunciam outras personagens, esquecendo o seu alter ego juvenil: “a verdade é que é ben guapa, e lista ademais – machismo condescendente -. Vinte e cinco aniños. Un bocado maior ca ti.” (pág. 14, itálicos meus). O mesmo machismo condescendente (não assinalado) da personagem protagonista: “«Non sei moito de putas, pero non creo que ti pases por unha», respondín mentres lle desenleaba o pelo con coidado, «é só que estás soa»”(pág. 149). Na distância dos anos, do tempo transcorrido, o narrador deita comentários retranqueiros (ou cínicos) nos que valora a posteriori comportamentos e atitudes3, porém esta reflexão não chega às mulheres e ao tratamento que recebem por parte das personagens. Porque nem sequer são sentidas. Nem atendidas. Nesse sentido, era desnecessário distanciar o narrador da história. Quase era melhor que a contasse em presente o jornalista inexperiente: teria a desculpa da idade.

E damos aqui com outro osso: o tratamento conferido às personagens femininas. Todas de adorno, é claro. Todas comparsas do protagonistas.

E mais elementos rangem em nós. Como a sensação, violenta, de que toda a história que se nos conta da guerra civil é posta ao serviço de um assassino múltiplo. Quando devera ser ao invés, os crimes franquistas desvendados servem só para justificar crimes posteriores, despolitizados e descontextualizados, reduzindo a violência fascista a crimes sexuais e a um assunto de vinganças pessoais. E silenciando, outra vez, as vítimas inocentes. Porque acabamos a leitura e nada sabemos da mulher e as duas crianças (nem os nomes sequer) que o senhor Aurelio matou. Comparsas em toda esta história.

Um jornalista revisa desde o hoje o seu primeiro trabalho. Mas essa distância não faz que revise a sua história, a sua intimidade, nem que reconduza a sua atitude, nem que reflexione criticamente sobre o passado e como decidiu vivê-lo.

É certo. A mal-chamada Transição é uma grande mentira.

Pablo Fernández Barba: Transición. Urco Editora 2016.

1  Por exemplo: “Se aquela noite non tivera corpo para pactar un cefalópodo de rocha cunha rapaza como aquela, tampouco o tiña para…” (pág. 171, itálicos meus).

2  Íñigo F. Lomana: En la era de la prosa cipotuda. El Español, 21/10/2016. http://www.elespanol.com/cultura/libros/20161021/164863513_13.html

3 “Fixeron un par de comentarios sobre os collóns que lle botara ao asunto, algo sobre que me conducira como un home co traballo aquel -demostrando que o machismo patrio non era patrimonio exclusivo dos taberneiros-” (pág. 47/48).

[Este artigo foi originariamente publicado na Sega]

Máis de Susana Sánchez Arins