«Cantos na maré, sons da nossa fala, cantos na maré, são cantos e mais nada…».
Assim começava o primeiro concerto do festival da Lusofonia “Cantos na maré” (Ponte Vedra, 2003), promovido pola Uxía Senlle. Já no ano 2000, no seu disco “Danza das areas” recuperara, em certo modo, a ideia da colaboração musical galego-portuguesa de que tanto gostava o Zeca, o qual manteve estreitas relações musicais e de amizade com músicos galegos, como o Benedicto. O Zeca sentia a Galiza como uma pátria espiritual (por suas próprias palavras), mesmo foi nesta terra onde estreou o “Grândola, vila morena” ao vivo.
É evidente que a Uxia percebeu a utilidade que como artista lhe podia dar a Lusofonia e o seu rico e variado universo cultural, com diferentes sotaques em distintos continentes e mais de 250 milhões de utentes. E uma vez experimentada essa sensação, já não parou. E foi assim que a música lusófona (letras, ritmos, estilos, intérpretes…) começou a chegar à Galiza, com o “Cantos na maré” a exercer de montra de luxo. Assim passaram por Ponte Vedra artistas da categoria do Chico César, Dulce Pontes, Rui Veloso, Filipa Pais, Manecas Costa, Lenine, António Zambujo, Socorro Lira, Aline Frazão… E uma vez chegada a vaga lusófona do Atlântico, a música galega deixou-se alagar. Na Galiza, como quase sempre, onde não chega o discurso político, linguístico, sociológico ou simplesmente lógico, chega a emoção; e depois (com sorte) o processo continua a se desenvolver naturalmente, se demonstrar ser útil. E começaram por toda a parte as colaborações musicais galaico-lusófonas, misturando os sentimentos produtivos que tão bem sabemos gerir, se se derem as circunstâncias propícias. E no nosso país, na década de 2000, as circunstâncias foram mesmo boas: dinheiro público, movimentação cívica, locais sociais, festivais em auge, cultura a circular… É neste contexto que muitas/os artistas locais se abriram aos novos horizontes atlânticos unidos pola mesma fala: o Narf com o Manecas Costa, a Ugia Pedreira com o Fred Martins, a Uxía Senlle com o João Afonso e o Sérgio Tannus (entre muitas e muitos outras/os); o Xoán Curiel e a Najla Shami também com o Tannus, etc.
A continuar o rumo traçado polo “Cantos na maré”, embora de jeito mais modesto, nasceram em diferentes pontos do país eventos e iniciativas como o “éMundial”, o “Estou lá”, o “Corasons” ou o “Português perto”. Cada um deles com diferentes objetivos e personalidades, mas todos unidos na vinculação lusófona. Em concreto, o “Português Perto”, organizado em Ourense, no câmpus da Universidade de Vigo, vai pola sua 5ª edição, tendo já projetada a de 2016 e boa parte das associações musicais antes mencionadas já têm passado polo seu palco.
Especial menção merece também o projeto “Corasons”, esplêndido exemplo de produto artístico-sentimental, com um maravilhoso espetáculo de imagem e som articulado em torno à temática das fotografias da portuguesa Isabel Leal: canções com coração. Neste projeto têm participado, entre outras/os: Luanda Cozetti, Norton Daiello, António Zambujo, Sérgio Tannus, Magín Blanco, Rui David, Belén Cid, Najla Shami, Serginho Sales, Pablo Vidal…
Durante estes anos, e mesmo antes, temos autores e grupos que dum modo ou doutro têm desenvolvido ou desenvolvem ainda uma obra (mais ou menos) lusófona; entre eles podemos citar o Carlos Núñez, Servando Barreiro, Maria do Ceo, Carlos Valcárcel, Alberto Mvundi, Quim Farinha, os grupos “Leixaprém”, “A matraca perversa”, “Chouteira”, “Marful” (nestes três últimos é salientável a participação da Ugia Pedreira), “Os nen@s da revolta”, “A Bagunda Folk”, Skárnio”, “Projeto Mourente”, “A banda de Poi”, “Loretta Martin”, “Lamatumbá”, “Os meninos cantores”, “Terra Morena”, “Projeto Sapoconcho”, “Clave de Fado”, “Malvela”, “Maria Fumaça”, “Caxade”… Também é remarcável a presença de conteúdos lusófonos no programa da Rádio Galega “Três peixes voando”. Para além disto, podemos mencionar o interessante labor da “Central Folque” no âmbito da música tradicional ou a constante oferta lusófona no Festival da Poesia do Condado, com 28 edições às suas costas.
“Estamos lá, na in-consciência coletiva que nos une, nas canções de embalar que nos arrastam até praias quentinhas e acolhedoras, nas vozes das nossas avós que ainda têm na memória palavras que estão lá, nos sons que oferecem as cantoras e cantores de cá, de lá, de tão perto, de muito longe… Às vezes, estamos lá, mesmo sem querer estarmos e é quando reparamos em que estamos cá também, onde nasceu a língua”. Assim é que começou o festival “Estou Lá”, em Ourense, no ano 2012. A relação musical entre a Galiza e o resto da Lusofonia é um caminho aberto que ainda está a começar.
NOTA: artigo publicado no Fest-AGAL n.º 6 (julho de 2015)