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A estética da arquitetura gótica em Vicente Risco (II).

A significação da arquitetura gótica, juntamente com a da estética do Medievalismo, transformou-se em começos do século XX. A prolongação das ideias da época vitoriana através da época eduardiana fez com que na Arte, tanto por temas como por formas e motivos, se continuasse o caminho iniciada no século XIX. No entanto, o impacto dos princípios de William Morris e de John Ruskin transmitiu-se aos novos movimentos artísticos, ao ponto de que a Wiener Werkstätte perfilharia as teorias de ambos para as aplicar, dando lugar a uma percepção fresca relativamente à arquitetura e função da Arte, que continuaria, por sua vez, com os arquitectos e designers modernos desde 1930.

1º. Canterbury exterior
1º. Canterbury exterior

A morte de Morris em 1896 e de Ruskin em 1900 não deteve a sua influência, nem tão-pouco minimizou o carácter precursor inerente às suas teorias estéticas. Foram – e são – autênticas referências, personalidades que abriram novos caminhos, uma nova mentalidade, uma forma de viver diferente. Com os livros Pintores Modernos (1843-1860), As Sete Lâmpadas da Arquitetura (1849) e As Pedras de Veneza (1851-1853) Ruskin fundamenta a essência da sensibilidade moderna da Arte. Pintores Modernos, que começou a escrever com vinte quatro anos, tornou este crítico de arte, fotógrafo, designer e escritor num dos principais defensores da pintura de Turner, assim como da Irmandade Pré-rafaelita (Pre-Raphaelite Brotherhood) e o valor do simbolismo na Arte. Em As Sete Lâmpadas da Arquitetura fundamenta o valor da arquitetura através da associação de ideias, concretamente com sete ideias: o Sacrifício, a Verdade, o Poder, a Beleza, a Vida, a Memória e a Obediência. E, finalmente, em As Pedras de Veneza Ruskin, com particular atenção ao capítulo da natureza do gótico, põe em evidência o relevo da arquitetura gótica como modelo sobre a organização da sociedade extirpando a neurose que pode emergir nas formas de trabalho e os seus efeitos nos próprios trabalhadores, como o trabalho pode tornar-se um cárcere para o espírito de quem trabalha:

Nós queremos um homem que esteja sempre a pensar, e outro que esteja sempre a trabalhar, e a um chamamos de “senhor”, e ao outro de “trabalhador”; enquanto o trabalhador deveria estar amiúde a pensar, e o pensador amiúde a trabalhar, e ambos serem senhores, no melhor sentido da retórica. Tal como estão as coisas, nós fazemos de ambos algo pouco nobre, um com inveja, o outro desprezativo para com o seu irmão; e a massa da sociedade está conformada por pensadores mórbidos e trabalhadores miseráveis. Agora é só por meio do trabalho que essa mentalidade pode tornar-se saudável, e só por meio do pensamento que esse trabalho pode ser feliz, e ambos não podem ser separados com impunidade.

O sedimento de todos estes conceitos aparece em Risco, de maneira visível, no Preludio a toda estética futura publicado na revista La Centuria entre 1917 e 1918. As ideias relativas à arte social, arte colectiva e arte pessoal, bem como à libertação individual e criativa através do trabalho, aparecem em vários capítulos do Preludio. Mas também patenteiam os matizes da absorção das mesmas, mesmo a forma em que Risco concorda e discorda com os ideais de Morris e Ruskin. No capítulo VI do Preludio Risco cita de forma específica Ruskin ao falar sobre o conceito de “arte social”. Risco não concorda com que a “arte social” seja uma arte destinada principalmente ao povo. A arte do povo, “el verdadero y único arte democrático”, é o folk-lore. (Risco escreveria este termo na forma britânica toda a sua vida, às vezes empregando o mesmo termo em alemão). E o folk-lore é a tradição, pelo que contém de originalidade, de sentido histórico e expressão do povo. Neste sentido, está mais em linha com Morris e os românticos alemães do que com Ruskin.

2º. Reims interior.
2º. Reims interior.

As razões deste desacordo encontram-se em que a função da Arte para Risco reside no seu valor para conectar o ser humano, consigo mesmo e com os outros. Tentar alterar a mesma essência da Arte significa um retrocesso no que diz respeito à liberdade de pensamento. Também concorda com Morris na consideração das catedrais góticas como arte social, entendendo por arte social a obra artística que contém o espírito e a consciência latente de uma época. A História vive através dos conhecimentos e as mãos dos que abriram as janelas ou ergueram as torres da catedrais, como também vivem as angústias, as reflexões ou a felicidade das pessoas que conformam o tecido social. Também vive nelas a democracia porque, tal como pensava Morris, a arquitetura gótica é fruto da igual consideração e alta estima de todos os trabalhos e ofícios do povo. Mas a Arte não pode elaborar-se dirigida às massas, senão que na raiz e mestria de cada indivíduo é criada uma obra, a qual forja um laço com os fundamentos de outra pessoa. E isto conduz à identificação de um público e, em conjunto, da sociedade.

3º.-Salisbury-exterior
3º.-Salisbury-exterior

Tendo nascido em finais do século XIX, Risco presenciou igualmente as correntes de revivals na Arte. A influência de Ruskin também está presente no seu ponto de vista a respeito do efeito que tiveram estes revivals. Em As Sete Lâmpadas da Arquitetura, Ruskin defendera a escolha de um Estilo – o Gótico -, tentando interromper o caos e o vazio do ecletismo que predominava desde a arquitetura até ao design. As constantes referências históricas levaram não apenas à reprodução simplificada destes estilos, mas também à ausência de uma autêntica personalidade nos objetos e nos edifícios. Os artistas não eram criadores, mas copistas de outras épocas sem atenderem a mais aspectos além dos formais, sem qualquer sentido de critério intelectual ou capacidade de imprimirem força vital às suas obras. Na ausência de um laço entre criadores e obra – da ausência de gozo e identificação com o trabalho, de subestimar as habilidades únicas do criador, as atitudes feudais e a anulação da outra pessoa – era que residia em parte a neurose social que ataca Ruskin. Risco apoiava as ideias de Ruskin, escrevendo no capítulo XIII do Preludio que “el arte europeo se está repitiendo desde el Renacimiento de un modo lamentable. El Renacimiento detuvo la evolución del gran arte gótico, y secó la inspiración europea de sus fuentes”. Mas a sua alusão foi além, porque neste aspecto também tinha em consideração a libertação do artista. (Algo no que estava na mesma linha que Ruskin e Morris).

4º.-Salisbury-interior
4º.-Salisbury-interior

Na arquitetura gótica, o sentido de proporção, equilíbrio, simetria, harmonia e beleza existe, mas de uma forma muito diferente à arquitetura clássica antiga. Na arquitetura gótica prevalece a construção do edifício com o emprego de arcos apontados; a aplicação de um arco que abre o muro leva a concepção de um sistema interno de pressões e contrapressões perfeitamente ajustado, que, além do mais, permite a independência do edifício. Este sistema não só permite alçar edificações de maior altura, mas também abrir grandes vãos nos muros. O desenho dos grandes vitrais alcançou o seu apogeu na França durante o Gótico Radiante – a Capela Real da Ilha da Cité de Paris – e na Grã-Bretanha com o Gótico Perpendicular – o caso da Catedral de Gloucester (1089-1499) -, permitindo a substituição de paredes de pedra por paredes de vidro. Outro dos legados da arquitetura gótica é a exteriorização das linhas – mediante nervos nas abóbadas em cruzaria, formas geométricas em arcos ou as fan-vaulting (literalmente “abóbada em leque”) em paredes – que conduzem as pressões internas do edifício, assim como o modelo do padrão de repetição: o mesmo arco ou abóbada é disposto em altura e largura no interior, o qual não apenas não rompe a harmonia do edifício, mas produz um espaço de multiperspectivas. Também é importante o facto de que os motivos ornamentais deixam de ser um elemento passivo para ser um elemento ativo na arquitetura. No Gótico Decorado inglês (1250-1380), os arcos, vitrais e paredes são maravilhosos ramalhetes de flores, repleto de detalhes como capitéis de folhas, plantas e animais, esculpidos num estilo naturalista e livre.

5º. Salisbury jardim
5º. Salisbury jardim

Isto é que fez da edificação gótica uma das concepções arquitetónicas mais impressionantes da arte europeia. A arquitetura gótica tornava-se de uma originalidade nunca dantes vista, e por este motivo tornava-se um espaço de experimentação que apelava para o senso artístico e humano. Longe da severa rigidez geométrica, da limitação de temas e motivos da arte clássica, os artistas poderiam atender às ideias que considerem a respeito de atmosfera da luz, a plasticidade das texturas, o ilimitado da medida, a força da dimensão espacial, a elegância e naturalidade da forma, a vitalidade dos motivos decorativos e sentido da transformação da cor. Como estilo o Gótico era completamente oposto ao Clássico e o Classicismo, que na Idade Moderna vieram nas ondas consecutivas do Renascimento, em verdadeiros aspectos do Barroco e o Rococó – particularmente no âmbito francês – e o Neoclassicismo. São estes elementos “góticos” que produzem Beleza, Igualdade, Emoção ou Fé, não a constante cópia superficial de um estilo mais valorizado pela sua categoria social do que pelo que é capaz de trazer às mentes das pessoas. A influência de uma personalidade artística como a de Ruskin é visível em Risco, pois a sua presença foi para os artistas galegos o que Ruskin para Turner, a Irmandade Pré-rafaelita – feminina e masculina – e o Movimento de Artes e Ofícios (Arts & Crafts).

6º. Interior da Santa Capela.
6º. Interior da Santa Capela.

 

 

Notas.

IMAGENS, autoria e propriedade de Iria-Friné Rivera Vázquez.

1º. Vista desde o interior do claustro da nave central e a torre central da Catedral de Caterbury. A arquitetura original é de estilo Normando (1070-1077), seguindo os planos do Arzopispo Lancfranc. A nave, assim como a Capela da Coroa, a Capela Este e a Capela da Trindade, foram construídas entre 1175 e 1184 continuando com o estilo Normando pelos arquitetos Guillermo de Sens e Guillermo O Inglês. O claustro seria somado a catedral entre 1377 e 1405, enquanto as suas naves foram reconstruídas entre 1391 e 1407, predominando o estilo Gótico Perpendicular. Cathedral House, 11 The Precints, Canterbury.

2º. Vista dos rosetóns e a vidreira da entrada principal da Catedral de Reims. Obra dos arquitetos Gaucher de Reims, Jean Lê Loup, Jean D´ Orbais e Bernard de Soissons, a sua construção estendeu-se desde 1210 até 1516, sendo o seu período gótico desde 1210 até 1345. Este espaço sacro era o lugar de coroação dos reis da França desde 987 até 1825. A excepção a este rito foi a consagração da Emperatriz Josefina e Napoleón I em 1804 na Catedral de Notre- Dame em Paris. Place du Cardinal Luçon, Ville de Reims, Marne.

3º. Agulha da Catedral de Salisbury. 1310-1330. Imortalizada pelo pintor romântico inglês John Constable, esta catedral apareceu em dois dos seus lenzos mas famosos: A Catedral de Salisbury, vista desde o jardim do arzobispo (1828, V&A Museum) e A Catedral de Salisbury desde a ribeira (1831, National Scottish Gallery). Esta catedral está muito próxima de outra grande arquitetura representada na pintura: Stonehenge.

4º. Interior da Catedral de Salisbury. A primeira Catedral de Salisbury foi completada em Old Sarum em 1092. Devido aos conflitos militares, a catedral transferiu-se a outra localização. As pedras da sua fundação são de 1220, sendo construídas nestes anos as três capelas este. A edificação, completa em 1266, inclui a Frente Oeste e o Claustro assim como a Chapter House (nela hoje conserva-se, expõem-se e pode ler-se um dos exemplares originais da Carta Magna (1215).

5º. Recanto do claustro da Catedral de Salisbury. A energia que desprende esta composição arquitetónica amostra como toda a arquitetura da catedral move-se entre o estilo Gótico Lanceta e o estilo Gótico Geométrico ( Gótico Decorado Cedo). The Close, Salisbury, Condado de Wiltshire.

6º. Interior da Capela Real da Ilha da Cité. 1241-1248. Alta e espléndida, construída em estilo Gótico #Radiante, trata-se de uma das edificações mas belas da arquitetura gótica. Ilha da Cité, IV Distrito, Paris.

 

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