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Terror e humor

terror humor

Muitas pessoas de meu convívio social ficam surpresas quando descobrem que eu me dedico à literatura. Todavia, algumas delas, muitas vezes, ficam mais perturbadas que admiradas ao saberem que o terror é o gênero de minha predileção.

Terror? Mas você parece ser uma boa pessoa, uma pessoa normal… — soem dizer, intrigadas.

Na mente de muita gente, é pressuposto essencial à escrita de terror que o autor tenha inclinações perversas, anormais. Afinal — imaginam —, apenas uma mente doentia poderia elaborar histórias aterrorizantes.

Eu costumo responder:

—Para escrever uma história de mafiosos, o autor precisa ser um gângster? Se o livro for um romance histórico sobre o nazismo, o escritor tem de portar carteirinha de filiação a partido de extrema-direita? Precisa atirar destramente e andar bem a cavalo para escrever contos de faroeste? Ou ser doutor em astrofísica para falar sobre viagens interestelares? Portanto, não preciso ter caninos pontiagudos, matizados de sangue fresco, para escrever um conto sobre vampiros.

Os que me conhecem como escritor de terror, às vezes, me perguntam:

—Você só escreve terror?

— Não. Às vezes, escrevo contos ou crônicas humorísticas — respondo.

Mas o que o humor tem a ver com terror?

— Tudo — digo. E concluo, citando Stephen King: — Terror e horror são gêmeos siameses.

Muitas vezes, o terror e o humor são mais que xifópagos: eles se mesclam. E surge um híbrido maravilhoso: o terrir, como dizemos os brasileiros. Trata-se — e muita gente não sabe disto — de um gênero muito, muito antigo. “A Matrona de Éfeso”, de Petrônio, escritor romano do longínquo séc. I d.C., constitui-se numa anedota em que o fúnebre se funde ao humor, subjacente uma crítica mordaz à hipocrisia. Na Idade Média, o toscano Poggio Bracciolini escrevia histórias de terror bem-humoradas, como a “Outra História Contada por Angelotto”. E, aliando o horror ao humor, há várias narrativas tradicionais europeias que inspiraram grandes autores, a exemplo de Rebelais, La Fontaine e Teófilo Braga. Uma delas é “A Mulher que Enganou o Diabo”.

Espero que leitor e leitora apreciem “A Lenda do Humano”, ótimo conto de terrir do escritor brasileiro Flávio de Souza. Nele, uma vampiresa adolescente adora espezinhar a irmãzinha, amedrontando-a com assustadoras histórias sobre…  humanos!


A LENDA DO HUMANO

Flávio de Souza

 

— Paaaiiii !!!!! Olha a Helena de novo, pai !!!!gritou a garotinha.

— O que foi desta vez, Lara? O que sua irmã fez? — perguntou o pai, irritado.

— Ela está me assustando de novo. Está falando dos seres humanos que vêm me pegar de dia, pai. Ela disse que eles nos envenenam com alho, jogam a gente em água corrente até derreter, nos queimam ao sol e ainda enfiam estacas no nosso coração. Estou com medo, pai! Não quero dormir sozinha, não. Quero ficar com você e com a mamãe. Vou ficar no caixão de vocês.

— Heleeennnaaaa!!!! — gritou o pai vampiro, chamando a filha adolescente.

— O que foi, pai? Qual o problema dessa vez?

— Você sabe muito bem, mocinha. Que negócio é esse de ficar assustando sua irmã? Você sabe que ela tem medo dessas baboseiras de terror. Por que você faz isso?

— Ah, pai! Ela já é bem grandinha para acreditar nisso, né? Vê se pode! Na idade dela, eu já queria cravar os meus dentes, sozinha, em algum bicho-homem, que a gente tem no pasto, ou até mesmo caçá-lo nas florestas.

— Deixa de história, Helena! Você sabe muito bem que ninguém faz isso. Você está pensando o quê? Que é alguma selvagem, é? Hoje em dia, conseguimos tudo nos mercados, bem prático. Você não saberia abater um humano agora, quanto mais na idade da Lara. Por falar nisso, passarei no mercado antes do amanhecer; já estamos ficando sem O positivo.

— Pai, a Helena disse que os humanos conseguem pensar e até mesmo se misturam entre a gente para nos confundir e enganar.

— Não escute sua irmã, minha morceguinha. Ela está só querendo te assustar. O bicho-homem é criado nos pastos para nos alimentar; o sangue deles é retirado nas fazendas e distribuído nas indústrias onde é separado e engarrafado. Então, é enviado para os mercados para que possamos comprá-los. Venha, coma um bolinho de plaqueta e vá para o seu caixão. Não se preocupe porque eles não pensam e muito menos se misturam entre nós para poder nos fazer mal.

— Está bem, pai, bom dia!

— E você — hein? — dona Helena…

— Ah, pai! Não esquente! Pai, por falar nisso, eu vou sair com a Ingrid, com o Ivan e o Jean. Nós iremos naquela boate nova e devo chegar durante o dia…

— Helena, você sabe que é perigoso durante o dia. Você quer virar torrada, é?

— Não se preocupe, pai. Eu já passei aquele superprotetor solar, mas se o sol estiver bastante forte, nós voltaremos pelo túnel, o pedágio é bem caro, mas o Jean é rico, ele pode pagar. Eu não sou uma vampira de sorte?

— É, deve ser, sim. Quando é que ele virá aqui?

— Ah, pai, a gente está se conhecendo ainda. Ele quis vir, mas eu não deixei, está muito cedo ainda.

Os dois casais foram para o “DAY” e se divertiram como nunca. Dançaram, comeram, beberam todas, como se diz por aí. Coquetéis de hemácias, drinks suaves com glóbulos brancos, misturaram sangue tipo B com O negativo. Já tarde do dia, resolveram ir embora. Ingrid e Ivan em um carro e Helena e Jean em outro. Este jovem, por sinal, pagou as despesas de todos na boate e pagou, também, o pedágio no túnel expresso para os dois carros, para que todos pudessem chegar em suas tocas em segurança.

Feliz da vida, a amiga Ingrid vira-se para seu namorado Ivan e comenta:

— Sabe, Ivan, a Helena é uma vampira de sorte mesmo: o Jean é um vampiro incrível.

Enciumado, o rapaz comenta:

— Puxa, e você não, vampirinha? Eu sou um morcego legal…

— Claro que é, Ivan! E eu tenho muita sorte, também, por ter você. Só estou comentando isso porque gosto de ver minha amiga bem, embora ela pegue muito no pé da Larinha, coitada; ela fez a vampirinha chorar sangue na noite passada com a história dos humanos que nos caçam.

— Ah, mas tenha dó, né, Ingrid? Hoje em dia as crianças não acreditam mais nessas historinhas de terror, coisas que não existem, né?

— Claro que não, essas coisas não existem…

Se Ingrid tivesse prestado um pouquinho de atenção no carro dos amigos, teria percebido que este acessara uma saída de emergência no túnel lacrado, a qual dava direto para o espaço aberto, com o sol fervendo. Teria reparado também na água benta que queimava no rosto de Helena, atirada por Jean, que se preparava lentamente, retirando uma estaca afiada de dentro do sobretudo…

[Outras narrativas de Flávio de Souza podem ser lidas no sítio da FREBOOKS EDITORA VIRTUAL]


Terror e humor são gêmeos siameses.  Ninguém segura um riso ou evita um arrepio de cabelos. Não são sentimentos, mas reações involuntárias. Tão humanas quanto desumanas.

Mas há algo ainda mais profundo. Imensamente profundo.

Não foi à toa que o genial Baudelaire escreveu sobre Allan Pöe:

Nenhum homem, eu repito, narrou com igual magia as exceções da vida humana e da natureza; os ardores de curiosidade da convalescença; os finais de estações carregados de esplendores enervantes, os tempos mornos, úmidos e brumosos, em que o vento do sul amolece e distende os nervos como as cordas de um instrumento, em que os olhos se enchem de lágrimas que não vêm do coração; a alucinação deixando a princípio margem para dúvida, e, depois, convicta e racional como um livro; o absurdo se instalando na inteligência e governando-a com uma lógica aterrorizante; a histeria usurpando o lugar da vontade, a contradição estabelecida entre os nervos e o espírito; o homem discorde consigo mesmo a ponto de exprimir a dor pelo riso.

Vale a pena  ler e reler a última frase.

Genial, não?

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