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A estética da arquitetura gótica em Vicente Risco (III)

 

1º Retrato de John Ruskin.
1º Retrato de John Ruskin.

Pouco temo depois de publicar o derradeiro capítulo do Preludio a toda estética futura em julho de 1918, Risco assistiu à Assembleia de Lugo em 17 e 18 de novembro de 1918. Nela Xaime Quintanilla expressara a proclamação da “soberania estética da Nazón Galega”. Trata-se de uma declaração que concentra três pontos essenciais, relacionados com a arquitetura (reabilitação), monumentos e paisagens (conservação), assim como a disciplina artística e a música (ensino). A Nosa Terra publicou o Manifesto de Lugo a 5 de dezembro de 1918. E junto ao mesmo publicou-se Prosas galeguistas (IV). Sensaciós da asambleia em que Risco expõe as suas observações a tal respeito. Uma das suas rubricas intitulou-o, de forma eloquente, Ruskin connosco. Neste pequeno mas revelador parágrafo, Risco alude à questão da soberania estética enunciada por Quintanilla. Para ele, os pontos tratados correspondem totalmente às ideias das sete lâmpadas da arquitetura de Ruskin. A reabilitação da arquitetura (em que se expressa ajeitar o estilo das casas dos proprietários ao de cada vila galega), a conservação (a proteção dos monumento e da paisagem) e o ensino (com um forte apoio nas escolas à educação artística) têm uma identificação com a obra ruskiniana.

 

Estas três questões relacionam-se com as seguintes lâmpadas, citadas pelo pensador inglês: o Sacrifício – a consagração divina da mestria da pessoa, como prova visível de amor e obediência –, a Verdade – a disposição honesta e artesã de estruturas e materiais (algo muito importante para Ruskin devido ao artificio do “estilo gótico” gerado no século XVIII –, o Poder – os edifícios devem ser construídos em termos de dimensões e conceito com o Sublime da Natureza, com a ação da mente humana neles e a organização do esforço físico na construção –, a Beleza – o Sacro simbolizado através da ornamentação inspirada na divindade da Natureza –, a Vida – os edifícios devem ser trabalhados com as mãos, razão pela qual a sua liberdade expressiva está associada à alegria que deram aos escultores e pedreiros –, a Memória – as construções devem respeitar a cultura em que foram concebidas – e a Obediência – a conformação da obra far-se-á seguindo os melhores princípios do país –. Não é de estranhar que Risco escrevera que quando a terra galega fosse dona de si, manteria as sete lâmpadas acesas. “A ditadura do vello Ruskin, qu´era da nosa raza e da nosa psicoloxía…” apontou.

Doze anos mas tarde, estas mesmas ideias voltariam a parecer nos escritos de Risco. Os anos não desgastaram a força com que Risco as sustentava e observava com elas a vida. Ao contrário, a sua viagem em 1930 pela Europa Central – via Paris, Bruxelas, Colónia, Berlim, Praga e Viena – teve o efeito de aumentar o encanto e o romantismo que sentia na presença de edifícios históricos. Mas é ante a arquitetura gótica que, como ante uma dama fantástica com uma beleza de fantasia, suscita algumas das considerações estéticas mas poéticas e pessoais que escreve.

2º.-Retrato-Seminario-de-Estudos-Galegos-Pontevedra-1928
2º.-Retrato-Seminario-de-Estudos-Galegos-Pontevedra-1928

Foi em Paris, ao visitar a Catedral de Notre Dame, que Risco se sentiu entusiasmado para escrever da impressão das cores em constante transformação que flutuavam à sua volta, que luz dourada do sol prendendo as cores da grande rosácea da catedral numa atmosfera de completa revelação. Também foi nesta catedral que alude ao carácter extraordinário do desenho gótico, “o ojival é arquiteitura vivente, que semella medrar, mais por obra d´homes por unha forza interior a un tempo vexetal e estraordinariamente espirtual”. As formas orgânicas do gótico são espirituais porque têm vida própria, engendram vida, emanam vida e transmitem vida, insuflando força a quem olha nelas. Não existe um processo técnico ou científico que possa analisar corretamente o seu efeito, “pr´esprical-a elegante delicadeza d´un fento”.

No Gótico é possível concretizar com um aspecto físico – através de arcobotantes, abóbadas, nervos, arcos, colunas em feixes ou motivos esculpidos – o impulso vital individual: todas as formas manifestam as constantes linhas de força entrelaçadas que conformam a constante evolução de ideias e pensamentos de uma pessoa. O que transmite é o que a conforma, e a sua forma material é uma expressão e um facto desse espírito. Mas se bem numa pessoa a alma é uma forma invisível que anima o corpo, no mundo natural das flores, das árvores ou das campinas a alma é a forma física de cada folha, a textura da madeira, as cores de uma flor ou as cintilações de luz de um rio. É o que Risco chama a “intuição da forma” e do seu gozo, os alicerces em que se sustenta a análise e explicação da Arte e a Estética.

3º. Notre Dame
3º. Notre Dame

As ideias alcançadas no ambiente de Notre-Dame são irradiadas diante dos seus olhos pelo que ele chama a “ ruskiniana lâmpada da vida”. O trabalho dos arquitectos funde-se com o dos escultores, mas não é na obra escultórica desta catedral que ele sente mais identificada a “lâmpada da Vida” de Ruskin. Risco a vê na maneira em que a geometria vai mais para além do sobre-simplificado do esquemático para, em contrapartida, canalizar a complexidade do orgânico. Encontra-se no facto de que esta edificação não seja possível classificá-la nos postulados da arquitetura clássica ou classicista. Contrariamente ao exclusivo predomínio clássico da geometria, neste Gótico encontra-se a confluência do planeamento geométrico, o elemento simbólico e a flexibilidade naturalista. Uma união possível graças aos diversos conhecimentos e a compreensão dos pedreiros e arquitectos medievais, mas algo que Risco considera complicado de alcançar na mentalidade e obra dos arquitectos do seu tempo. Onde sim observa um paralelismo artístico a respeito do conceito e forma gótica é no design industrial. Na viagem entre França e a Bélgica, a passagem pela vila de Charleroi permitiu-lhe contemplar as fábricas e as máquinas de transporte situadas no meio rural. Este município da Valónia é uma zona fortemente industrial, sobretudo pelas minas de carvão e a indústria do aço. Não é de estranhar que a sua paisagem dera nas vistas de Risco, quem escreveu que nela alternavam as agulhas das edificações góticas e os aparelhos de trabalho. Para ele, isto é a “síntese das terras do Norte”, a aliança entre a arte gótica e o design técnico industrial.

No pensamento artístico de Risco o design e o objecto tecnológico representam uma classe estética em si mesmos. Graças às infinitas possibilidades que oferece a evolução tecnológica, as formas criadas a partir desta evolução mostram uma capacidade igual de ilimitada no que diz respeito à composição, figura, cores, texturas, luminosidades, movimentos físicos e sentidos emocionais. Por esta razão, ao escrever sobre a paisagem valona considera o design industrial como uma arte, devido principalmente à reinvenção constante das suas formas, à sua originalidade e variedade e porque possui um estilo individual muito característico. No entanto, a ideia de fundir os conceitos da arquitetura gótica com o design industrial mostra um paralelismo com as ideias de Viollet-Le-Duc, quem incluíra nos seus desenhos arquitetónicos elementos de sustentação, cobertura e de reforço exteriorizados para o estabelecimento da estrutura do edifício, empregando materiais como o ferro e o aço e com formas realizadas em base à busca dessa estrutura, não se remetendo para mais estilos do que o da arquitetura gótica.

4º.-Ilustración.-Viollet-Le-Duc
4º.-Ilustración.-Viollet-Le-Duc

Neste aspecto o Gótico e a Máquina, ante a sua pergunta de se são dois espíritos ou um só, responde ao mesmo tempo aludindo às representação nos manuscritos iluminados dos séculos XII, XIII e XIV em que estavam representadas as cidades. As máquinas empregues na construção das casas, incluídas nas imagens dos manuscritos, mostravam o conceito e forma original da Máquina. Para Risco, os estudiosos e artistas do desenho técnico são as pessoas mas apropriadas para analisar, explicar e compreender o vínculo que existe entre o Gótico e o Industrial. Nas máquinas e no desenho tecnológico, a essencial mecânica e física variam nas suas formas, mas não na sua razão de ser. Esta questão considera-a fundamental não apenas para o estudo da História como também na Teoria da Cultura. Risco não tenta justificar a estética da máquina, nem tão-pouco buscar precedentes forçados no Gótico, mas sim observar a sua modernidade, captá-la e visibilizar os múltiplos diálogos entre ambos os estilos.

Risco celebrou a chegada à cidade de Colónia rendendo honras à sua Catedral. Para ele, esta edificação era uma obra muito querida por estar perto do seu coração, pois em criança lhe causara uma forte impressão ao vê-la nos gravuras que ilustravam os livros de Arte. Depois de a ver, não concebia mais arquitetura gótica além da Catedral de Colónia. Tanto que, como ele mesmo escreve, “de deixar-lle debuxar unha catedral gótica ao instante debuxaría a de Colónia”. Tal foi a sensação que lhe causou, que mais adiante, ao continuar a estudar Arte, ao ler sobre a arquitetura religiosa gótica não percebia porque não aparecia a Catedral de Colónia como uma das edificações principais. O que denota esta paixão artística ante a sua sonhada catedral é a ressonância emocional que despertava nele a entrega da sua contemplação. A visão das portas góticas da muralha da Staré Mieslo de Praga levou-o a uma torrente de emoções que ele mesmo não consegue explicar, alcançado quase a síndrome de Stendhal. “Eu quería estabrecer antre min e as pedras, as vellas pedras que deitan esprito, a precisa conexión fluidica, que non se consegue sabendo a súa historia nen clasificando o seu estilo”. Um dos comentários mas formosos o dedicou a Catedral de Viena a que definiu como “encaixe [rendilhado] de pedra”. Risco parou-se a vê-la, observando todos os detalhes enquanto caminhava rodeando-a. A sua beleza levou-o a admirá-la como uma “obra preciosa”. Tudo no seu interior era uma constante projeção daquilo que inspirava o Gótico na liberdade do ilimitado da sua alma: arte, luxo, limpeza e devoção.

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5º Estudo de Arco V. Risco

NOTAS:

1º. Retrato de John Ruskin. 1894. Frederick Hollyer. Técnica: Impressão em platino. Medidas: 16,5 x 12,5 cm. Victoria and Albert Museum, Londres.

2º. O Seminário de Estudos Galegos na Igreja de Santo Domingo, Pontevedra, a mañán de 9 de Abril de 1928. Nesta parte da fotografia encontram-se, de esquerda a direita de pé, Ramón Otero Pedrayo, Antón Losada Diéguez, Florentino López Cuevillas, Vicente Risco e Ricardo Carvalho Calero. Sentados nas cadeiras desde a esquerda vê-se a Isidro Parga Pondal, Abelardo Moralejo, Xesús Carroça e Salvador Cabeça de León.

3º. O grão rosetão da fachada ocidental da Catedral de Notre Dame, desde a perspectiva da nave central. 1163-1345. Ilha da Cité, IV Distrito, Paris.

4º. Lámina XXII. Eugène Viollet-lê- Duc. Técnica: Gravado. Do livro Entretiens sul l´ Architecture (1863-1872), do autor.

5º. Estudo da estrutura do arco apontado. S.d. Vicente Risco. Técnica: Debuxo. Fundação Vicente Risco, Allariz.

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