Sobre Galizas irredentas e redimidas

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Alguém definiu como Galiza irredenta aquela parte do País que hoje faz parte de outra administração regional (espanhola) diferente da galega e ainda conserva a memória e a prática de falar a língua dos galegos. Portanto, se a essa definição nos cingirmos, teríamos de identificar como tais as regiões do Eu-Návia nas Astúrias, o Berzo leonês e as Portelas senabresas e ainda há quem inclua o Vale do Jálima no canto noroeste da Estremadura leonesa. Mas os paradigmas mudam e felizmente o ser humano é capaz de repensar e reconstruir os conceitos e a realidade passada tentando descobrir aquelas partes da História que nos são desconhecidas ou que por alguma razão, talvez política, nos estão ocultas.

Se por irredenta identificarmos aquela que não está redimida, isto levaria-nos a considerar que no conjunto dos espaços históricos que nos aparecem nos textos legais e linguísticos com o nome de Galiza, existe algum deles considerado como Galiza redimida. Há outras Galizas, portanto, consideradas assim do ponto de vista histórico e que contrariamente à Galiza que hoje é uma região da Espanha, conseguiram finalmente a redenção. Estou a falar, evidentemente do Portugal originário que autores medievais andaluzis reconheciam incluídas neste nosso topónimo. Assim, Abu-l-Fida, (أبو الفدا) inteletual damasceno do século XIII fala-nos do Rei de Portugal como da família Henriques (Ibn Alryc) nos seguintes termos:

Ibn-Alryc cuja dominação se estende sobre a parte ocidental de Al-Andalus, assim como pelo Sul da Galiza. Não fica mais no poder do Islamismo do que o reino de Granada e as suas dependências, tais como Algeciras e Almeria

Desejamos deixar muito claro, que a nossa vontade é idêntica a de Castelão e Soares Picalho que escreveram uma memorável e crítica carta a Oliveira Salazar que vendeu galegos confiantes na bondade histórica dum Portugal pró-galego às mãos do franquismo anti-português (1). Não é, portanto, gerar ideias que comprometam o conceito de um Portugal livre e independente mas tudo o contrário, é, no entanto, reafirmar a sua liberdade e soberania como uma parte libertada do que um dia foi a Galiza medieval e, se como sabemos, Portugal se fez com terras consideradas historicamente galegas, por gentes consideradas historicamente galegas e com uma língua identificada como galega em origem, isso leva-nos a prolongar a existência de Portugal muito para atrás de 1139 ou mesmo do século X que é quando aparecem os primeiros textos onde se identifica o território portucalense como um espaço territorial coerente e com personalidade.

Se Portugal recebe este nome que têm é por razões político-históricas muito evidentes e perfeitamente compreensíveis dentro do contexto político peninsular que ajudaram a manter a realidade política criada por Afonso Henriques e ainda a realidade humana existente desde antes dos primórdios da sua independência a ambas beiras do Rio Minho… Com certeza que se Portugal fosse denominada desde um princípio com o nome de Galiza, com toda a legitimidade histórica e etimológica, aquilo que hoje recebe esse nome para norte do Minho, não se chamaria nem Reino de Galiza, durante os séculos de dependência da Coroa Castelhana, ou Comunidade Autónoma de Galiza desde 1980 até hoje, porque a Coroa de Castela faria com que as denominações geográficas e políticas não lhes fossem obstáculo para o seu labor imperial, como também não ajudariam a sustentar identidades transfronteiriças que favorecessem atrações indesejadas pelo seu projeto expansionista, existente ainda a dia de hoje, embora oculto sob um contexto sócio-político e histórico global que não reconhece formalmente esse tipo de designações num mundo ocidental teoricamente democrático, ainda que exista como realidade manifestada constantemente no contexto da política mundial na que se inclui o constructo político herdeiro da Coroa de Castela. Certo que a feia palavra que se quer esconder é aplicada de forma mais hábil do que antes, e também mais violenta… e também mais eficaz.

Portugal existe sócio-nacionalmente porque foi parte histórica da Galiza, tendo herdado do primeiro Reino Medieval da Europa Ocidental muito mais do que terra, língua e gente. Se o Rei Garcia, o mal-fadado, herdou do seu pai as párias dos Reinos muçulmanos de Badalhouce e Sevilha, Portugal completou-se com as regiões ocidentais desses reinos: as atuais regiões da Estremadura portuguesa, do Alentejo e do Algarve. As orientais, isto é as atuais Estremadura emeritense mais as atuais Ónova (ou Huelva), Sevilha e Cadis, foram finalmente incluídas dentro das zonas de expansão galaico-leonesa porque também faziam parte do projeto nacional originado no noroeste peninsular. A divisão de Badalhouce e Sevilha entre Portugal e Galiza (com Leão) diz às claras quais são as identidades políticas tanto galega como portuguesa enquanto lembramos que ao Leão herdado pelo Rei Afonso VI, que provavelmente ocupava um espaço muito menor do que se lhe estabelece na historiografia tradicional castelhana, lhe correspondia, em realidade, as párias do Reino muçulmano de Toledo, considerado como primeiro território da Espanha incorporado ao também histórico espaço galaico mas não herdado de Garcia,

No entanto não podemos calar o que nos diz Rafael Lapesa (2) citando a Menendez Pidal, que nos textos romances dos séculos XII e XIII aparecem grande número de “restos dialetais” e um documento da Alcarria de 1189 com “outorguet”, “oitaua”, “parello”; um toledano de 1191 com “mulleres”, “fillos”; ou o Foro de Madrid anterior ao 1202 no que aparecem formas léxicas como “tella, “cutello” ou “geitar”. Também nos diz Alonso Zamora Vicente que existe um documento de 1185 em Matilla de la Seca na atual Comarca de Touro na atual província de Samora, muito perto da fronteira provincial com Valedolide e para Leste do Rio Aradoi (Araduey em castelhano) que apresenta todas os carateres galego-portugueses (3). Não esqueçamos que a língua do Rei Afonso VI e com certeza a língua da Corte era a que segundo Prudêncio de Sandoval, “se usava” naquela altura.

Por outra parte há mais de Galiza em Portugal do que pensamos: a configuração territorial que os galeguistas dos século XIX e XX reclamavam como próprias, quer dizer, a Comarca ou Bisbarra e as Paróquias Rurais reconhecidas legalmente no Estatuto de Galiza mas ignoradas por todos quantos governos passaram por Santiago de Compostela estão vivas em Portugal com o nome de Concelhos, as primeiras, e Freguesias, as segundas, evitando o despovoamente muito melhor do que a organização espanhola em Galiza, e favorecendo a criação de vida e de riqueza local muito melhor do que mais de trezentos inúteis Concelhos galegos que por não terem, nem têm comunicações adequadas que favorecerem a habitação e repovoamento com gente jovem.

As linhas estratégias e alianças territoriais históricas de Portugal são igualmente as reivindicadas por aqueles galeguistas do oitocentos e do novecentos, isto é o atlantismo do que tanto falava Vicente Risco por um lado e o mundo britânico por outro. Lembremos que a aliança mais antiga em vigor existente na Europa é o Tratado anglo-português de 1373 em que Inglaterra e Portugal assinam um pacto de amizade eterna. Um dos protagonistas desta aliança foi o Conde galego João Fernandes de Andeiro, que fez de nexo entre ambos Reis, enquanto os exilados galegos em Portugal e o próprio Conde de Andeiro traçam um plano de ataque a Castela que culmina com a derrota castelhana em Aljubarrota em 1385, renovando-se a aliança com os ingleses ao ano seguinte em Windsor. Esta política galega exercida durante toda a Idade Média, denominada atlantista e da que tanto nos falam os nossos historiadores, conta com ações precursoras como a ajuda dos cruzados ingleses na conquista de Lisboa ou Santarém, que as fontes e o próprio Saramago reconhecem tomada por galegos, mas galegos portucalenses, identificados como tais na altura, não, com certeza, galegos da Galiza compostelana. Mas anteriormente à guerra de Sucessão castelhana e anteriormente à expansão portuguesa pelas terras mouriscas do Leste do Reino de Badalhouce e do de Sevilha, já Diogo Pais, propus a William the Conqueror como Rei de Galiza em 1087. E ainda podemos ir mais longe pois já no século IX o Rei Egbert de Wessex, popular pela série televisiva “Vikings” dá em matrimónio à sua filha Mília de Wessex ao Conde de Monte Rosso Rodrigo Romães, ambos trisavôs de São Rosendo e consequentemente familiares da família real galaica.

Era a política de aquele Reino da Galiza, tão ignorado nem só pela historiografia castelhanista mas também pela portuguesa, do qual nasce Portugal. E podíamos ir mais longe ainda e chegarmos até o Bronze Atlântico pré-histórico, onde a viagem às Ilhas Britânicas levava quatro dias com climatologia e vento a favor, contrariamente a uma expedição mercantil ao centro peninsular que levava quase vinte dias. Esse facto tão fácil de demonstrar e tão fácil de identificar como a génese do mundo cultural atlântico que chega até o dia de hoje, é no entanto muito difícil de reconhecer sob o nome de “celta” pelos paradigmas dominantes na Galiza dirigidos desde a política cultura de Madrid

O século XV tem sido decisivo para o afastamento entre a Galiza e Portugal. A Batalha de Touro dentro do contexto da guerra pela sucessão castelhana entre Joana de Trastâmara e a sua nefasta irmã Isabel, tem sido o final da tentativa pro-portuguesa de reclamar a Galiza. Isso, e a limpeza que a funesta e muito católica Isabel I de Trastâmara fez contra a nossa nobreza, ajudou e que as costas viradas fossem uma forma de conceber a política por parte dos dirigentes galegos até o dia de hoje, onde a mediocridade, a submissão e a pusilanimidade são a norma. Fernandes Alvor, Gonçales Laje, Peres Tourinho ou Nunes Feijó cumprem com essa função e atendem a essa definição do nosso ponto de vista, mas não assim Fraga Iribarne que tinha como objetivo retorquir e contraditar o labor de Castelão, Bóbeda e os galeguistas da primeira metade do século XX para o qual se precisava um político adepto ao regime, o suficientemente sobressaliente e com um discurso galeguista sob o qual os galegos se sentissem seguros e bem chefiados.

A tomada de consciência de Portugal no que diz respeita da recuperação do seu passado…, de todo o seu passado, mesmo o anterior a Afonso Henriques, há de ser, do nosso ponto de vista, libertador, gratificante e até fonte de empoderamento no contexto peninsular. Já não há império português e agora Portugal está como estava no século XV quando a Galiza era uma opção e Castela o problema da Península Ibérica. Galiza continua sendo uma opção estratégica e Castela, desta vez em descomposição, continua a ser o problema; o atlântico continua a ser uma saída e os amigos insulares do norte uns aliandos a ter em conta. Evidentemente as guerras medievais passaram a história como uma obsoleta, absurda e inútil metodologia política de confronto para estudar mas não para seguir. A diplomacia portuguesa, também a mais antiga do continente, junto com a vaticana, porque era a diplomacia nascida na Galiza sueva para tender laços de amizade com Bizâncio, contra os visigodos, ou na Galiza alto-medieval para conseguir alianças com Carlos Magno contra Al-Andalus, está presente na hodiernidade e deve ser conhecida e tida em conta pelas formações políticas galegas que algo querem em positivo da Galiza. Galiza está viva, só há que fazer que acorde conhecendo o seu passado e estimulando a sua memória e a sua prática política histórica, mas com certeza é que não falo dessa Galiza que nos apresentam os média e a escola, submissa e resignada, afeita à subserviência e motivo desse escárnio histórico com o que Madrid se sente cómodo para facilitar o seu supremacismo. Não. Falo da Galiza empoderada e dona de si própria, inteligente nas suas praxes políticas e entroncada com o que ela própria criou no passado por ter sido o primeiro Estado da Europa após Roma.

Referências

1- Vd http://bloguedominho.blogs.sapo.pt/1231456.html

2- Lapesa, Rafael: Historia de la Lengua Española. Ed. Gredos. 9ª Ediçao, 7ª Reimpressao. Madrid. 1991

3- Zamora Vicente, Alonso: Dialectologia española. Ed. Gredos. 2ª Edição e 5ª Reimpressão. Madrid. 1989.