Quatro imagens autênticas e uma só revolta interior

PDF

Partilhar

Por Teresa Moure

25 de maio de 2013

PDF Descarregar em PDF

 

Primeira imagem: a casa natalícia

Em Os espelhos do tempo Vítor Vaqueiro decide fotografar a que ele chama a casa natal do Eu para encher de simbolismo poético essa imagem aparentemente inócua. Como fizeram antes tant@s artistas, o nosso autor deseja projetar-nos no passado, nas janelas brancas, nas persianas baixas, na pedra da fachada, com a intenção de que a sua vida faça parte de nós. Leio Vítor Vaqueiro e invade-me uma vaga de morrinha que reclama essa casa, a de ele, embora nunca a visse. A leitura é o território do paralelismo. Penso por um momento em fotografar, também eu, a minha casa natalícia e percebo, com surpresa, que não existe. Não existiu nunca. Sou dessas pessoas que nasceram num hospital, entre a assepsia e a frialdade dos ninhos artificiais. Talvez por isso, esteja pouco conforme com o mundo, que sempre me pareceu um lugar hostil. Não há em nenhum lugar do planeta esse cenário realista que possa lembrar o meu nascimento porque, num acaso que hoje me serve de motivo, aquela clínica fechou anos atrás, quando se reformou o obstetra que a levava. Para incrementar a ironia, o edifício acolhe hoje uma clínica veterinária, algo que traz o riso para a minha cara. Adoro essa ironia. Se quisesse fotografar o lugar onde nasci, a imagem luziria o rótulo de “clínica veterinária” e eu estaria a reconhecer a minha natureza animal, de que, para dizer tudo, estou bem orgulhosa. − Prefiro ser animal que vegetal, para já não falar em mineral −. Instalo-me no conceito mesmo de mudança. Nada há estável, nada certo. A casa natal pode ser varrida do mapa, pode não ter sido nunca uma casa. Teimo: nada há de estável neste mundo, nada seguro. Nem sequer a própria biografia. O poder tenta capturar-nos dentro dumas margens às que chamam realidade. Nem sabem o que querem dizer com isso. Algumas pessoas não conhecem as suas mães biológicas, só as adotivas. Chamá-las-iam, por acaso, mães artificiais? Aposto que não. Nada há mais natural que a morte e por certo que tentamos evitá-la. Nada há mais natural que a enfermidade, que a dor profunda da existência… E nada mais lógico do que procurarmos escapar dessas naturalidades. Faço hoje aqui, nesta Festa da Toalha, um canto à artificialidade. A artificialidade permite construir-se contra as eventualidades, contra o azar. Nem os bilhetes de identidade com que o estado pretende capturar dados certos som completamente reais. Alguns mudam de estado civil, mesmo várias vezes na vida. Algumas mudam de lugar de residência, de trabalho. Alguns mudam de sexo. Nada é estável nem permanente. As mudanças são o melhor indicativo de estarmos viv@s. Contra a violência do poder, ainda bem que podemos erguer a rebeldia de inventarmos outras realidades.

A crítica mais frequente contra o reintegracionismo ataca a suposta artificialidade de seguirmos a convenção histórica de representação da língua seguida ao sul. Porém, qualquer padrão contém um grau de artificialidade; doutro jeito cada falante representaria a sua própria língua e a exibição de diversidades chegaria a rachar com as pautas para nos entendermos. Supormos que é natural a língua que posso gravar num trabalho de campo apanhando palavras aldeia por aldeia, ainda que esses fragmentos de discurso estejam abafados de espanholismos, e que, no entanto, é artificial adotar um ç, seria como dizer que só está vivo quem puder fotografar a sua casa natal. Para muitas gerações de galegos, a língua não chegou naturalmente, diluída no leite materno, empapando o ar com os nomes das partes do carro de bois. Tivemos que adquiri-la num processo consciente, motivado e subversivo. Não era a família em que nascemos; era uma dessas outras famílias que habitamos ao longo da vida: uma família antipatriarcal, alternativa, dinâmica, um grupo a que aderimos por escolha livre e que, portanto, sabe ceder no debate, negociar. Se a maioria dos indivíduos que falam a minha língua no mundo dizem “-ção”, aceito escrevê-lo assim, mesmo se eu digo “-çom”, ou algo semelhante. A casa natal trocou de aspeto, mas isso não me questiona. Distingo entre o superficial e o acessório, entre o que não vou negociar − a minha instalação nesta língua de resistentes que ainda não nos deram tirado − e o que é pura vestimenta: os signos que emprego para representá-la.

Segunda imagem: Para que serve uma faca?

Ao defendermos um galego extenso, um galego internacional, um dos argumentos mais recorrentes alude à sua utilidade prática. O galego, uma língua românica originária do comprido território da Gallaecia, perdeu o seu prestígio ao norte do Minho, onde teve que submeter-se à doma e castração dos nobres de Castela. Porém, continuou sendo língua de corte e de cultura em Portugal e, daí, através dum processo de colonização do que não podemos deixar de sentir vergonha, instalou-se em territórios dos cinco continentes. Visto que o povo galego sente uma baixa estima pelo seu, visto que tantas pessoas insistem ainda em que a nossa língua não tem valor para andar pelo mundo, entre nós muitas vozes se ergueram defendendo as vantagens econômicas que representa para o povo galego falar uma das línguas mais difundidas pelo planeta. Confesso não gostar muito desse argumento que me pode colocar, perigosamente, da parte dos processos de colonização, se não o exprimirmos a jeito. Precisemos. Bem está convencer os ignorantes de que a língua das Cantigas de amigo, a de Pessoa, a de Clarice Lispector, a de Mia Couto, a de Séchu Sende, para pôr algum exemplo, não é um dialeto de andar pela casa; de que a sua delicadeza, a sua profundidade, a sua agudeza pode permitir-nos expressar com toda a complexidade qualquer axioma matemático, qualquer conceito filosófico, qualquer novidade da tecnologia. Obviamente. Mas não há dialetos de andar pela casa. Qualquer língua duma pequena tribo do mundo contém todos os recursos para chegar às mais recônditas profundidades do intelecto. Não há, na verdade, línguas piores e melhores.

Com muita frequência, os livros, os manuais e enciclopédias que estudamos teimam em definirem as línguas numa óptica utilitarista como ferramentas para a comunicação. Essa definição é simplificadora. Aliás, está a salientar a dimensão instrumental das línguas, o aspecto em que estas são menos perigosas para o poder; de aí a sua popularidade. Com efeito, é através das línguas que cada dia conseguimos comunicar-nos. Porém, também é certo que essa “comunicação” nem se faz por via exclusivamente linguística nem resulta tão eficiente como devera. Case todas as pessoas sofrem conflitos linguísticos que afetam as suas relações pessoais: nos nossos discursos abundam os maus entendidos, a ambiguidade e a falta de exatidão. Se as línguas fossem o principal meio de comunicação das pessoas, não se explicaria por que somos mais desajeitad@s por telefone que face a face. Ao mesmo tempo, cada dia muitas pessoas usam, para se comunicarem com outros seres humanos, as artes, os gestos, o afeto ou o sexo. Em absoluto consideram a expressão por estas vias não linguísticas como algo secundário ou redundante; ao contrário, com frequência aludimos à experiência contrária e asseguramos que “uma imagem vale mais do que mil palavras” ou que não dispomos das palavras justas para descrevermos uma determinada situação. Se as línguas fossem meios de comunicação efetivos e mais nada, a matemática, a química ou a lógica não precisariam das suas linguagens especializadas. Aventurarmos que a linguagem humana é, entre outras coisas, o principal sistema de comunicação da espécie pode ser válido em tanto que primeira aproximação; que esta função defina a linguagem até esgotá-la é manipulador. Também uma faca vale para abrir garrafas de cerveja quando não tivermos nada melhor perto e ninguém define a faca como um instrumento para abrir cervejas. Com rigor nem sequer uma função mais definitória do uso habitual das facas serviria para definir a faca. Uso o galego internacional não porque seja útil para abrir muitas garrafas; uso-o porque é uma faca ótima para ameaçar o pensamento único.

Aceitemos uma hipótese ligeiramente variada. Suponhamos que o galego só se falasse agora na Galiza e numa ilha do Pacífico, independente a nível político e com uma cultura desenvolvida integramente em galego porque Portugal nunca levantara um amplo império colonial. Neste suposto fictício, não sendo o número de falantes nem as possibilidades de investimento econômico fatores a termos em conta, igualmente deveríamos assumir a grafia que a língua tivesse nessa ilha onde foi língua oficial, e não desprestigiada pelo poder. Porque o objetivo principal da nossa revolta seria alterar um modelo espanholizante, que as e os escritores do XIX adotaram porque não conheciam ainda a história interna da língua e que outras autoridades mais recentes no tempo assumiram porque permitia incorporá-la ao ensino, bem apegadinha ao espanhol. O movimento reintegracionista, acho eu, é um movimento pela dignificação, pela negação do assimilacionismo ao espanhol, um movimento vinculado à independência política; não apenas ao pragmatismo do mundo-tal-qual-é, o mundo do capitalismo e a competitividade. Quero lembrar neste ponto que não nos dedicamos às questões importantes, às artes, nem aos cuidados por utilidade. Cultivamos aquilo que nos faz especificamente seres humanos por algo que não tem a ver com pragmatismo nenhum, mas com os afetos, com o sentido da própria identidade. Não tiramos com as nossas lembranças, com as nossas experiências, com os nossos saberes. Não tiramos com as pessoas a quem amamos quando enfermam. E, se não fazemos tal, não será porque seja útil arrastar um passado ou porque seja cômodo atender alguém deitado numa cama com as ilusões partidas e o corpo irremediavelmente atado ao sofrimento, pedindo às suas horas comida e atenções. Não nos move a utilidade. Move-nos o amor. A nossa faca serve para rendermos tributo à história, para defendermos a visão particular do mundo que se deu elaborado desde o galego, para ameaçarmos a tranquilidade do poder. A nossa faca tem algo mais importante que a utilidade; incorpora uma lógica alternativa.

Terceira imagem: a lição de Clara Campoamor

O primeiro de outubro de 1931 as mulheres do estado espanhol obtinham, logo dum quente debate parlamentar, a possibilidade de participarem nas eleições. O voto feminino era um logro histórico: o reconhecimento da sua condição de pessoas de pleno direito. Surpreende pensar que foi há tão pouco tempo. Tenho ainda uma avó que nasceu antes dessa data e que viveu por tanto num mundo onde a sua opinião não contava nem na pura teoria. A sua mãe, a minha bisavó, fez-se adulta e pariu filhas e filhos antes de lhe permitirem votar.

Os livros de história frequentemente passam por alto este data. Ou mencionam que o debate sobre o voto enfrentou duas mulheres. Uma delas, Clara Campoamor, defendeu que era de “lei natural” o feito de as mulheres votarem. A outra, Victoria Kent, afirmou estar disposta a defender essa postura se todas fossem estudantes ou obreiras, mas que, nas condições em que se achavam as mulheres para essa altura, temia que os confessores votassem a través delas. Enquanto se focaliza a atenção nessa peleja entre duas mulheres, enquanto se simplifica o que não foi fácil de decidir, a crônica perde de vista a postura da esmagadora maioria masculina na câmara. Ali havia homens como Nóvoa Santos, com rua dedicada em tantas cidades galegas, que se perguntavam se realmente as mulheres estariam capacitadas para votar. Nem Campoamor nem Kent duvidavam dessa capacidade, ainda que as suas posturas fossem distintas. Victoria Kent não era “a má”, nem, com efeito, tão maus deveram de ser a maioria dos homens do parlamento, pois que a iniciativa foi finalmente aprovada. Porém, não nos alegremos demasiado. O voto ficava restringido para as mulheres maiores de vinte e três anos solteiras e viúvas porque os senhores deputados não aturavam a ideia de que uma mulher casada pudesse votar “contra” o seu homem. Não foi até 1978 propriamente que as mulheres do estado espanhol − e entre elas as galegas − chegaram à maioria de idade, ao possuírem o direito verdadeiro e total ao voto, a poderem votar quando e por quem lhes parecesse. Todo foi mui lento. Ainda nos setenta as nossas mães sabiam que não lhes estava permitido abandonarem a casa matrimonial ou dirigirem um negócio, viajarem ao estrangeiro ou terem unha conta num banco sem a vênia dum homem que as tutelasse.

Todo foi devagar. E assim, mui lentamente, vamos instalando-nos no tempo em que as portas se abrem. No meio, tantos insultos e desqualificações por ser mulher − tão faladora, tão ligeira, tão melindrosa, tão marimacho, tão atrevida −. No meio, os corpos de tantas mulheres assassinadas. No meio, ficam os rostos de tantas mulheres capturadas numa vida que não queriam viver, mulheres prostituídas, mulheres encadeadas numa decisão tomada de antigo, mulheres na procura de que alguém aprecie a sua abnegação quando decidem dar todo por outros, sem que os outros o pedissem. Ao fundo do túnel, uma luz: essa imagem da mulher que com a sua filha em braços, se achega à urna para votar.

Num movimento tão masculinizado como o reintegracionista, não posso por menos de lembrar este episódio das lutas de gênero para matinar sobre o alcance ético de certas escolhas. Clara Campoamor votou em pura ética. Sabendo que provavelmente o voto feminino a tiraria do seu posto de poder, conseguido sobre muitas renúncias, não duvidou. Essa coerência torna-a particularmente icônica. Ainda que eu não condenaria Victoria Kent, a utilitarista, as minhas simpatias estão com Clara Campoamor, com a sua resistência. Quando acreditarmos em algo, isso tem valor, mesmo se nos pode colocar numa situação pior da que tínhamos ao começo. Num mundo onde as figuras políticas perderam credibilidade precisamente por procurarem os seus próprios interesses, mudáveis, em troca de verdades que aspirarem a um bocadinho de permanência, não sujeitas à sua posição no tabuleiro de xadrez, cumpre atender à perspectiva ética.

O reintegracionismo não é só uma postura filológica. Já notarão que eu não acredito muito nas ciências, sempre praticadas ao abeiro de obscuros interesses. O reintegracionismo é também uma postura moral: a de comportar-se conforme às próprias convicções, ainda que nos deitem nas margens do sistema… Ou, talvez, por e precisamente para isso.

Num livro que vê a luz nestes dias, Carlos Taibo e Arturo de Nieves fazem um inquérito a algumas pessoas representativas da cultura galega contemporânea. Para surpresa de quem ler, a maioria das respostas mostra-se favorável à ideia de galego e português serem uma mesma língua, igual que às dificuldades de normalizarmos o galego sob a hostilidade institucional. A causa reintegracionista, como o voto feminino, está fora de questão. As Victorias Kent do galego temem quiçá perder o que conseguiram com esforço: só fica puxar um pouco, como em todos os partos…

Quarta imagem: A da toalha

A foto mostra uma mulher. Essa mulher não tem casa natalícia que fotografar e pode luzir com orgulho que nasceu numa clínica veterinária, de onde procede a sua veemência animal. Ela de natural apenas têm o seu corpo. E estaria disposta a implantar-lhe uma válvula, um marca-passos ou uma prótese ortopédica se a existência lhe deparasse certas dores. Ela não seria natural se a situação exigisse uma dose de artificialidade. Ela, que considera a defensa da natureza a sua primeira causa, não teme o artifício porque julga que também os livros lidos, os filmes vistos, a música escutada, as experiências de contemplação de espetáculos ou outras artes mais performativas e mais íntimas que lhe tinham regalado, foram fazendo-a tanto como os seus braços ou os seus olhos. A câmara achega-se, recorta o quadro panorâmico e centra-se apenas um momento numa das personagens. Ela é por este momento uma mulher que se amostra, que se reconhece a si mesma, que pensa em si como alguém diferente das mudas das serpes −” todas tão estreitas, apenas peles abandonadas no longo caminho de chegar a ser serpe −. Como acaba de premer no disparador da sua câmara que fixará esse instante dentro de cinco segundos, a sua mente estará concentrada em mirar para ninguém como se olhasse para alguém, mas, ainda que pareça colocada para ser contemplada, na realidade acaba de ver-se surpreendida. Essa mulher que a câmara retrata sou eu. Surpreendo-me porque nunca reconheço completamente a minha cara. Sempre quando me gravam ou me fotografam vejo os traços da minha mãe nisso que deve de ser o meu rosto. Vejo como o tempo, pouco a pouco, tenta tornar-me a minha mãe. E também vejo como eu lhe faço resistência, como teimo em ser outra, radicalmente distinta à que dite a genética: contrária ao “natural”.

A foto mostra uma mulher a quem pediram que se fotografasse para hoje. Pediram-lhe que deixasse de lado o pudor de ser retratada e ela mirou para a câmara. Mirou de frente, com rebeldia. Acabava de dar o salto de se incorporar numa luta não menor, a defesa duma norma ortográfica que a vinculava, de pronto, a tantos textos, a tantos povos, ao tempo que a distanciava dos poderes pequenos da cultura galega oficial. Essa mulher pôs a toalha sobre o ombro, como faz quem vai mergulhar-se num labor, e precisa ter as mãos livres. E retratou-se, tal como se sentia: despida diante da cultura oficial, em luta, como um animal disposto a saltar e defender-se. Assumia certos desconfortos, certas aprendizagens que não viriam regaladas e que a faziam mais vulnerável. Mas era puramente fortuito que a câmara mirasse hoje para ela. Porque havia muitas e muitos mais, com a toalha em riba, com a disposição de não deixar-se enganar por mentiras que as ilhassem da história, com o interesse de convocar na próxima edição da festa da toalha, mais uma amiga, mais um amigo, até sermos uma multidão de gentes insubmissas à grafia incutida na escola, ferozmente libertárias, turrando por abrir as portas e erguer bem alta a toalha. Ela sente o barulho da multidão de gentes insubmissas chegadas de toda a parte e berra: “Toalhas em alto!!”

 

PDF Descarregar em PDF