Partilhar

Sensibilizar os escolares na cultura popular, com o documentário “O Carro e o Homem” de António Román

Ao redor da data do 1º de Maio, festa internacional do trabalho, é conveniente sensibilizar os estudantes de todos os níveis educativos no apreço pelo trabalho e os/as trabalhadores/as, e também pela cultura popular. Organizando atividades adequadas nos estabelecimentos de ensino, e entre elas o funcionamento de uma oficina pedagógica de artesanato. Também criando um clube de festas populares e tradicionais, como a dos Maios, muito próxima a esta data, pois na Galiza se celebra em muitas localidades entre o primeiro de maio (em Ponte Vedra, Marim, Vila Garcia de Arouça…) e o 3 de maio (Ourense e Laça, por exemplo). Para refletir sobre tema tão atrativo e importante, escolhi desta vez um lindo documentário de carácter etnográfico, rodado em Lobeira após a guerra pelo diretor ourensano António Román, com roteiro do grande etnógrafo Joaquim Lourenço, sob o título de “O Carro e o Homem”.

António Román, diretor
António Román, diretor

Realizado no ano de 1940 este filme é um estupendo documento etnográfico galego. Nos inícios da ditadura franquista o diretor de cinema, ourensano de nascimento, António Román e seu amigo Joaquim Lourenço (“Jocas”), rodaram o primeiro e possivelmente único filme galego de carácter etnográfico. A fita recolhe dum modo simples e didático o como, por quem e para quê se fazia um carro, esse elo chave na vida rural galega. António Román naquela altura estava nos inícios da sua carreira, tinha uma elementar equipa de rodagem e contava com o financiamento de uma incipiente e pequena empresa de amigos, que já lhe servira para realizar outra curta-metragem intitulada “Canto da emigração”. Joaquim Lourenço cumpriu fenomenalmente como chefe de produção e roteirista, de tal maneira que a comarca de Lobeira e Bande empenhou-se completamente na rodagem e o “Jocas” até teve que sacrificar um carvalho da sua propriedade. Os vizinhos tomaram a rodagem com ares de festa e a pequena equipa integrada por Carlos Serrano de Osma, o próprio “Jocas” e António Román, contou com a humana colaboração de protagonistas anónimos portadores inconscientes de uma popular cultura. Incorporado à sua primeira longa-metragem, Román deixa o material filmado nas mãos do seu ajudante Serrano. Como a fita era de material inflamável, a cópia do filme foi destruída por precaução ou por descuido, salvando-se unicamente o copião do trabalho que foi depositado no Museu Arqueológico de Ourense. Inteirado o cineasta ourensano Eloi Lozano da sua existência, iniciou as gestões oportunas para recuperar o filme e, já nas suas mãos o citado copião, em formato de 35 mm, que no seu dia foi projetado pelo Cine Clube “Padre Feijóo” na Casa da Cultura ourensana pela primeira vez, logrou com o seu esforço a recuperação total do documentário e a edição de cópias do mesmo em 35 e 16 mm. Limpo de pó o material fílmico, fez-se cargo do mesmo o Museu do Povo Galego, que distribuiu posteriormente as cópias nos formatos antes citados para serem exibidas em diferentes lugares da Nossa Terra. Desta forma iniciou-se uma nova produção, ao tempo que se conceituava a obra como nobre paradigma que encabeçaria um arquivo aventuradamente qualificado, e sem modéstia, como Filmoteca da Galiza.

À imagem se lhe pôs um texto muito nostálgico de “Jocas”, suprindo na banda da música as acartonadas alvoradas e alalás por funcionais “collages” de temas clássicos. Visionado agora o filme surpreende o bom critério para a escolha do tema por parte dos realizadores, já que a 75 anos vista, o filme desprende um profundo halo poético do que carecem, pelo contrário, as produções posteriores denominadas galegas. Não admira que ao ver “O Carro e o Homem” nos remetamos intuitivamente para o cinema russo e, concretamente, para “Três cantos sobre Lenine”, de Dziga Vertov. Reina em toda a fita uma vontade exaltada do trabalho coletivo e comunitário.

Estas considerações devem tomar-se como sugestões, já que o principal em “O Carro e o Homem” é o seu valor de documento, máxime quando o lento carro foi substituído pelo quase que mais lento trator, monstrinho de ruido e fumo. Palpita no filme um mundo que está entre nós, mas que já agonizou. Reconheceremos a ambientação sem perceber que o que ali sucedeu em imagens possui valor de arquivo e com estupor afirmaremos que tudo foi assim até há bem pouco. Contudo, o filme deve tomar-se como um verdadeiro exemplo de cinema que se tem que rodar na Galiza, porque temas há infinitos, e, por desgraça, agás os trabalhos de Chano Pinheiro e seus continuadores, o cinema galego ainda tem um longo caminho a percorrer.

FICHA TÉCNICA DO FILME-DOCUMENTÁRIO:

  • O carro e o homem Foto00Título original: O Carro e o Homem.
  • Diretor: António Román (Galiza, 1940, 12 min., a preto e branco).
  • Roteiro: Joaquim Lourenço e António Román.
  • Montagem: Carlos Serrano de Osma. Fotografia: A. Román.
  • Narrador: Joaquim Lourenço (“Jocas”).
  • Produtora e distribuidora (depois de recuperada a fita): Museu do Povo Galego.
  • Nota: Este documentário pode ser visto na sua íntegra no Youtube e no Vimeo.
  • Atores: Vizinhos e vizinhas da comarca de Lobeira (Ourense). Atores anónimos.
  • Argumento: O documentário trata de como antigamente se fazia o famoso carro galego de vacas ou bois. Era o famoso 4 x 4 galego, o todo-o-terreno que passava por todos os sítios, pois poucas estradas havia e os caminhos não eram bons. Foi este um dos primeiros filmes rodados na Galiza.

UM MODELO DE DOCUMENTÁRIO ETNOGRÁFICO E DE CULTURA POPULAR:

Foram muitos os temas da nossa cultura que interessaram ao excelente etnógrafo Joaquim Lourenço. Mas foi o do carro de bois um dos que ocupou a maior parte do tempo das suas investigações de carácter etnográfico. Quando ainda tinha 16 anos, realizou na sua aldeia de Facôs (Lobeira) um interessante trabalho de recolha de nomes das peças do carro e depois construiu uma maqueta sobre o mesmo. O seu primeiro trabalho não passou despercebido a Florentino Lôpez Cuevilhas, que o animou a continuar o labor iniciado sendo tão jovem. Joaquim seguiu o conselho de Florentino e o trabalho, já melhorado e completado, serviu para a defesa do seu ingresso no Seminário de Estudos Galegos (S.E.G.) como membro de número. Com 32 anos publica numa revista alemã de Hamburgo o seu primeiro trabalho sobre este tema. O título em galego é «O freio no carro galego». Estamos no ano 1939, um ano antes de iniciar na comarca de Lobeira a filmação das imagens do documentário O carro e o home. A filmação foi realizada durante dez dias do verão de 1940 nas terras de Lobeira. Mais tarde, nos anos 1956 e 1957, publica em castelhano dous trabalhos sobre o carro. O primeiro na revista madrilena de Dialectología y Tradiciones Populares com o título «Nomenclatura del carro gallego». O segundo na revista da Universidade de Cuyo (Mendoza-Argentina) Anales del Instituto de Lingüística sob o título de «El carro en el folclore gallego». Este artigo, um pouco ampliado, foi de novo publicado no ano 1974 na revista de Dialectología anteriormente mencionada. Foi publicado em galego no ano de 2003 pelo Museu do Povo Galego na sua coleção «Alicerces». Preocuparam também a Joaquim temas vinculados de uma ou de outra maneira ao tema do carro: os jugos ou cangas, os carretos, os fragueiros, as cantigas, etc. Deste jeito já no ano 1935 publica na revista Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia do Porto (Portugal) um artigo com o título de «A arte popular nos jugos da Galiza». No 1967, sob o título de «Distribuição dos jugos na Galiza» publica um trabalho nas Actas da 1ª e 2ª Assembleias Luso-Galegas organizadas pela RAG. Mais tarde, no ano 1974, no Boletín Auriense publica «O carreto na Límia Baixa». Não podemos esquecer tampouco o seu excelente trabalho «Etnografia. Cultura material», que constitui o segundo volume da História da Galiza dirigida por Otero Pedraio e publicada em Buenos Aires pela Editorial Nós no ano 1962. Ao falar dos ofícios faz uma referência aos serranchins (serradores) e aos fragueiros, que são os carpinteiros dos carros. Interessantes desenhos seus ilustram estes trabalhos.

Joaquim Lourenço, roteirista
Joaquim Lourenço, roteirista

A paixão de Joaquim pelo tema do carro era tão grande que, tal e como nos contam os seus ex-alunos do Colégio Cardenal Cisneros de Ourense, aproveitava todos os momentos para falar do carro e a sua importância na vida do povo galego. Recomendava, inclusive, aos alunos a recolha dos nomes das partes do carro nas suas comarcas subministrando-lhes uma ficha para o fazer. Aconselhava também a construção de pequenas maquetas de carros, que depois eram expostas nas aulas do centro educativo antes mencionado. Esta formosa estratégia educativa utilizada por Joaquim Lourenço é resultado da influência que nele tiveram Otero, Risco e Cuevilhas, que além de seus mestres eram seus grandes amigos.

Tudo o que venho de indicar anteriormente explica o porquê da implicação total de Joaquim Lourenço na realização dum dos melhores – senão o melhor – documentários do cinema galego. Mas o projeto foi possível porque se conjugaram ao mesmo tempo várias circunstâncias, além do próprio interesse do nosso etnógrafo. Em primeiro lugar, a sua amizade com António Román, quatro anos mais novo do que ele, também ourensano de família de boticários, apaixonado pelo cinema, formado nos anos vinte e trinta no mundo das imagens. Posteriormente chegaria a ser um dos mais importantes diretores do cinema na etapa franquista. Em segundo lugar, também a amizade iniciada no ano 1933 com o investigador alemão Hans-Karl Schneider, discípulo do catedrático de Línguas Românicas da Universidade de Hamburgo Fritz Krüger. Joaquim acolheu-o na sua casa de Facôs e manteve com ele uma prolongada amizade e intercâmbio de trabalhos. Segundo nos tem contado Júlio Medela – presidente da associação cultural Leboreiro – foi muito importante o fornecimento dos métodos de investigação alemães aos trabalhos de pesquisa de Joaquim, entre os quais estavam a fotografia e o cinema, especialmente documental. Na opinião de Medela seria muito importante aprofundar, por meio de investigações sérias, no papel e valor que tiveram as visitas e estudos durante vários anos de Schneider – sempre na companhia de Joaquim – para o conhecimento da comarca da Baixa Límia, e, em concreto, para a realização do documentário O carro e o home. O próprio Medela assinala que existem alguns pontos obscuros sobre a rodagem do filme e que seria bem entrevistar os que ainda vivem em Lobeira e que aparecem nas imagens fílmicas. Existe inclusive a dúvida de se o próprio António Román, diretor do filme segundo a ficha técnica, foi alguma vez rodar as imagens. Esta dúvida teria que ser dissipada quanto antes. Em terceiro lugar, e por último, a importante coincidência de que no ano 1940 se constituísse por um grupo de amigos, e Román entre eles, a Produtora Associada de Cinematografia Espanhola, S.L. (PACE), que, com um capital inicial de vinte e cinco mil pesetas, decide rodar quatro documentários dirigidos pelo ourensano. Os seus títulos iam ser Mérida, Al borde del gran viaje, De la Alhambra al Albaicín e El hombre y el carro. Conta-se para isso já com uma importante infraestrutura e uma câmara profissional de 35 mm., que vai manejar o excelente camarógrafo Carlos Serrano de Osma, colaborador de Román.

Mas deixemos que sobre este tema falem o diretor Romám e o etnógrafo Lourenço: «Um dia, António Román veio a Lobeira e esteve connosco na casa. Eu indiquei-lhe a minha ideia: fazer documentários sobre o campo, documentários etnográficos e não essa tomada de vistas sem mais que costumavam ser os documentários da época. A minha ideia era colher o tema, quer fosse um instrumento de trabalho, quer um labor, e fazer deles o protagonista do filme, contar a sua vida desde que nasce até que morre. Pus-lhe o exemplo do carro e a ele pareceu-lhe muito bem» (…) «Em Lobeira, antes da guerra, estivera também Carlos Velo fazendo um filme documentário, assim que a gente já tinha uma ideia do que era a cousa» (…) Eu o único que fazia era que aquilo tivesse sentido comum». Palavras todas estas de Joaquim Lourenço, bem significativas, que explicam o processo inicial do filme que estamos a comentar.

Pela sua parte Román comenta: «Fez-me muito efeito a história que Joaquim Lourenço me contou, que na Galiza o carro tinha uma vida muito similar à do homem, porque nascia e vivia ao seu lado. Havia peças que iam rompendo e então iam-se substituindo, mas quando o eixo, que era a alma do carro, se rompia, já o carro ficava inservível, morria. Então o camponês colhia o carro e o pendurava numa parede do estábulo e ali ficava, como enterrado. A vida do carro ia em paralelo à do homem».

BIOGRAFIA DO CARRO DE VACAS:

O carro e o homem Foto6O primeiro título que se pensou para o documentário que se ia rodar foi o de «Biografia do Carro», um título bem expressivo para dar aquela ideia de que este aparelho é como um ser vivo, que mesmo «canta», seguindo de forma cronológica a sua trajetória. Introduzindo na mesma história linear os distintos labores do campo: malha do centeio ou trigo, o trabalho do linho, nomeadamente a maçadura e fiadas, os carretos, os teares… sendo o carro o fio condutor, assim como a sua construção pelos fragueiros, depois de cortar os serranchins a árvore e a madeira do carvalho. Joaquim prestou toda a sua colaboração desde o primeiro momento. Deu um carvalho da sua propriedade para construir o carro, que se pode ver no filme deitado pelos serranchins. Falou com o sacerdote da paróquia para que autorizasse junguir os carros no domingo e poder utilizar o dia de descanso pelos vizinhos que participavam na rodagem, verdadeiros atores naturais não profissionais, que lhe dão às imagens fílmicas uma veracidade e espontaneidade insuperável. Ao estilo dos mais importantes documentários semelhantes de outros países e cinematografias, dos mais destacados da história do cinema. Román, Serrano de Osma e Joaquim foram os desenhadores do guião do filme, embora a participação do nosso etnógrafo seja mais importante e decisiva, com um manejo muito bom da câmara por parte do camarógrafo que nos lembra em todo o momento os melhores camarógrafos e fotógrafos do cinema russo dos anos vinte.

Terminada a rodagem, tal e como nos contam Pepe Coira e o ribadaviense Emílio Garcia, professor de Cinema da Faculdade de Ciências da Informação da Universidade Complutense, que consultaram os arquivos do Ministério de Cultura, para seguir os passos do documentário que estamos a analisar, a trajetória do mesmo foi bastante peculiar e surpreendente. Segundo consta nos mencionados arquivos, a produtora P.A.C.E. solicita a licença para a rodagem no verão de 1940 e foi-lhe concedida a mesma com data de 31 de Julho desse ano. De dez a vinte de Agosto parecem ser as datas durante as quais se rodaram as imagens. Contudo no expediente do filme arquivado no Ministério figura que a rodagem teve lugar entre 10 de Agosto de 1940 e 31 de Agosto de 1945 (sic), passando a censura correspondente com data de 3 de Setembro de 1945. Chegando a receber um prémio do Sindicato Nacional do Espetáculo. Do filme chegaram a circular até seis cópias em 35 mm. A quinta cópia foi solicitada em 4 de Outubro de 1948 por Balet y Blay, S.L. (Gravada nos laboratórios barceloneses da CISAE) e a sexta foi tirada em 25 de Janeiro de 1949 nos laboratórios «Cinematiraje Riera». O certo é que ao voltar a Madrid António Román, antes de iniciar o seu labor de diretor de longa-metragens – abandonando portanto o cinema documental – enviou-lhe a Joaquim Lourenço o copião do filme e o etnógrafo depositou-o no Museu Arqueológico Provincial de Ourense. Quarenta anos depois, em 1980, foi encontrado e recuperado pelo cineasta ourensano Eloi Lozano Coelho, naquela altura na direção do Cineclube «Padre Feijoo» – em cuja sala da Casa da Cultura foi visionado pela primeira vez – e dono da produtora Praia Lenta Filmes. Com o apoio do Museu do Povo Galego, do mencionado copião foram tiradas cópias em 35 e 16 mm., respeitando a montagem original, mudando contudo a sonorização com música clássica – rejeitando a música galega folclórica que tinha de «alálas» – e aproveitando a voz própria de Joaquim Lourenço que vai comentando desde o início todo o que se vai vendo em imagens. Mudando também o título de «El hombre y el carro» polo galego de «O carro e o homem». Com este filme iniciou-se o que ia ser a Filmoteca da Galiza, que por avatares políticos típicos da nossa terra, durou pouco tempo. Muito posteriormente o MPG editou este filme em VHS para a sua venda.

A POÉTICA DE UMAS IMAGENS:

Román dizia que Homens de Aran de Flaherty – Serrano chamava-lhe «cinema verdadeiro» – era «a grande epopeia da luita entre o homem e a Natureza». A influência de Flaherty em O carro e o homem é mais que evidente. Mas também a de S. M. Eisenstein, a de Dovjenko e especialmente a de Dziga Vertov com o seu famoso filme Três cantos sobre Lenine. Tal como sinala Emilio Garcia: «Do ponto de vista cinematográfico cabe assinalar o relato descritivo que se deu à história com o fim pedagógico de amostrar os vínculos que se estabelecem entre o homem e o carro, a casa e o campo, e como a vida pode ser outra com a existência desse meio de transporte-trabalho e sentir a sua ausência quando o tempo rompe a vitalidade do seu eixo». As imagens vão evoluindo de forma serena… sem deixar de mostrar o valor do trabalho comunitário na aldeia, que algum dia houve na Galiza. O planeamento do filme, o jogo com os planos – primeiros e gerais – os movimentos de câmara, estão conseguidos de forma magistral. O espetador fica surpreendido vendo a poética das imagens de Serrano e Román. Tudo está equilibrado: os gestos, os momentos dos diferentes labores, as crianças, as moças a maçar o linho, a velha fiando na roca, a cena dos malhos seguindo um compasso e o grupo de carros descendo pelo monte, num plano tipicamente eisensteiniano. O jogo de luzes e sombras, as contraluzes, estão também logradíssimas. É de salientar o bem que se recorta no horizonte o plano da terra, o céu e o sol. Sem esquecer os numerosos planos de detalhe que há no filme: os rostos dos atores não profissionais, a criança com o seu carrinho, as mãos, as maças, os malhos no ar, etc., que lhe dão ritmo à história e nos lembram o melhor do cinema mudo de todos os tempos, o russo, o de Murnau e o de Falherty. Em conjunto o filme é um verdadeiro poema comparável aos melhores documentários da história do cinema. Um modelo de documentário fílmico e etnográfico. O melhor sem dúvida que se tem feito até agora na Galiza.

Pela sua parte, o verdadeiro recuperador do filme, Eloi Lozano diz-nos: «Palpita em O carro e o home um mundo que está entre nós, mas que agoniza. Reconheceremos a ambientação sem perceber que o que ali sucede em imagens possui o valor de arquivo e com estupor afirmaremos que tudo foi assim até há bem pouco».

Román, Serrano, Joaquim Lourenço e os vizinhos de Lobeira, verdadeiros atores, em todos os sentidos, conseguem ao final uma obra de arte, deixando para a posteridade um documento vivo e autêntico sobre o carro galego, que deu lugar a tantos cantares e cantigas, menos, segundo o nosso etnógrafo, das que realmente merecia pela sua importância na vida dos galegos do rural, que tão bem recolheu Joaquim Lourenço. Vêm-nos à memória algumas, que vamos transcrever como homenagem aos autores e atores do filme e ao nosso entranhável etnógrafo.

«Neste lugar de Facôs
não entra carro ferrado
senão o traz o Manoel
com o burrinho pelo rabo» (Lobeira)

«Arde-lhe o carro,
que eu bem lho vim;
arde-lhe o carro
aos de Verim».

«Para cunhas, pau de tojo;
para estadulhos, carvalho,
e para as moças bonitas
o cabeçalho do carro» (Cantar de toda a Galiza)

«Se queres que cante o carro,
se queres que o carro cante,
se queres que cante o carro,
a paga deve ir por diante» (Cantar de Ourense)

AS LINDAS PALAVRAS DO ROTEIRO DO FILME:

Recolho a seguir o texto que vai narrando com a sua própria voz o nosso etnógrafo, pois considero que é um excelente documento com um profundo significado para a nossa cultura popular. Eis o texto:

«Aqui temos a terra da Límia Baixa regada pelo rio do olvido, o nosso rio Límia, onde se vai seguir a vida dum ajudante do nosso camponês, quase que um familiar: o carro.

O carpinteiro especializado, o fragueiro, vai na procura da árvore, da que vai sair o novo carro. O carvalho é necessário que esteja bem medrado para que responda aos trabalhos que se lhe vão exigir. Entram em jogo o machado e o tronçador. E a árvore cai.

De imediato, cortam-se as diversas partes perfeitamente classificadas e preparadas para o seu transporte. Os vizinhos com os seus carros acodem para levar os troços da árvore à oficina do fragueiro que dará começo ao seu trabalho. O traslado, que é gratuito, recompensa-se com uma comida que é quase uma festa para os vizinhos.

Entretanto, na oficina vai cortando as tábuas e começa o fragueiro o seu trabalho: explica-se com detalhe o desenho e o equilíbrio que deve existir no traçado de cada cheda, cadeia e o selhado com os quais o carro toma corpo, no que um bom fragueiro nunca utiliza cravos senão só tornos de madeira com os quais une cada uma das peças. Depois de construído passa a marcar e preparar a roda e a colocar-lhe o aro.

Terminado o carro, começa então a sua vida ativa. Uma manhã o camponês coloca o jugo às vacas situadas estas junto ao carro. Saem do curro da casa e começa o seu rodar e o seu trabalho, a sua vida que será a que o leve ao seu destino final, destino de todos os aparelhos, mas que no caso do carro como verdadeiro familiar do camponês tem umas condições e um trato que não todas as ferramentas rurais têm.

O carro pode levar de tudo: lenha, batatas ou milho, outras vezes é esterco para o campo ou o tojo que vem do monte para a corte.

A malha, festa e trabalho, tarefa comunitária, uma das mais queridas pelos camponeses. Cada homem ajuda o seu vizinho a malhar o grão, o grão que sai da messe que leva o carro. A comida, os cantos e os contos, todos competem para ver quem maneja melhor o malho e quem tira melhor grão.

O carro pode ser guiado por qualquer, até por uma criança, pois as vacas têm a mansidão e a força de tudo o que é grande. Uma criança pode conduzi-las sem nenhum problema.

Contudo, a nota mais caraterística do nosso carro é que faz ele mesmo o seu caminho. O monte não é para ele obstáculo, não precisa caminhos. Com qualquer carga, o carro circula pelos montes, baixa costas sem precisar um caminho.

O carro aligeira-se da sua carga: o feno, a palha, a lenha guarda-se.

E entanto o homem trabalha com o carro nas suas terras, as filhas, as vizinhas trabalham também no linho, tarefa dura mas querida, como todos os labores do campo.

A velha fia e termina o trabalho das moças que depois continuam no tear tecendo as teias que hão de vestir os seus filhos e o seu marido, seguindo sempre o compasso da vida, o compasso dos trabalhos do campo.

Mas o tempo passa e as tarefas começam a fazer mossa no carro. Um dia o eixo debilitado rompe. O fragueiro intenta arranjá-lo provisoriamente para que ainda possa terminar o seu caminho.

Com estes apanhos, o carro segue trabalhando até morrer. Mas a sua morte não é como a de outras ferramentas do campo. De feito conserva a sua armação que pendurada da parede do curro e respeitada pelo seu dono fica à espera de que o tempo a vá desfazendo pouco a pouco até desaparecer.

E o carro seguirá rodando, dando ar à queixa da terra submetida e o canto de esperança de um amanhã talvez remoto, mas seguro… E segue rodando, olhando o porvir.»

TEMAS PARA REFLETIR E REALIZAR:

Com a técnica de dinâmica de grupos do Cinema-fórum, analisar os aspetos formais e de fundo do presente filme-documentário. Estabelecer também comparações com o cinema russo e com o de Flaherty.

Criar nos estabelecimentos de ensino uma Oficina Pedagógica (Obradoiro) de artesanato popular. Dentro do mesmo, tomando como base a revista de Temas de O Ensino nº 1, editada em 1981 pela ASPGP, e da autoria de Joaquim Lourenço, junto com outros interessantes trabalhos por ele elaborados, podem ser construídos pelos escolares diversos enredos e brinquedos tradicionais e o carrinho de vacas. Os trabalhos podem depois ser expostos.

Desenvolver em escolas infantis, primárias e liceus o seguinte “Plano de atividades para fomentar entre os estudantes o apreço pela cultura popular”: -Organizar o ciclo anual das festas populares: magustos, Natal, entruido, maios e maias e as fogueiras do S. João.

  • Organizar encontros e competições de jogos populares galaico-portugueses, para recuperar os jogos tradicionais comuns: bilharda, bilros, sacos, pião, zancos, chave, fito, rã ou sapo, pano, marro, a porca, etc.
  • Organizar atividades de danças populares, de canto e de canto coral e de recolhida de contos, lengalengas, refrães, ditos, anedotas, lendas, brinquedos, coplas, etc.
  • Elaborar pequenas monografias seguindo o modelo freinetiano da “Biblioteca do Trabalho”: ofícios artísticos e de artesãos, fazendo entrevistas a pessoas vivas que exercem algum ofício (ferreiro, carpinteiro, cesteiro, fragueiro, oleiro…), estudos de comarcas (geografia, história, arte, arte popular, costumes, artesanato, grupos folclóricos e culturais, etc.)
  • Tomando como centro a Joaquim Lourenço, organizar uma amostra, com fotos e textos, ao redor dos etnógrafos galego-portugueses mais importantes: Leite de Vasconcelos, Fernando Galhano, Pires de Lima, Veiga de Oliveira, Vicente Risco, Bem-Cho-Shei, Bouça Brei, Taboada Chivite, António Cabral, Fidalgo Santamarinha, González Reboredo, Lourenço Fontes, Felipe-Senem, Blanco Prado e Clódio González Pérez (estes cinco últimos felizmente ainda vivos).
  • Convidar artesãos e especialistas para dar palestras nos estabelecimentos de ensino: oleiros, canteiros, ferreiros, carpinteiros, afiadores, cesteiros, músicos populares, coordenadores de grupos folclóricos, etnógrafos, etc.
  • Organizar roteiros para visitar centros de cultura popular: museus, obradoiros vivos de artesãos de todo o tipo, festas populares, centros de elaboração popular de doces e licores, etc.

 

 

AGAL organiza obradoiros de português para centros de ensino primário e secundário em Moanha

Saioa Sánchez, neofalante: “Para mim faz muito sentido falar galego se vais viver na Galiza”

Lançamento do livro “André”, de Óscar Senra, com Susana Arins em Vedra

AGAL e Concelho de Cotobade apresentam Leitura Continuada da República dos Sonhos

Queique de abacate e limão

O 39º COLÓQUIO DA LUSOFONIA decorrerá em Vila do Porto (Santa Maria, Açores) de 3 a 6 de outubro 2024

AGAL organiza obradoiros de português para centros de ensino primário e secundário em Moanha

Saioa Sánchez, neofalante: “Para mim faz muito sentido falar galego se vais viver na Galiza”

Lançamento do livro “André”, de Óscar Senra, com Susana Arins em Vedra

AGAL e Concelho de Cotobade apresentam Leitura Continuada da República dos Sonhos