O Diário Comboio passa novamente pela Escravitude. Com origem na Corunha, viaja com destino a Ponte Vedra e Vigo para continuar por Caminha, Viana do Castelo, Barcelos, Vila Nova de Famalicão e Ermisende, com destino final na Estação do Porto Campanhã. Em reciprocidade, outra máquina sai da ribeira do Douro, sobe ao Minho e procura a ligação com aquele que se dirige para Santiago de Compostela, naturalmente… através da Escravitude.
Não estamos de brincadeira. Diário Comboio é o título do primeiro romance da escritora Raquel Miragaia (Vilalva, 1974), que tinha sido publicado em 2002 e que agora está novamente em circulação no catálogo da Através.
Decorrido já quase um quarto de século, a autora está consolidada no panorama literário galego e tem publicado outros livros bem conhecidos: Em tránsito (2007), O décimo terceiro mês (2010) e Tempo Tardade (2020). Outra obra sua, viu a luz na coletânea Abadessa, oí dizer. Relatos eróticos de escritoras da Galiza (2017), editada também pela Através.
Em simultâneo com a saída do Diário Comboio para as livrarias, falamos demoradamente com a autora.
O Diário Comboio foi editado quando a autora tinha pouco mais de vinte e cinco anos, deixava atrás a etapa universitária e adentrava-se na profissão docente. Gostávamos de saber se foi o teu primeiro romance ou se foi só o primeiro a ser editado.
Foi o primeiro romance acabado, sim. É verdade que tinha feito outras tentativas antes, mas sem chegar a terminar. Em qualquer caso, escrevi o Diário comboio dentro do género do conto, o facto de considerá-lo novela foi posterior à criação, quando as pessoas que leram começavam a comentar e perguntar sobre ele falando nesses termos. Creio que esse facto, o de eu tê-lo concebido como coleção de contos interligados, facilitou a composição, pois tirou a tensão de escrever uma novela.
Alguma vez temos conversado sobre a ambientação narrativa e dizias que tiveras dúvidas entre localizar na Escravitude e na Esfarrapada. Qual é a razão?
Na realidade não foram dúvidas o que tive, na realidade o texto inicial, o que fala da vila, estava escrito já localizado em Esfarrapada e, quando o passei a ler à minha amiga Luz Castro, ela comentou que tinha um vínculo parecido com A Escravitude. Aí percebi que fazia muito mais sentido pois, de facto, A Escravitude tinha linha de ferro. Depois dessa conversa, começamos a falar da possibilidade de incluir fotografias da Luz, pois na altura ela estava fazendo muita fotografia, teve várias exposições, e eu gostava (e gosto) muito do seu trabalho. Aí começou essa ideia de trabalhar as duas expressões artísticas e combiná-las. A Escravitude foi, então, o nexo comum para nós as duas, com a feliz coincidência de ter essa magnífica linha de ferro, já no momento sem uso, que foi incluída na história e na fotografia.
O teu lugar de nascimento é Tardade, em Vilalva, onde se centra o protagonismo de Tempo Tardade, o último romance. É como uma Escravitude sem caminho de ferro?
É obvio que ambos os espaços, mesmo sendo reais, são também metafóricos. Os dous coincidem na configuração de lugar pequeno, mas ousaria dizer que Tardade tem uma configuração mais rural que A Escravitude, talvez por essa falta de comboio. Mas os dous compartem um ambiente dum certo abandono, ou pelo menos eu assim o vejo, e é esse abandono o que me interessa. No caso de Tardade, além disso, há um vínculo emocional muito forte que talvez influencie de alguma maneira a história.
Imagino que me dirás que não existe nada em comum entre a Berta (protagonista do Diário Comboio) e a Branca (protagonista do Tempo Tardade).
Poderia dizer tal cousa, mas faz pouco, em conversa com a Luz sobre ambas as histórias, ela notou que as duas personagens são mulheres em busca de um lugar (no mundo). Portanto, embora gostasse de negá-lo, parece que não são tão diferentes. Poderia mesmo dizer-se que representam duas formas de fugida e encontro. Isso é o que as faz parecidas. Além disso, não acho outros pontos em comum.
Após conhecer em profundidade as personagens dos teus livros (o pintor doente; a Modesta, mulher sábia; a adivinhadora; o taberneiro; o menino-pássaro…), estamos com a sensação de ter ganhado uma docente… e de ter perdido uma psicóloga com grande potencial.
Não sei muito bem como responder a esta pergunta, mas acho que a tomo como elogio e agradeço-o. Na realidade, uma das teimas mais importantes para mim quando escrevo é a construção de personagens. Tanto como leitora quanto como escritora, fascinam-me as personagens e tenho certa obsessão (se se pode dizer assim) por criar personagens complexas, mas retratadas de forma simples. Mas porque também acho que é assim na vida. As pessoas somos muito complexas na nossa simplicidade. Essa sensação de que poderia ter sido uma boa psicóloga talvez seja excessiva, mas sim é verdade que adoro a observação do ser humano, de todas as pessoas, sinto uma curiosidade genuína por compreender as motivações, os comportamentos, as expressões… mais que psicóloga acho que sou uma bisbilhoteira.
Na tua narrativa existe um grande contraste entre a vida nas áreas urbanas e a vida no rural. Com vinte anos de experiência entre prados e hortas e quase trinta entre carros, semáforos e prédios de muitas alturas, já nos podes orientar…
Penso que não, penso que essa experiência num e noutro ambiente só tem feito que tenha cada vez mais dúvidas e que precise uma certa complementaridade. Acho as cidades mal pensadas para a vida humana, são duras, agressivas, hostis… mas ao mesmo tempo atraem-me, gosto das possibilidades que oferecem, das opções de escolha, desse certo anonimato possível. Porém, o encontro com o sossego e, sobretudo, os tempos da vida no âmbito rural regidos mais pela natureza do que por horários artificiais, parece-me uma opção muito mais humana. E aí estou, nessa desorientação contínua.
Pensas que o confinamento marcou um ponto de inflexão no caminho da recuperação da aldeia como lugar habitacional?
É possível que o confinamento tenha marcado muitas mais cousas nas nossas vidas do que somos capazes de perceber ainda. É verdade que, no começo, nos primeiros anos, parecia que se via, sim, a possibilidade de “voltar ao campo”, voltar como hipérbole, pois a maioria das pessoas foram nesse momento pola primeira vez, como uma maneira de combater o horror que foi o confinamento nas cidades. Agora o que sinto é como uma voracidade em viver tudo muito rápido, em acumular experiências, que não é tão compatível com a recuperação da aldeia. Mas a minha perceção é muito parcial, não tenho uma visão informada.
A comparação da vida nas nossas aldeias no século XX e no século XXI é como a comparação de países diferentes.
Pois suponho que depende do momento do século XX que tomemos como referência. A minha experiência é de finais dos 70 para a frente e sim, há muita diferença, mas sobretudo porque, como no resto da sociedade, as cousas ficaram mais extremas: muito mais abandono em alguns lugares e muita mais produção concentrada e, às vezes extrativista em excesso, noutros. Se falo do meu lugar, da minha aldeia, o que mais pesa é o abandono, o silêncio, já não se escutam conversas, animais, máquinas trabalhando…
O Diário Comboio foi inovador linguística e estruturalmente. Como estava o teu relacionamento com a literatura galega no momento de te fazeres escritora? Tinhas referentes em positivo e em negativo? Noutras palavras: sentias-te “vítima” das recomendações escolares?
Nunca me senti vítima das recomendações escolares, li sempre textos interessantes e, mesmo aqueles que foram menos do meu gosto, achei bom ler. Talvez porque a adolescência e a juventude era uma época mais voraz e eu não tinha muitos modelos de leitura na casa. Portanto, tudo o que me propunham para ler achei bom sempre. Também é verdade que por este mesmo motivo demorei um pouco em ter um gosto mais ou menos definido, e quando tive, já as minhas possibilidades de acesso à literatura eram outras e a diversidade geográfica e linguística foi maior. Porque para ser totalmente sincera, as leituras repartiam-se desequilibradamente entre o galego e o espanhol, em galego lia menos, o que me recomendavam na escola e poucas cousas mais, pois em casa, os poucos livros que havia eram em espanhol (originais ou traduções).
No século XXI os fados levaram-te para Lisboa. Nesta etapa portuguesa, ganhaste novas referências temáticas e estilísticas?
Ganhei, mas não tanto pela leitura de cousas novas, quanto pela experiência vivida. A vida em Lisboa permite ter muito contacto com uma grande variedade de nuances culturais da lusofonia, desde a cultura galega que permanece de uma forma não muito visível, mas presente; até as diferentes culturas lusófonas africanas e a brasileira, além da própria portuguesa, claro. Esta possibilidade de contacto com essa diversidade ajuda a melhorar a perceção da tua identidade, pois tens consciência mais clara de ser uma parte mais.
Fala-nos de futuro: a prioridade é fazer divulgação destes livros já editados, que foram fazendo o caminho a sós, ou devemos preparar-nos para receber novos títulos?
A prioridade nunca é fazer divulgação, é mais uma necessidade de quando tomas a decisão de levar algo ao público. Nesta enxurrada informativa diária, se não tens um pouco de cuidado em mostrar o teu trabalho mais valeria não o ter tirado do computador. Então, há que fazer divulgação. Mas a escrita é sempre a prioridade, uma nunca para de escrever. Podem-se esperar títulos novos, sim, não sei em que tempos. Por enquanto, tenho estado compilando relatos curtos de diferentes épocas e trabalhando um pouco na possibilidade de dar-lhes forma de livro. Há outros projetos, ainda em estado muito larval.